Acusadas de “anti-desenvolvimsnto”, comunidades no Maranhão resistem a um porto chinês enquanto seus direitos são atropelados
Por Aldem Bourscheit, da InfoAmazonia, em Dialogo Chino
A terra treme na comunidade do Cajueiro. O maquinário pesado avança sobre onde havia pessoas e floresta amazônica. O vermelho do chão escorre com as chuvas, soterra manguezais e a esperança de quem não vê mais futuro onde a vida seguia com ritmos e sons tão diferentes. Em São Luís, capital do estado do Maranhão, a obra de um porto para transporte de grãos, combustíveis e minérios une Brasil e China a casos de violência contra populações rurais, dribles na legislação e suspeita de grilagem de terras.
China Communications Construction Company e WPR – São Luís Gestão de Portos e Terminais erguem seu porto em uma das regiões mais cobiçadas do planeta. Cargas ali embarcadas chegarão mais rápido e com menor custo ao país asiático, cruzando o Canal do Panamá. Águas tão profundas quanto as da Baía de São Marcos são encontradas apenas em Roterdã, na Holanda. Elas garantem o vaivém de imensos navios ligados ao comércio globalizado.
Mas a região tem outras riquezas, como florestas e manguezais cuja preservação é fundamental para a reprodução e a sobrevivência de inúmeras espécies de peixes, caranguejos e outros animais. Os estados do Maranhão, Pará e Amapá abrigam 70% dos manguezais do Brasil.
O porto também atenderá ao aumento da produção de grãos na região Nordeste, em uma grande área preservada de Cerrado pontuada por pequenos produtores, indígenas e descendentes de escravos (quilombolas). Metade do bioma já foi eliminada, especialmente pelo agronegócio. Preservar sua vegetação de raízes profundas é vital para manter fontes de água, para o enfrentamento das alterações do clima e para a sobrevivência daquelas populações.
A China Communications Construction Company atua com infraestrutura de transportes ligada aos portos de Santos, Paranaguá, e Açu, nos estados de São Paulo, Paraná e Rio de Janeiro. Tem interesse em obras nas regiões Norte, Sul e Nordeste, muitas para escoamento da produção agropecuária. Mundo afora, tem negócios em países africanos, da América Central, Ásia e Oriente Médio. A estatal chinesa fatura mais de 60 bilhões de dólares anuais em nível global.
Um financiamento de até 700 milhões de dólares (cerca de 2,6 bilhões de reais) do Banco Comercial e Industrial da China (ICBC) foi assegurado para a construção do porto em acordo assinado pelo ex-presidente Michel Temer. Ele foi detido em março após ser acusado pelo Ministério Público Federal de liderar um esquema de corrupção que movimentou 1,8 bilhão de reais em propinas para influenciar contratos com estatais e órgãos públicos. O terminal tem como vizinhos outros três portos, um par de ferrovias, enormes pátios para minério de ferro e contêineres, uma termelétrica e uma rodovia federal. A circulação de commodities produzidas na Amazônia é frenética.
No meio dessa terra de gigantes, a comunidade do Cajueiro luta para manter seu modo de vida. Quem finca o pé no chão paga um alto preço. Moradores denunciam desde 2014 a destruição de casas e de roças, ameaças de jagunços e toda sorte de dificuldades para seguir pescando e plantando. Seguranças armados circulam pelo que resta do povoado, dilapidado pelo desmatamento.
Para o deputado estadual Wellington do Curso (PSDB), a obra no Cajueiro é apoiada por um poderoso jogo de forças, que não tem pudores de atropelar os direitos dos moradores tradicionais. “Lá identificamos ligações grotescas entre capital brasileiro e internacional, governo e judiciário com crimes sociais e ambientais, como a destruição de vegetação protegida em lei federal e aterramento de mangues”, afirma o parlamentar.
Nessa “queda de braço”, os conflitos cresceram junto com a pressão das empresas e do poder público para que os moradores deixassem suas terras e casas. Em 2017, cinco pessoas foram ameaçadas de morte, três da mesma família. Os registros são da Comissão Pastoral da Terra. A organização da Igreja Católica publica relatórios anuais sobre violência no campo desde 1985, quando o Brasil deixou para trás duas décadas de ditadura militar.
Um dos ameaçados é o pescador Clóvis Amorim da Silva, de 52 anos. Voz ativa na defesa dos moradores do Cajueiro, já teve a frente da residência tomada por manifestantes, que lá chegaram em duas dezenas de carros e motos. Naquele momento, sua mãe, de 74 anos, e seu pai, de 84, resistiram juntos às agressões para que deixassem o local.
“Pertencemos à comunidade, a essa região. Não é possível que uma empresa chegue impondo e coagindo, porque tem dinheiro, porque é dona da justiça, do juiz e quem sabe mais de quem. Estamos resistindo para mostrar que nossos direitos existem e têm que ser respeitados. Não se pode olhar só os direitos dos grandes. Essa obra tem que parar, por todas as ilegalidades sociais e ambientais que tem”, diz Silva.
Outra ameaça alcançou o professor Horácio Antunes de Sant’ana Júnior, doutor em Ciências Humanas. Ele integra um grupo na Universidade Federal do Maranhão (UFMA) que joga luz sobre impactos sociais e ambientais de políticas e projetos de desenvolvimento econômico na Amazônia. Suas denúncias sobre o desrespeito aos direitos da comunidade por empresas e governo foram respondidas com intimidações.
Panfletos distribuídos na instituição pública de ensino acusaram o professor e alunos de interferirem “no empreendimento da construção do Porto na área do Cajueiro, onde a qual licença já foi liberada pelos órgãos competentes”. Os mesmos também prometeram (confira aqui) que os “trabalhadores desempregados do Maranhão irão em protesto contra essa ação, estarão no local cerca de 1.600 desempregados para o que dê e vier”. Sua autoria não foi identificada.
Panela de pressão
Sant’ana Júnior também foi atacado diretamente pela WPR – São Luís Gestão de Portos e Terminais. A empresa o acusou de atuar contra o porto em nome da universidade federal e exigiu a abertura de um processo administrativo contra o professor. A instituição foi ameaçada com um processo (imagem abaixo) caso não fossem “coibidas tais práticas abusivas e ilegais”.
Trecho da denúncia da WPR contra o professor Horácio Antunes de Sant’ana Júnior, encaminhada à Universidade Federal do Maranhão em fevereiro de 2018.
A universidade deu de ombros às ameaças. Por outro lado, vasculhando redes sociais a WPR encontrou combustível para acusar um defensor público e um juiz estaduais de agirem em sintonia com entidades civis em defesa da comunidade do Cajueiro. O defensor público recebia e encaminhava as denúncias dos moradores, enquanto o juiz dava seguimento às mesmas no judiciário estadual. Ambos estão afastados do caso.
Enquanto isso, a balança do Tribunal de Justiça do Maranhão segue pesando contra os moradores tradicionais. Em decisão favorável ao terminal privado, o desembargador Ricardo Duailibe descreveu São Luís como uma cidade com “óbvio perfil portuário”. Já um pedido do Ministério Público Federal, para que o licenciamento do porto fosse debatido em audiências públicas e para que fosse esclarecida a posse das terras onde avança a obra, foi arquivado sem qualquer avaliação. A área é disputada entre a comunidade tradicional e as empresas.
Questionado pela reportagem, o Governo do Maranhão admitiu que está licenciando o porto sem uma definição quanto à posse das terras. “O Governo do Estado ressalta que o caso está pendente de diversas ações judiciais, (…) em que se discute, dentre outros, o direito de posse e propriedade do imóvel em disputa. Compete ao Poder Judiciário decidir sobre a posse do imóvel”, diz em nota a Secretaria de Estado da Comunicação Social e Assuntos Políticos.
Para o Ministério Público Federal, nenhuma licença poderia ser emitida sem uma batida de martelo quanto à propriedade do território. “A propriedade formal da área pelos moradores tradicionais não foi levada em consideração no licenciamento. A invisibilidade sobre os direitos da população alimenta o conflito fundiário. Esse é o aspecto mais grave do licenciamento”, ressalta o procurador da República no Maranhão, Alexandre Soares.
Tamanho atropelo de procedimentos legais não surpreende Marco Antônio Mitidiero Júnior, doutor em Geografia e professor da Universidade Federal da Paraíba. Para ele, do período colonial até agora a violência física ou simbólica sempre foi a principal mediadora dos conflitos por terras no país, e não uma atuação isenta do Estado e do Judiciário. “Se há uma disputa entre um latifundiário com terras improdutivas e um coletivo de camponeses que lá querem produzir, o judiciário sempre pensa com a cabeça do fazendeiro, do empresário”, ressaltou o pesquisador de conflitos agrários.
Terra de tantos donos
O Maranhão não é diferente do restante da Amazônia, onde o caos fundiário multiplica títulos de terras e permite que oportunistas saquem dos bolsos documentos garantindo lotes desde a época das sesmarias – grandes porções do território dedicadas à agropecuária no Brasil colônia. Prato cheio para ameaçar o futuro dos que não têm poder econômico ou político.
Puro contraste com o cenário que Massinokou Alapong encontrou no Cajueiro em meados do Século XIX. A africana trazida da Costa do Ouro (hoje Gana, na África) tanto encanto viu naquele cenário de floresta e mar que ali semeou o Terreiro do Egito. Mesmo reclamado pela mata, o local segue como referência para religiões africanas. Abrigou muitos fugidos do chicote da escravidão. Quando em vez, o som dos tambores ainda ecoa por lá.
As atividades regulares no terreiro chegaram à década de 1960. A Igreja Evangélica chegou um pouco antes. Hoje, quase todos os moradores do Cajueiro são ligados à religião. Sempre se dedicaram à agricultura, pesca e extrativismo. Costumes que ali cultivaram ou carregaram de diferentes regiões, do Maranhão e de outros recantos do país.
Consertando a rede de pesca na varanda de casa, Carlos Augusto Barbosa, de 62 anos, conta que o acesso às praias se complicou e a quantidade de peixes diminuiu com a obra do porto. Atendendo ao chamado de parentes, chegou à região no início dos anos 1980. Migrou do município de Guimarães, a 200 quilômetros de lá. “Antes, tínhamos aqui no Cajueiro peixe e praia perto da gente. Há anos, a situação só piora. Ninguém nos apoia”, reclama.
Mesmo com raízes fincadas na história, a permanência dos habitantes no local vive na corda bamba. Seguem invisíveis a projetos embalados por governos e setor privado. A brasileira Suzano, uma das maiores produtoras de celulose e papel no mundo, já teve planos para um porto na mesma área. Um alento veio em 1998, quando a posse coletiva do território pelos moradores tradicionais foi reconhecida pelo governo estadual.
À época, o Maranhão era novamente comandado por Roseana Sarney, filha do ex-presidente José Sarney. Família com forte influência na política estadual e federal. Foi eleita governadora em 1994 e 1998. Assumiu o governo mais uma vez em 2009, substituindo o governador cassado Jackson Lago. No ano seguinte, foi reeleita. Todavia, renunciou nos últimos dias de 2014, alegando problemas de saúde.
O mandato acabou nas mãos do presidente da Assembleia Legislativa, o deputado estadual Antônio Alves Arnaldo Melo (MDB), pois o vice-governador também havia renunciado. Na véspera de Natal, Melo publicou um decreto retirando o Cajueiro dos moradores e concedeu uma primeira licença para a implantação do porto privado. Naquele mesmo período, quase 20 casas na comunidade foram demolidas por jagunços.
Um dos primeiros atos do próximo governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), foi revogar a desapropriação do território do Cajueiro. Na balança pesaram os conflitos já evidentes entre comunidade e empresariado e a necessidade de mais estudos sobre os impactos socioambientais da implantação do porto.
No início de 2015, representantes do governo ouviram moradores e entidades civis e participaram de reuniões na comunidade. Em maio do ano seguinte, Dino garantiu à subprocuradora-geral da República, Deborah Duprat, que buscaria soluções para o conflito. Na prática, foram promessas inócuas.
“O Governo do Maranhão se tornou cúmplice de todas as irregularidades e crimes cometidos no Cajueiro e passou a carregar em suas costas a responsabilidade de todo o desastre ambiental e social que o empreendimento já provocou e que continua a provocar”, avalia o professor e pesquisador Horácio Sant’ana Júnior, da Universidade Federal do Maranhão.
As terras onde o porto é construído foram compradas pela WPR – São Luís Gestão de Portos e Terminais no período eleitoral de 2014, em uma negociação com a BC3 HUB Multimodal Industrial. A empresa pertence a Helcimar Araújo Belém Filho, de 49 anos, advogado e vice-presidente de Desenvolvimento Operacional do Conselho Diretor do Conselho Regional de Contabilidade do Maranhão, e a Carlos César Cunha, dono do Clube CB450, casa de festas populares na Vila Embratel, na periferia de São Luís. Seus nomes estão ligados a empresas habilitadas à compra e venda de terras, operação de portos, mineração, geração de energia e manejo madeireiro.
Há quase uma década, Belém Filho se aproximou de consultores do Brasil, Suíça e Reino Unido que colocaram no papel o projeto Atlântico Equatorial. Uma empresa de mesmo nome foi aberta em Nova Lima, Minas Gerais, por Belém Filho e Willer Hudson Pos, ex-presidente da Fundação de Meio Ambiente de Minas Gerais. Ele também foi diretor do Instituto Mineiro de Gestão das Águas e atuou no conglomerado britânico Anglo American, um dos maiores grupos de mineração do mundo.
Conforme o planejado, uma área semelhante a 1.200 campos de futebol, engolindo a região do Cajueiro, será coberta com pátios para contêineres, terminais para caminhões e trens e um porto. O projeto também é ligado à mineração de ferro no estado do Tocantins. “A melhor oportunidade de negócios com alto retorno do investimento”, traz uma apresentação da empreitada (confira aqui). Após explicarmos por telefone a Belém Filho que gostaríamos de entrevistá-lo sobre a obra no porto no Cajueiro, não mais atendeu aos pedidos de entrevista até o fechamento da reportagem.
O nome de César Cunha figura em outros conflitos envolvendo terras na capital maranhense, em vários processos judiciais e até em relatórios de operadoras de portos na região. Uma das comunidades pressionadas por ele para que deixassem o local onde vivem foi a de Camboa dos Frades, próxima ao Cajueiro e vizinha de uma termelétrica que abastece boa parte do Maranhão.
“Ele chegou dizendo que era dono das terras, que iria pagar por nossos bens. Muitas pessoas venderam e saíram, mas até hoje não receberam o negociado. Não podemos instalar energia, abrir uma estrada ou uma roça. Não tem ninguém para pedir socorro, é só porta fechada”, reclama Maria do Ramo Coelho Santos, 44anos, ex-presidente da Associação de Moradores e Moradoras da Camboa dos Frades.
Conforme especialistas da Universidade Federal do Maranhão, os primeiros moradores chegaram à Camboa dos Frades por volta de 1920. Em relatório da Empresa Maranhense de Administração Portuária, gestora do vizinho Porto do Itaqui – um dos maiores do país -, as terras de Cunha somam mais de 240 hectares na região. “Comprei (as terras) em 1975”, diz o dono do clube CB450. À época, tinha 20 anos de idade.
Um possível esquema envolvendo a falsificação de documentos para a tomada de terras de comunidades na zona rural de São Luís é investigado há mais de dois anos. Para avançar, a devassa precisa do apoio de órgãos ligados aos poderes Executivo e Judiciário estaduais. “Mesmo com títulos precários sobre grande parte do território, deveria valer a usucapião para assegurar a permanência das comunidades nos territórios onde tradicionalmente vivem”, disse uma fonte do governo maranhense, que preferiu não ser identificada para não colher prejuízos profissionais.
Unidos pelo porto
Além do imbróglio quanto à propriedade de terras e às repetidas denúncias de agressões a moradores tradicionais, a obra do porto no Cajueiro está conectada a empresas investigadas por fraude e corrupção.
Ligações da WPR São Luís Gestão de Portos e Terminais com a empreiteira paulista WTorre ganharam luz na operação Greenfield, disparada pela Polícia Federal em 2016 para investigar fraudes em fundos estatais de pensão. A WTorre foi fundada e é pilotada pelo empresário Walter Torre Júnior. A Greenfield amarra seu nome a sete empresas com as mesmas iniciais WPR, incluindo a envolvida com o novo porto de São Luís. A WTorre também é ligada a projetos de prédios comerciais, estaleiros, pátios de montadoras de veículos e ao Allianz Parque, o estádio do Palmeiras, campeão brasileiro de futebol em 2018.
Já as investigações sobre crimes financeiros e de desvio de recursos públicos da operação Lava Jato – iniciada há 5 anos, também pela Polícia Federal – apontam que a WTorre teria recebido 18 milhões de reais em propina para que a construtora OAS vencesse uma licitação pública, abocanhando uma obra para a Petrobras. A estatal brasileira atua em 25 países com produção, refino, venda e transporte de petróleo, gás natural e derivados.
Walter Torre Júnior e a WPR também são investigados pela 8ª Vara Criminal de São Luís, justamente por crimes ambientais ligados à obra do porto no Cajueiro que foram denunciados pelo Ministério Público do Maranhão. Na lista, morte de animais silvestres e destruição de florestas e manguezais em áreas protegidas pela legislação federal e fora dos limites licenciados pelos órgãos públicos.
Sempre buscando apoio político para seus negócios, a WTorre investiu quase 10 milhões de reais nas eleições de 2010 e 2014, apostando em candidatos de todas as regiões do país. Flávio Dino recebeu da empresa uma das maiores doações individuais na sua campanha vitoriosa de 2014 — mais de 250 mil reais, logo atrás do aporte de empresas de gás, mineração e construção civil. Quase 40% dos recursos da campanha de Dino se devem a esses setores. O restante veio de seu partido.
No ano seguinte, o financiamento privado de campanhas eleitorais foi barrado pelo Supremo Tribunal Federal, que viu na prática uma válvula de escape para a corrupção. As eleições no Brasil contam agora com doações de cidadãos, recursos públicos e um Fundo Partidário, abastecido também com recursos privados.
Ex-juiz federal, Dino é o primeiro e até agora único governador do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) no país. O maranhense de São Luís assumiu seu primeiro mandato alimentando expectativas de aproximação com movimentos sociais e de rompimento com décadas de dominação política do estado pelas famílias Sarney, Lobão e Murad. Em suas primeiras entrevistas como eleito, prometeu uma “revolução democrática burguesa” e um “choque de capitalismo” para o Maranhão, um dos recordistas nacionais em pobreza e violência no campo.
Dito e feito, o governador não tem poupado afagos políticos para atrair investimentos privados ao estado. Participou da assinatura do acordoentre China Communications Construction Company e WPR São Luís Gestão de Portos e Terminais para a construção do porto no Cajueiro. Escoltado por secretários de governo, empresários brasileiros e chineses, também comemorou o lançamento das obras do terminal privado (foto acima), há um ano.
Conforme o professor da Universidade Federal do Maranhão Horácio Sant’ana Júnior, a presença do governador em cerimônias do empresariado deixou claro que os direitos da comunidade seriam desprezados. Segundo ele, desde então o governo varre para debaixo do tapete as agressões aos moradores, irregularidades no licenciamento, crimes ambientais e a cinzenta compra de terras para a obra.
“A empresa passou a agir com muito mais liberdade, avançou no desmatamento, prosseguiu com a derrubada de casas e com as tentativas de chantagear os moradores que querem permanecer no território. O Governo do Maranhão é cúmplice das irregularidades e crimes e carrega nas costas a responsabilidade por todo o desastre ambiental e social que esse empreendimento já provocou e que continua a provocar. Os moradores foram abandonados à própria sorte”, constata o pesquisador.
Reserva extrativista bloqueada
Outra campanha beneficiada pela WTorre foi a de José Sarney Filho, irmão da ex-governadora Roseana Sarney. Os 300 mil reais doados pela empresa foram o maior aporte do setor privado que o candidato recebeu na campanha de 2014. Assumiu seu oitavo mandato como deputado federal no ano seguinte, pelo Partido Verde do Maranhão.
Depois de nomeado ministro do Meio Ambiente pelo ex-presidente Michel Temer, engrossou o coro contrário à criação de uma reserva extrativista que abrigaria até 16 mil hectares de floresta e uma dezena de comunidades, inclusive a do Cajueiro.
“Pelo que eu estou vendo, o Governo do Estado é contra, a prefeitura é contra, senadores são contra. Já determinei estudos, mas nesse caso temos que ouvir tudo e em momentos de crise, como esse, não podemos podar o crescimento do Maranhão. Essa reserva, do jeito que está sendo colocada, eu sou contra e vou determinar ao ICMBio que reveja essa questão”, disse o ministro em uma reunião na Federação das Indústrias do Estado do Maranhão (foto).
O ICMBio – Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade é responsável pela criação e gestão de parques nacionais e de outras unidades de conservação federais. Em uma reserva extrativista, regras permitem que comunidades convivam com ambientes preservados. O modelo é fruto do trabalho de seringueiros como Chico Mendes. Liderança contra o avanço do latifúndio na Amazônia, foi assassinado a tiros de escopeta em 1988, no estado do Acre.
Os moradores do Cajueiro esperam a criação da Reserva Extrativista de Tauá Mirim desde 2003, onde poderiam ser assentados e manter seu modo de vida. Eles têm sido indenizados e removidos individualmente para a construção do porto, despedaçando o que um dia foi uma comunidade. Muitos aceitaram indenizações pelos lotes e casas, enfrentando um futuro longe da floresta e distante do mar.
“As indenizações são uma expectativa de melhora de vida, mas o dinheiro acaba e muitas pessoas não sabem viver fora daqui. Sem qualificação, as mulheres trabalharão como faxineiras e os homens viverão de bicos”, diz Lucilene Raimunda Costa, de 61anos. Ela mora no Cajueiro há mais de duas décadas, mas frequenta a comunidade desde os 5 anos.
Para o deputado estadual Wellington do Curso (PSDB), rara voz crítica ao governo Flávio Dino na Assembleia Legislativa, a reserva extrativista amenizaria os impactos do porto sobre a floresta e as pessoas. Todavia, ele não vê perspectiva para o futuro do Cajueiro, pois a voz de quem resiste ao extermínio da comunidade não ecoa nos órgãos que deveriam zelar por seus direitos.
“Pessoas são retiradas de onde nasceram ou viviam da pesca ou agricultura para um local completamente diferente, uma casa, um apartamento. Viverão de quê? Não tem emprego, não tem creche, não tem escola, não tem qualidade de vida. Miséria, criminalidade, violência, prostituição e tráfico de drogas costumam acompanhar o futuro de populações removidas à força”, protesta.
Dos ex-governadores do Maranhão, Jackson Lago deu sinal verde à reserva extrativista, enquanto Roseana Sarney disse não à área protegida. Até agora, o Ministério Público Federal aguarda um desempatedo governo Flávio Dino sobre o futuro da Tauá Mirim.
Os estudos para sua criação estão prontos e seu desenho driblou a área do porto Brasil-China, mas ela bate de frente com planos para mais infraestrutura logística e de transportes, e até de uma base da Marinha. Também há pressão política para converter quase toda a ilha de São Luís em uma zona industrial. Cansadas de esperar, em 2015 as comunidades declararam a reserva criada. A medida não tem efeito legal ou prático, mas engrossa o clamor daquelas populações pela permanência no território tradicional.
“As comunidades têm direito a uma resposta do poder público, mas o cenário é desfavorável à reserva, pois a proteção do ambiente e das comunidades está submetida a um jogo de forças completamente desigual. Essas populações estão sub representadas no aspecto político diante de empresas que têm grande capacidade de influência, não esquecendo do Governo do Maranhão, que fala em nome desses interesses empresariais”, avalia Alexandre Soares, procurador da República no Maranhão.
Conforme a nota enviada pelo Governo Estadual, “todas as providências que competem ao poder público estadual estão sendo tomadas, considerando a importância do investimento, bem como a segurança dos moradores da área, a preservação do meio ambiente e o respeito à etnia e ao exercício dos cultos das religiões de matriz africana”. Também afirma que em “relação às denúncias sinalizadas pela comunidade, o Governo do Estado reitera o pleno acompanhamento por parte da Secretaria de Estado de Direitos Humanos e Participação Popular em reuniões e audiências públicas realizadas para diálogo com a população local”.
Questionamos por telefone e email as representações da China Communications Construction Company na China e no Brasil, bem como a WPR – São Luís Gestão de Portos e Terminais, quanto às agressões denunciadas pela comunidade do Cajueiro, à cinzenta posse das terras e ao licenciamento ambiental para a obra do Porto de São Luís. Até o fechamento da reportagem, não recebemos um retorno das empresas.
Tabuleiro global
De acordo com o deputado estadual Wellington do Curso (PSDB), ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos na Assembleia Legislativa, crises como a que assombra a comunidade do Cajueiro poderiam ter outro enredo se a legislação fosse respeitada e as populações ouvidas desde o planejamento para a ocupação do território por empreendimentos privados apoiados pelo Poder Público.
“Ninguém é contra o desenvolvimento, desde que ocorra de forma ordenada e sustentável. Se a obra do porto tivesse sido precedida por amplo debate, não teria sido enfiado goela abaixo da sociedade e da comunidade tradicional. São Luís e o Maranhão não precisam crescer dando as costas para o futuro das pessoas”, ressalta.
Ao mesmo tempo, Marco Antônio Mitidiero Júnior, da Universidade Federal da Paraíba, defende que não se pode descolar as agressões sociais e ambientais registradas no Cajueiro dos investimentos crescentes da “especulação financeira global” na produção de soja, carne, ferro e outras commodities agropecuárias e minerais no Brasil.
“Tais investimentos batem de frente com a vida e os direitos de comunidades camponesas, de quilombolas, ribeirinhas e indígenas, tidas como obstáculos a serem varridos de onde vivem, com violência, com a participação do Estado e do Judiciário”, explica.
A alta no preço de alimentos que abalou o mundo há uma década catapultou o apetite da China por terras produtivas. Em seguida, o país ampliou seu leque de investimentos mundo afora em infraestrutura para transportes e geração de energia, fabricação de veículos e telecomunicações. Há uma década, superou os Estados Unidos como principal parceiro comercial do Brasil. Um quarto de nossas exportações acaba no país asiático.
Conforme Mitidiero, a preocupação com uma influência desmedida do poderio econômico internacional no destino de comunidades rurais brasileiras cresceu com a chegada à Presidência da República do extremista Jair Bolsonaro. Eleito em 2018, tem estruturado um governo militarizado, avesso a respeitar o modo de vida de populações tradicionais e indígenas e ainda mais aberto ao ideário de setores atrasados do agronegócio.
Em seus discursos, Bolsonaro prometeu que “não haverá um centímetro a mais para demarcação” de terras indígenas, que essas populações serão integradas à sociedade urbana e que terão suas terras abertas à mineração e agricultura. Também comparou indígenas em suas reservas a animais em zoológicos e afirmou que quilombolas não servem “nem para procriar”.
“Tudo (no novo governo) aponta para uma ainda maior concentração e apropriação dos territórios, com a supressão de direitos de indígenas, quilombolas e da conservação da natureza, abrindo mais espaços aos mercados internacionais de terras e commodities”, ressalta o pesquisador da Universidade Federal da Paraíba.
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Imagem: Clóvis Amorim da Silva à frente de parte da obra do porto na Comunidade do Cajueiro, em São Luís (MA). Foto: Ingrid Barros
Enviada para Combate Racismo Ambiental por Sonia Rummert