Com ‘golpe discursivo’, educação pública é demonizada para ser entregue ao capital

Como nova ordem imposta pelo governo Bolsonaro, tentativa é destruir a diversidade e instituir a uniformidade para a qual só há uma família, uma escola e um modelo de indivíduo

Por Eduardo Maretti, da RBA

A partir da conjuntura de retrocesso que o país enfrenta hoje, é urgente a necessidade de se rediscutir a realidade das escolas públicas e o papel da educação na sociedade. Essa é a temática da série de debates “Olhares para a Educação Pública”, promovida pelo Instituto Unibanco, como parte da exposição “Ser Diretor – Uma viagem por 30 escolas públicas brasileiras”, montada a partir de trabalho do fotógrafo Eder Chiodetto. No evento desta terça-feira (28), no Museu da Imagem e do Som (MIS), o psicanalista Christian Dunker, o escritor indígena Daniel Munduruku e a escritora e atriz Elisa Lucinda debateram a conjuntura em que a educação no país voltou a ser vista como um negócio, ao qual a inclusão e a diversidade não interessam.

Após a criação de políticas de inclusão ao longo das últimas duas décadas, como o Enem e a introdução das cotas nas universidades, agora, sob o governo do ultradireitista Jair Bolsonaro o país volta a políticas contra a educação, agora de forma extrema. “Estamos nesse momento de volta. Corta 30%, demoniza, o país em recessão com 13 milhões de desempregados, e quem é o culpado? O professor de história que fica ensinando Marx e Gramsci às almas inocentes”, ironiza Dunker. “É um golpe discursivo, que tenta instituir de novo uma uniformidade: só há uma família, uma escola, um modelo de indivíduo.”

Após o “tremendo primeiro passo” dos últimos períodos, emerge agora o discurso que tenta recolocar a educação nas mãos dos interesses privados, afastando o Estado da sociedade e dos cidadãos. Segundo esse discurso, a educação pública é muito cara.

”Estamos enfrentando um contra-discurso: devolve-se a educação para quem é dono da educação. Estamos falando de educação pública, mas o negócio mais emergente nos últimos cinco anos é a educação privada, os complexos de universidades privadas que se expandiram no Brasil”, diz o psicanalista.

Dunker observa que o crescimento do setor privado não se dá por acaso. “Os fundos de pensão estão interessadíssimos em comprar escolas. O processo de expansão do espaço público foi atravessado por um contradiscurso, que vai dizer que está tudo muito ruim, que ‘vocês não conseguiram fazer frente ao Plano Nacional de Educação’”, diz. “É verdade, estamos devendo. Não por muito, mas estamos devendo”. Mas, segundo ele, esse ‘contradiscurso’ rapidamente se transforma. “E se transforma em quê? Em balbúrdia. ‘Temos que acabar com isso’. Ou seja, os problemas (na educação) vêm da índole moral daqueles que ocupam o espaço público e portanto precisam ser corrigidos.”

Daniel Munduruku lembrou que, até 1988, as nações indígenas eram consideradas “relativamente incapazes”, daí a existência de um órgão “tutor” (a Funai). “Diziam que estávamos em vias de integração. E agora voltaram a repetir esse discurso. Está nas vozes oficiais que nós somos um empecilho ao desenvolvimento e precisamos ser integrados, que o índio quer ser igual”, afirmou, referindo-se a falas de Bolsonaro.

“A Constituição de 1988 disse que os indígenas são brasileiros plenos e cabe ao Estado garantir a existência deles, com educação diferenciada, demarcação de terras etc. Na atual conjuntura, estamos dando um passo para trás muito sério, muito grave. Precisamos reagir.”

Resistência e diversidade

Ele acredita que, “pelo menos, a sociedade inteligente do Brasil está reagindo de uma forma dinâmica, o que nos permite ter um átimo de esperança, vislumbrar quem sabe uma barreira para impedir o avanço dessa mentalidade retrógrada que tem alimentado o discurso de muitos brasileiros”.

Mas ele aponta que os povos indígenas estão acostumados com a resistência e não é de hoje. “A gente não costuma fazer muito alarde da nossa própria resistência, a não ser quando mexem no formigueiro. Os indígenas resistem no Brasil há pelo menos 519 anos. É o movimento social mais antigo.”

Para Elisa Lucinda, o momento pelo qual passa o país é grave, mas também “fértil”. “Na história recente, há muito tempo não vejo uma necessidade tão grande da nossa união. É um momento muito fértil. Nossa democracia está passando por uma gravíssima prova. Eu acredito na rapaziada”, afirmou.

De acordo com Munduruku, os indígenas são os primeiros a sofrer com os impactos das políticas públicas negativas. “Sobretudo quando se mexe com o meio ambiente e com o patrimônio maior dos povos indígenas e dos brasileiros, que é a natureza. Mas os brasileiros têm virado as costas para isso.”

No Brasil, diz, existem 305 povos indígenas e 274 línguas conhecidas, além de outras ainda não estudadas. Há ainda cerca de 60 povos sem nenhum contato com a sociedade brasileira. “O discurso colonial continua querendo dizer que falamos apenas o português, que o brasileiro é uma coisa só, negando a nós brasileiros o conhecimento da nossa diversidade, negando o direito ao outro de ser aquilo que ele quer ser. Precisamos reconhecer nossa diversidade cultural, que somos um país plurinacional.”

Elisa falou dos traços estruturais e históricos da opressão que vitimam os negros no país. “Selvageria é a marca sangrenta da nossa história e se conseguiu até agora uma narrativa que foi vencedora.”

Segundo essa narrativa, a abolição da escravidão foi decorrente de um ato da Princesa Isabel. “A princesa Isabel não tem nada a ver com a abolição, estava ali por acaso, o Brasil estava pegando fogo, (havia) os quilombos. Somos uma nação que não sabe nada da resistência. Parece que uma branquinha amanheceu boazinha e decidiu libertar os negros. Por isso fomos reprovados na prova de identidade. Como a gente não sabe de onde veio, não sabe para onde vai.”

Imagem: Christian Dunker, Elisa Lucinda e Daniel Munduruku falaram no MIS sobre ataques à diversidade e da urgência da resistência – FOTOS: NATHALIE BOHM / INSTITUTO UNIBANCO

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