Maioria histórica do STF considera homotransfobia como crime de racismo. Respostas a críticas

Por Paulo Iotti , no Justificando

1. Introdução e Breve resposta às críticas pretensamente “dogmáticas” (inexistência de “analogia in malam partem”). Os votos da Ministra Rosa Weber e do Ministro Luiz Fux. Explicação da tese da homotransfobia como crime de racismo, na (hegemônica) acepção político-social do termo.

23 de maio de 2019 entrou para a história como o dia em que a Suprema Corte Brasileira formou maioria para considerar a homotransfobia (LGBTIfobia) como crime de racismo. Uma vez mais, relatei tudo que ocorreu em meu twitter (@pauloriv71), onde sintetizei todas as falas proferidas na sessão de julgamento (o que fiz, também, nas sessões de 14 e 20 de fevereiro de 2019), para quem quiser informações mais detalhadas.

Foi um dia histórico, muito emocionante, especialmente para quem está nesta luta desde o início dos processos e, ainda mais, para quem luta pela punição da homotransfobia desde a redemocratização (com a luta para incluir “orientação sexual” no art. 3º, IV, da CF/88; a criminalização foi proposta, pela primeira vez, em 2001, pelo PL 5.003/01, propostas posteriormente derrotadas). O primeiro processo, movido em maio de 2012, pela ABGLT – Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos, então presidida por Toni Reis, que me outorgou procuração, entidade que continuou na luta nas presidências seguintes, exercidas por Carlos Magno e, agora, por Symmy Larrat, primeira presidentra da entidade, terminologia que ela cunhou para destacar ser a primeira travesti a presidir a maior entidade LGBTI da América Latina, com assento no Conselho Consultivo da ONU.

A segunda ação, movida pelo PPS – Partido Popular Socialista, atualmente denominado Cidadania, em dezembro de 2013, então e atualmente presidido pelo Deputado Federal Roberto Freire (sempre destaco a importância do apoio de Freire, advogado e muito crítico do chamado “ativismo judicial”, donde para Freire, parlamentar histórico, apoiar a demanda pela criminalização da homotransfobia no STF, é porque sabe como o Congresso Nacional mostra-se totalmente insensível ao respeito desta obrigação constitucional que nossa Constituição Federal impõe ao Poder Legislativo). Tudo isso sem esquecer os históricos pareceres da Procuradoria-Geral da República favoráveis às ações, proferidos nos anos de 2014 a 2016, ratificando a tese da interpretação conforme a Constituição do crime de discriminação por raça, na acepção político-social de raça e racismo afirmada pelo STF no célebre HC n.º 82.424/RS, para abarcar a homotransfobia no conceito de racismo social, superando-se de vez a compreensão puramente biológica (fenotípica) de raça e racismo.

É um momento muito especial para pessoas LGBTI em geral, visto que a criminalização da homotransfobia é a principal pauta do Movimento LGBTI desde, pelo menos, a redemocratização. Mas é muito especial para mim em particular, como advogado propositor das ações, dada a polêmica que elas sempre geraram. Sem falar as honrosas oito menções que tive, de minha doutrina e minhas petições no processo, no histórico e paradigmático voto do Ministro Celso de Mello, um verdadeiro tratado pelo respeito e à tolerância à comunidade LGBTI+.

Minha posição aqui é técnica, não política: defendo, nas ações, aquilo que honestamente entendo que é imposto pela Constituição, na distinção dos sentidos estritos de Direito e Política (sou criticado, nas esquerdas, por defender esta distinção). Jamais colocaria em cheque meus diplomas de Mestre (quando distribuí as ações) e agora de Doutor em Direito Constitucional por uma “aventura jurídica”, como destaquei no início de minha sustentação oral. Dito isso, como gay e advogado propositor das ações, a emoção que tenho neste momento é indescritível, embora a ficha só irá cair, mesmo, quando o julgamento se finalizar, já que a luta continua até lá. A críticas puramente ideológicas, que ignoram o Direito Constitucional Positivo e a doutrina e jurisprudência constitucionais que fundamental as ações, a resposta já está dada.

Foram valiosos os votos de mérito da Ministra Rosa Weber e do Ministro Luix Fux, que consolidaram a maioria do STF pela consideração da homotransfobia como crime de racismo.

A Ministra Rosa Weber iniciou dizendo que juntará voto mais aprofundado, que sintetizou, aduzindo que embora pudesse se limitar a seguir os iluminados votos que lhe antecederam, fazia questão de fazer algumas considerações, pois há coisas importantes a ser ditas, onde a palavra se impõe, não o silêncio. Aduziu que os 30 anos de omissão na proteção a pessoas LGBT[I] abre via ao uso do controle da omissão legislativa inconstitucional perante o STF, contra vazio legislativo impeditivo da efetividade das normas constitucionais. Bem aduziu que a heteronormatividade [e a cisnormatividade] social reclama[m] adoção de ações e instrumentos afirmativos para defesa das pessoas LGBT[I]. Bem lembrou que a igualdade substantiva de proteção jurídica de grupos vulneráveis demanda ação positiva do legislador para sua concretização, para combater a desigualdade de fato que assola referida população.

Acompanhando o voto dos Relatores, Ministros Celso de Mello e Edson Fachin, reconheceu a omissão legislativa inconstitucional na incriminação da homotransfobia, por força do art. 5°, XLI e XLII, da CF/88, para proteger comunidade LGBT[I], e bem rechaçou a tese de suposta (e inexistente) violação do princípio da legalidade penal estrita pela consideração da homotransfobia como crime de racismo, ante o conceito jurídico-constitucional de racismo abarcar a discriminação em gênero e orientação sexual (homofobia e transfobia), afirmando que essa compreensão é de todo compatível com o precedente citado [HC 82.424/RS, que afirmou o racismo como toda inferiorização de um grupo social relativamente a outro] e com a recomendação da doutrina jurídica de máxima efetividade dos direitos fundamentais. Assim, entendeu que os crimes de racismo já tipificados, por interpretação conforme a Constituição, abarcam a homotransfobia, lembrando que cabe ao Judiciário interpretar legislação e, assim, encontra-se em sua competência jurisdicional realizar uma interpretação tal.

Por sua vez, o Ministro Fux já iniciou seu voto aduzindo que o STF precisa chancelar a resposta jurisdicional para proteger a população LGBT[I]. Ressaltou que não será qualquer agressão ou ofensa contra pessoas LGBT que será considerada “homofobia”, mas apenas aqueles atos que tiverem motivação homofóbica [homotransfóbica/LGBTIfóbica]. Lembrou que a homotransfobia não é algo isolado, mas parte de um verdadeiro Estado de Coisas Inconstitucional que assola a comunidade LGBT[I].

Lembrou dos alarmantes dados de violências físicas e simbólicas homotransfóbicas que assolam a sociedade, de sorte que a judicialização se impôs como necessária, para combater a inércia legislativa. Aduziu que, por vezes, voz e voto não são suficientes se houver veto após processo extremamente delongado de tramitação, pois embora o Parlamento seja a instância hegemônica na sociedade, quando ele não atua [em tema de atuação constitucionalmente obrigatória], o uso da jurisdição constitucional se impõe para a proteção de minorias contra a opressão da maioria.

Lembrou, na clássica lição de Bickel, que o Judiciário deve agir de forma contramajoritária quando minorias precisam ser protegidas, mas não recebem atenção adequada das instâncias políticas. Lembrou, também, da doutrina de Axel Honneth, na luta por reconhecimento, no sentido de que a criminalização da opressão que assola determinado grupo social, na gramática dos grupos sociais, implica em uma alteração da cultura de um povo, aumentando a autoestima da minoria, possibilitando sua integração social, mediante garantia das condições necessárias ao autorrespeito e do respeito recíproco [que as opressões em questão inviabilizam].

Também rechaçou a violação ao princípio da legalidade penal estrita, pois o Judiciário não está criando tipo penal novo, mas apenas interpretando a figura típica (o crime) de racismo, em seu sentido político-social já afirmado no célebre HC 82.424/RS, para abarcar a homotransfobia. Por esses fundamentos, que sintetizaram seu longo voto, também seguiu os Relatores, ressaltando que seu voto consolida a maioria do STF pela consideração da homotransfobia como crime de racismo.

O intuito deste artigo, agora, é relatar o que tem ocorrido nas últimas semanas, na luta pela realização do julgamento e temas correlatos. Mas, inicialmente, preciso falar brevemente de um tema, sobre as críticas que foram dirigidas aos quatro primeiros votos favoráveis, entre os dias 14 e 20 de fevereiro de 2019. Pedindo máximas vênias, terei que ser muito duro, porque algumas críticas provam que o grande mal contemporâneo é o simplismo acrítico aliado à vontade de criticar sem ler o que se critica.

É um profundo absurdo inominável acusar as ações e os votos do STF de terem “criminalizado por analogia in malam partem”. Quem diz isso prova que não leu, ou, se leu, que deturpou os votos já proferidos no STF. Com efeito, as ações negam, os pareceres da PGR negam[1] e os votos já proferidos negam estarem realizando “analogia”. Isso está explícito nos citados votos. Criminalizar por analogia implicaria um específico raciocínio, que dissesse que a homotransfobia “é tão grave quanto o racismo” e, por isso, deveria ser punida da mesma forma, mas não é isso que as ações, os pareceres da PGR e os votos já proferidos fazem.

Em todos os casos, o fundamento utilizado é que a homotransfobia se enquadra no conceito político-social e constitucional de racismo, já afirmado pelo STF no célebre HC 82.424/RS. Em dito julgamento, o STF afirmou que o racismo é toda inferiorização de um grupo social relativamente a outro. Esse é o conceito político-social, pautado em elementos antropológicos, sociológicos e históricos para a definição do que configura raça e racismo. Uma coisa é discordar deste conceito ou tentar defender que a homotransfobia nele não se enquadraria (algo não feito por críticos/as até o momento), aqui teremos um respeitoso e necessário debate sobre o tema, já que obviamente entendo o estranhamento das pessoas ao se falar que a homotransfobia configura crime de racismo.

Agora outra coisa, muito diferente, é dizer que as ações, os pareceres da PGR e/ou os votos proferidos pelo STF teriam determinado a criminalização por “analogia in malam partem”, o que demonstra ignorância ou deturpação de seu conteúdo (discordar da tese significa afirmar que o conceito de racismo seria “inadequado” para abarcar a homotransfobia, mas não que as ações, os pareceres da PGR ou os votos teriam aplicado “analogia”). Por isso, reitero, quem isto afirma o faz por imprudente ignorância (criticar algo que não leu ou não leu com a devida atenção), ou, pior, deturpação do objeto criticado, por imputar ao que critica algo que dele não consta. Tenhamos honestidade intelectual e responsabilidade no debate, é tudo o que peço (será que seria demais requisitar que as pessoas enfrentem os fundamentos concretos daquilo que criticam?).

Os votos dos Ministros Celso de Mello e Edson Fachin foram disponibilizados já em fevereiro, pelo informativo Migalhas[2]. Vale a leitura, pelo menos para quem quer ter uma opinião séria e respeitável sobre o tema (como se pode seriamente criticar algo que não se leu?).

Considero muito importante, mesmo após o acolhimento da tese pela maioria do STF, explicar porque a homotransfobia se enquadra no crime de racismo. Neste momento, disponibilizo, aqui, o memorial que apresentei ao(s) Ministros(as) do STF, que desenvolvem a literatura negra antirracismo para aduzir que o conceito político-social de raça e racismo, por ela afirmado em detrimento do biológico, é suficiente para abarcar a homotransfobia – não por “analogia”, mas por sua consideração no conceito de racismo e, assim, de grupo racializado, na lógica, inclusive, do STF, na fala do Ministro Maurício Correa, no HC 82.424/RS: não importa como “nós” – STF, movimento judaico, acrescento, Movimento LGBTI etc – consideramos esse grupo, mas como ele é socialmente tratado, donde, como muitos/as consideram pessoas LGBTI uma “raça do demônio” a ser combatida, então a Suprema Corte não pode fechar os olhos a essa realidade objetiva, de ver que se trata de grupo racializado pela ideologia de gênero heteronormativa e cisnormativa que nos assola.

Vejamos a confirmação de voto do Ministro Nelson Jobim no multicitado HC n.º 82.424/RS, que atuou como Deputado Constituinte na elaboração da Constituição Federal de 1988:

[…] No debate da Constituinte, registrado nos anais, falava-se no negro, mas estavam lá os judeus, estavam lá os homossexuais e tivemos a oportunidade de discutir isso. […] circularam dentro da Assembleia Constituinte todas as minorias que poderiam ser objeto de racismo. Nunca se pretendeu, com o debate, restringir ao negro. Não há necessidade de trazer esse debate, porque a Assembléia Constituinte não vai restringir, no texto, ao negro, mas vai deixar em aberto para o exercício futuro de virtuais racismos não conhecidos no momento de 88 e que possam ser conhecidos num momento do ano de 2000” 
(STF, HC n.º 82.424-2/RS, confirmação de voto do Ministro Nelson Jobim, p. 04.)

E, em trecho anterior da mesma confirmação de voto:

A questão, portanto, é esta: as opiniões que pretendem produzir o ódio racial contra judeus, contra negros, contra HOMOSSEXUAIS, devem ou não serem tratadas de forma diferente daquelas opiniões que causam ordinariamente a ofensa ou a raiva? Por óbvio, o ódio racial causa lesão ao objetivo de uma política objetiva de igualdade, que é uma política democrática. A igualdade, portanto, é pré-condição para a democracia e o objetivo da liberdade de opinião. As opiniões consubstanciadas no preconceito e no ódio racial não visam para contribuir para nenhum debate inerente às deliberações democráticas para o qual surge a liberdade de opinião. Não visam contribuir para nenhuma deliberação, não comunicam ideias que possam instruir o compromisso que preside a deliberação democrática. Os crimes de ódio não tem a intenção de transmitir ou receber comunicação alguma para qualquer tipo de deliberação. O objetivo seguramente é outro. Não está na base do compromisso do deliberar democrático. Quer, isto sim, impor condutas anti-igualitárias de extermínio, de ódio e de linchamento. (STF, HC n.º 82.424-2/RS, confirmação de voto do Ministro Nelson Jobim, pp. 02-03.)

Retome-se o conceito de racismo social do STF no famoso (e multicitado) caso Ellwanger (HC 82.424/RS): racismo como a inferiorização de um grupo social relativamente a outro. Isso não significa que qualquer discriminação seria abarcada pelo conceito de racismo, mas somente a inferiorização estrutural, sistemática, institucional e histórica o seria, a partir da raça como dispositivo de poder, que visa, artificialmente, criar privilégios estruturais a um grupo dominante relativamente a um grupo dominado. Pelo menos é o sentido que defendi em minha sustentação oral, pelas entidades autoras da ação, em vídeo disponibilizado no youtube, onde destaquei o seguinte (trata-se de transcrição do vídeo da sustentação oral, com colchetes apenas adequando a linguagem quando estritamente necessários):

Homotransfobia como racismo […]. O Supremo, no famoso caso Elwanger, HC 82.424, decidiu que o antissemitismo é espécie de racismo, na acepção político-social e não biológica. Embora a discriminação por religião já fosse crime, o Supremo entendeu que o antissemitismo era uma discriminação por raça. Por que? Quando o caso chegou ao Supremo, o Sr. Ellwanger alegou que seria um “crime de discriminação não racista” e, por isso, estaria prescrito – foi o voto vencido do Ministro Moreira Alves, inclusive.

O Supremo o antissemitismo como crime de discriminação pra puxar a imprescritibilidade da Constituição. Então, a maioria do STF, reconhecendo que a Constituição, no art. 3º, IV, e a Lei Antirracismo falam em “raça” e “cor” em palavras diferentes, donde pela máxima hermenêutica de que “a lei não possui palavras inúteis”, não se pode considerar “raça” e “racismo” apenas pelo critério fenotípico, de cor de pele, enquadrou o antissemitismo, como discriminação “por raça”, tendo como ratio decidendi (fundamento determinante) o Projeto Genoma ter acabado com a crença de que a humanidade era composta por “raças biologicamente distintas entre si”, então, Ministro Nelson Jobim, para o racismo não virar “crime impossível”, pela unicidade biológica da raça humana, abandonou-se de vez o conceito biológico e adotou-se o conceito político-social de racismo, enquanto qualquer inferiorização de um grupo social relativamente a outro.

Bem, se este é o conceito constitucional de racismo, conceito ontológico-constitucional de racismo, e acredito que ele seja, então a homofobia e a transfobia configuram crime de racismo, você inferioriza pessoas LGBTI relativamente a heterossexuais e cisgêneros. O heterossexismo e o cissexismo, ideologias que pregam a heterossexualidade e a cisgeneridade obrigatórias, são ideologias racistas, porque visam classificar “o Outro” como desigual, inferior, estigmatiza-lo a partir de estereótipos negativos, e naturalizar o grupo hegemônico como o único “natural”.

Eu proponho, inclusive, que, como requisitos dessa inferiorização de grupo ser racista, que se restrinja ainda mais o conceito, para que só [se aplique] a discriminações estruturais, sistemáticas, institucionais e históricas, justamente para que não seja qualquer coisa que seja considerada como racismo [porque isso supõe sejam praticadas por um grupo dominante contra um grupo dominado]. O legislador pode criminalizar praticamente o que ele quiser, desde que respeite o princípio da proporcionalidade, vamos sintetizar assim. Mas, se ele colocar na Lei Antirracismo crime de discriminação “por time de futebol” ou “por cor de cabelo” – e sim, ouvimos isso, em discussões informais, eles seriam crimes de discriminação não-racistas, que prescrevem. Esse conceito do Supremo dá uma racionalidade que justifica os critérios da Lei Antirracismo – que fala em “raça, cor, etnia, procedência nacional e religião”.

Ora ora, quem está querendo privilégios aqui?! São religiosos fundamentalistas que não querem que a mesma criminalização que lhes protege, [contra] a opressão a religiosos, seja garantida à população LGBTI, pela criminalização da LGBTIfobia. Queremos igual proteção penal. Sempre que o Estado considera uma opressão intolerável, ele criminaliza a conduta. Isso é criticável nas esquerdas, mas é um fato objetivo. Beira a má-fé, a violação da boa-fé objetiva, o Senado alegar que a criminalização não resolve o problema. O Congresso criminaliza tudo, quando ele entende que a opressão intolerável. Lei Antirracismo – vamos ficar na negrofobia, Lei Maria da Penha, discriminação do HIV/AIDS, crimes contra a infância, crimes contra o idoso, nos Estatutos respectivos, Feminicídio, que na prática é um aumento de pena. Então, não se pode hierarquizar opressões – se outras opressões contra grupos vulneráveis são criminalizadas, a opressão contra LGBTIs tem que ser criminalizada da mesma forma. É esse o sentido do direito à igual proteção penal [pleiteado nas ações].

Na síntese da minha querida amiga e grande Djamila Ribeiro, que não fala de homotransfobia, a ilação é minha [para aplicar esse conceito à homotransfobia], racismo é um sistema de opressão, que supõe relações de poder entre um grupo dominante e um grupo dominado, e o restante da literatura negra antirracismo, que cito no memorial, raça é um dispositivo político-social de poder, que tem a finalidade de garantir privilégios sociais do grupo dominante e estigmatizar um grupo dominado. Uma construção social, de ideologia segregacionista, que reproduz relações hierárquicas de poder, falando autores negros em alterofobia, discriminação do Outro, para naturalizar e justificar desigualdades, e a segregação de grupos, a partir de estereótipos negativos, do grupo inferiorizado, e estereótipos positivos [do grupo dominante]. Classificar o grupo dominante como “pessoa ideal” e o grupo dominado como “pessoa degenerada” – vejam, tivemos a “teoria da segregação racial”, para oprimir negros, e “teoria da degeneração sexual”, para oprimir pessoas LGBTI.

Vejam, esse raciocínio não supõe analogia “in malam partem”. Se o conceito de racismo é político e social, inferiorização de um grupo social [relartivamente] a outro, então a interpretação literal, declarativa, do crime de discriminação por raça, do art. 20 da Lei 7716/89, a interpretação literal dele [isto] justifica. Estamos aqui dentro do limite do teor literal, que Claus Roxin, um dos maiores criminalistas vivos, afirma como único limite da interpretação penal criminalizadora. Estamos diante da moldura normativa de que falava Kelsen – e a minha interpretação não [decorre de] ato arbitrário de vontade [como, infelizmente, Kelsen trabalhava a interpretação judicial], mas a partir de conceito do STF, que é referendado pela literatura negra antirracismo. A ilação é minha, de estender à homotransfobia, mas acho incoerente afirmar o racismo ser um conceito político-social, mas vinculá-lo só à cor de pele. Vejam, me é dito, por vezes, que a discriminação contra negros e contra LGBTIs têm especificidades. Sim, têm, mas peguemos a Lei Antirracismo: cor, etnia, procedência nacional e religião. Peguem cor e etnia, que ninguém vai duvidar que são racistas.

Discriminação contra negros e discriminação contra índios têm especificidades, discriminação contra negros pobres e contra negros ricos têm especificidades também, e isso não afasta ambas serem racismo. Então, a questão é: temos um conceito abstrato de racismo, afirmado pelo Supremo. Todas as opressões que se enquadrarem nesse conceito serão espécies de racismo. Hoje o racismo é gênero do qual negrofobia, xenofobia, etnofobia e religiosofobia são espécies. E entende-se que a homofobia e a transfobia também devem se enquadrar [como espécies de racismo].

Conceito de raça, um conceito valorativo da lei penal, é hegemônico no mundo, críticas doutrinárias à parte, que você pode criminalizar condutas por conceitos valorativos, desde que não haja, na terminologia alemã, uma vagueza intolerável. Não me parece que o conceito de raça, nessa acepção afirmada pelo Supremo e pela doutrina, ainda mais se acolher-se esses requisitos estruturais, sistemáticos, sistemáticos e históricos, seja considerado como intoleravelmente vago, com todas as venias. [OBS. Falou-se em “estender” o conceito de racismo à homotransfobia, não se falando em “interpretação extensiva, que fique claro, no sentido de que a compreensão de racismo enquanto fenômeno político-social e não biológico é mais ampla, donde apta a abarcar a homotransfobia, como os 4 votos já proferidos deixam claro]

[Logo, não faz sentido limitar “racismo” apenas à biologia, fenótipo ou cor de pele, sendo que pessoas LGBTI são vítimas de racismo, pois inferiorizadas de forma estrutural, sistemática, institucional e histórica por heterossexuais cisgêneros]

[…] Mas eu tenho [outro] argumento material, substantivo, também. Não somos nós, LGBTIs, que nos consideramos uma “raça apartada”, merecedora de privilégios, como nos criticam de forma arbitrária, são homotransfóbicos que nos consideram uma raça maldita a ser exterminada. Coincidências históricas, quando saiu essa decisão, peticionei na ADO 26, uma réplica à contestação do Senado, que o Eminente Ministro Celso explicou os fundamentos em seu Relatório, citando uma entrevista de um neonazista, com o rosto fechado, em 2014, no SBT, dizendo que homossexuais são “raça do demônio”, em 2014. No HC 82.424, o Relator, Ministro Maurício Correa, enfrentou o tema também. Ele disse que, não importa o que nós pensamos – Supremo, judeus, naquele caso, acrescento hoje, nós LGBTI – não importa o que pensamos, importa como esse grupo é tratado socialmente. Nós somos considerados uma raça maldita, degenerada, que ou deve ser exterminada ou oprimida e estigmatizada, esse é o senso comum, de boa parte da população, que tem medo da população LGBTI, por preconceitos arbitrários, mas históricos e institucionalizados […]

Como se vê, as especificidades da negrofobia relativamente à homotransfobia não afastam ambas serem consideradas condutas racistas, visto que as opressões por cor de pele e por etnia têm evidentes especificidades e nem por isso uma ou outra deixa de ser considerada racista, para ficar apenas neste exemplo (o recorte de classe da discriminação entre negros pobres e ricos também gera especificidades, cabe lembrar) – e o fato da lei citar diversos critérios de discriminação na Lei Antirracismo não é decisivo, pois, como visto, isto tornaria tais crimes como “crimes de discriminação não-racista”, sem o regime constitucional do racismo.

Peço licença para transcrever trechos de minha doutrina, citada pelo histórico voto do Ministro Celso de Mello, onde explico o que diz a literatura negra antirracismo para fundamentar minhas conclusões, apresentando um conceito de racismo como conclusão, o que fiz na mesma lógica comum a livros de Direito: explicitei o entendimento de autores especialistas no tema para, a partir deles, elaborar um conceito próprio (que, neste caso, entendo que se coaduna com a essência de suas lições):

Com efeito, a literatura negra antirracismo corrobora a tese[3] de que raça é um elemento essencialmente político, sem qualquer sentido fora do âmbito socioantropológico, de sorte que a noção de raça visa naturalizar desigualdades e justificar a segregação de grupos socialmente minoritários, razão pela qual o racismo é uma forma sistemática de discriminação que se manifesta por meio de práticas conscientes e inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo social a que pertencem. A mesma doutrina afirma, assim, que o preconceito racial é baseado em estereótipos, tendo a discriminação racial como requisito fundamental o poder, ou seja, a efetiva possibilidade de uso da força para manutenção de privilégios de um grupo dominante sobre um grupo dominado[4].

Ademais, a doutrina negra antirracismo também afirma que raça e racismo consistem na prática do alterocídio, isto é, a constituição do “Outro” não como “semelhante” a si mesmo, mas como “objeto ameaçador”, que caberia destruir ou controlar, sendo que a raça foi sempre utilizada como um dispositivo de poder criado para designar um ser inferior, como um reflexo despauterado do “homem ideal”, sendo a lógica da raça, na produção de sujeitos raciais, a bestialização de grupos considerados “inferiores”, tendo a cultura e a religião assumido o lugar da biologia no tema do racismo. Aduz-se, assim, que o racismo consiste na obstinação de dividir, classificar, diferenciar e hierarquizar, a partir de uma categoria essencial da diferença, de sorte que o racismo consiste em processos de diferenciação, classificação e hierarquização, para fins de exclusão, expulsão e erradicação.

De sorte que a raça não tem nenhuma essência, mas caracteriza-se por um processo perpétuo de poder, movediço em seu conteúdo, visando o racismo substituir aquilo que “é” por uma realidade “diferente”, de forma necessariamente inferiorizante. Assim, afirma-se que a raça é, portanto, aquilo que permite situar, em meio a categorias abstratas, aqueles que procura estigmatizar, desqualificar moralmente e, eventualmente, internar ou expulsar[5].

Lembre-se que pessoas LGBTI em geral sempre foram desumanizadas, consideradas degeneradas, bem como animalizadas/bestializadas, como supostamente não aptas a controlar seus instintos, tidas como “perigosas” e que precisariam ser “controladas”, consideradas assim longe do modelo de pessoa ideal (heterossexual e cisgênera) que a ideologia de gênero heteronormativa e cisnormativa dominante nos padrões e estereótipos culturais e religiosos dominantes na sociedade.

Para, com isso, serem inferiorizadas relativamente a pessoas heterossexuais cisgêneras, como uma forma de se fabricar uma diferença relativamente a estas maiorias sexuais e de gênero, usada para “justificar” a discriminação estrutural, sistemática, institucional e histórica voltada a estigmatizar, desqualificar moralmente, expulsar do convívio familiar ou até internar em hospitais psiquiátricos as minorias sexuais e de gênero (a população LGBTI), em prol de ideologias normalizadoras do heterossexismo e do cissexismo dominantes.

Como se vê, a homotransfobia se enquadra nas categorias-chave do conceito de racismo, em sua acepção político-social (não por “analogia”, mas por perfeita identidade conceitual), enquadram-se no gênero de racismo e, assim, no crime de discriminação por raça do art. 20 da Lei n.º 7.716/89. Reitere-se, não por “analogia”, mas por se enquadrarem no próprio conceito político-social de raça e de racismo, logo, por interpretação literal/declarativa do termo legal “raça” e do termo constitucional “racismo”, ainda que “evolutiva”, caso se entenda que a compreensão biológica teria sido a “original” do tema (o que o Ministro Jobim, deputado constituinte, desmistificou, em seu voto no HC n.º 82.424/RS, ao aduzir que nunca se pretendeu limitar o “racismo” somente a pessoas negras, mas a todos os grupos minoritários que estavam na Constituinte – também judeus e homossexuais, além de negros[6]). Uma interpretação que se enquadra no limite do teor literal da moldura normativa respectiva, portanto.

Em outras palavras, se a literatura negra antirracismo, desvinculando o conceito de raça de aspectos biológicos, corretamente aduz que “a raça deve ser pensada como uma construção social porque ela estrutura relações de poder”, enquanto “uma categoria responsável pela inserção do indivíduo no plano social”, de sorte que “ela determina qual é o lugar que ele pode ocupar dentro de várias hierarquias”, razão pela qual a racialização dos indivíduos “designa um lugar de subordinação”, indicando “uma forma de identidade que goza de status privilegiado”, associando a identidade inferiorizada “com elementos negativos” e a identidade hegemônica “com elementos positivos”, para garantia de um “lugar de poder social e também um “mecanismo de reprodução de relações raciais hierárquicas”, a partir da “suposta inferioridade” do grupo subordinado, afirmando, ainda que “a raça é uma marca que representa relações de poder presentes em uma sociedade”, mediante mecanismos de atribuição de sentido a determinados traços para que a dominação de um grupo sobre outro possa ser legitimada, enquanto uma construção social que “procura validar projetos de dominação beaseados na hierarquização de grupos” com características distintas,[7] não se vê, aqui, razão para excluir a homotransfobia desses conceitos de raça, racialização e racismo, ante os conceitos de raça e racismo supra trabalhados.

Em suma, a partir dos conceitos oriundos da literatura negra antirracismo, supra trabalhados, então, em termos de um conceito constitucionalmente adequado, tem-se que o racismo é uma construção social geradora de uma ideologia segregacionista, que parte de relações de poder entre grupo dominante e grupo(s) dominado(s), hierarquizando aquele sobre este(s), gerando a estigmatização deste(s) por determinadas características suas, colocando-o(s) em um lugar de subordinação, para fins de reprodução de relações hierárquicas garantidoras de privilégios ao grupo dominante.

Um dispositivo de poder, criado para designar as pessoas integrantes do(s) grupo(s) inferiorizado(s) enquanto seres inferiores, em verdadeira alterofobia (discriminação “do Outro”), dispositivo este que existe para naturalizar desigualdades e justificar a segregação de grupos minoritários, a partir de estereótipos negativos relativamente ao(s) grupo(s) inferiorizado(s) e (estereótipos) positivos relativamente ao grupo dominante, que é elevado à categoria de pessoa ideal, com a cultura e a religião tendo assumido o lugar da biologia para concretizar processos de diferenciação, classificação e hierarquização, para fins de exclusão e discriminação social (estrutural), de sorte a estigmatizar e desqualificar moralmente o(s) grupo(s) inferiorizado(s), inclusive mediante sua desumanização ou, no mínimo, negando-lhes a garantia de igual respeito e consideração relativamente ao grupo dominante. 

Por vezes, ouço em réplica que a pessoa negra não pode “esconder” que é negra, mas a pessoa LGBTI+ poderia. Contudo, esse argumento, de boa-fé, ignora duas questões relevantes. Primeiro, parece presumir que a pessoa negra “só merece proteção” por ter nascido negra – ou seja, a pessoa que isto fala acolhe, ainda que muitas vezes sem perceber, uma teoria essencialista de direitos humanos, no sentido de que a pessoa só não mereceria ser discriminada por não poder mudar seu modo de ser ou viver objeto de preconceitos sociais, uma visão certamente conservadora a reacionária de direitos humanos.

Do contrário, por consequência lógica, se a pessoa negra pudesse “deixar de ser negra”, então ela deixaria de ser merecedora de proteção enquanto pessoa negra?! Não me parece, nem de longe, a melhor forma de se encarar a questão, pois o direito humano à liberdade significa o direito de se fazer o que se quiser, desde que não se prejudique terceiros. É a acepção liberal de liberdade que funda as democracias ocidentais, donde a pessoa negra e a pessoa LGBTI+ não merecem ser discriminadas porque não prejudicam a ninguém pelo simples fatos de serem negras ou LGBTI+ (ninguém “escolhe” ser LGBTI, simplesmente “se descobre” de uma forma ou de outra, mas é importante defender essa acepção do direito fundamental à liberdade).

Outra questão relevante ignorada por essa crítica é a seguinte: pessoas LGBTI+ têm profundo sofrimento psicológico por esconderem seu modo de ser LGBTI+. Irrelevante a não-heterossexualidade e a não-cisgeneridade eventualmente não terem influências genéticas (e acredito que influência pode haver, embora não determinação inata), pois é fato notório que pessoa não-heterossexual muito sofre e muita dificuldade tem em esconder sua homo/bi/pansexualidade, tendo que restringir muitos aspectos de sua vida (desde singelos comentários sobre o que faz fora do ambiente de trabalho, tema notoriamente constante em conversas tais), escondendo os relacionamentos que têm, no caso de relacionamentos homoafetivos, ou mesmo sua própria identidade de gênero, no caso de pessoas transgênero (travestis, mulheres transexuais e homens trans).

O Conselho Federal de Psicologia, em memorial protocolado no STF no MI 4733 e na ADO 26, bem explicou o sofrimento psicológico causado pela homofobia e pela transfobia, que gera pessoas agoniadas e que, inclusive, não conseguem produzir tanto (em seus trabalhos etc) como pessoas LGBTI+ assumidas e respeitadas enquanto tais. Então, mesmo dentro da lógica essencialista supra criticada, essa crítica (não feita pelo articulista ora respondido) desconsidera temas relevantíssimos e, por isso, não merece ser acolhida.

Acrescente-se o seguinte, sempre com o máximo respeito e deferência: não consigo entender como o conceito de racismo pode ser político-social, mas, ao mesmo tempo, estar “necessariamente vinculado” a uma característica biológica (o fenótipo – a cor de pele). Com isso não quero ser insensível à opressão a pessoas negras, que sofrem racismo desde antes de se criarem teorias de discriminação racial. O fato é que a concepção político-social de raça, racismo e grupos racializados abarca a orientação sexual/identidade de gênero e as identidades LGBTI. É a posição que aqui se defende, consoante supra explicitado, e nada do que aqui se defende implica menosprezo ou prejuízo às políticas de necessária reparação histórica à população negra e de enfrentamento do racismo negrofóbio: a compreensão do racismo de forma a abarcar a homotransfobia é apta a proteger a população LGBTI+ sem prejuízo nenhum à população negra.

Feitos esses esclarecimentos, sobre a tese da homotransfobia se enquadrar no conceito político-social de racismo (não entendo como um conceito político-social poderia ficar indissociavelmente ligado a um conceito biológico, fenotípico, de cor de pele, restando aí uma crítica a quem afirme essa compreensão político-social de raça e racismo, ao mesmo tempo que a vincule necessariamente a cor de pele), voltemos ao julgamento do dia 23 de maio de 2019 e o que lhe antecedeu.

2. Breves notas sobre o contexto que antecedeu o julgamento de 23 de maio de 2019. 

2.1. A absurda pretensão do Senado Federal e sua rejeição pela esmagadora maioria do STF

Havia uma enorme pressão, desde a semana anterior, para que o STF não realizasse o julgamento. Os tradicionais opositores da plena cidadania da população LGBTI pressionaram, muito, o Ministro Dias Toffoli, Presidente do STF (que define, soberanamente, a pauta do Tribunal), para retirá-lo de julgamento, sob a promessa que o Congresso Nacional aprovaria rapidamente uma lei sobre o tema. De outro lado, nós, da militância LGBTI juntamente com parlamentares aliados(as), lutamos incessantemente, também em reuniões com o Ministro Presidente do STF, para a manutenção do julgamento na pauta (o Deputado David Miranda, do PSOL/RJ, encampou sobremaneira essa luta, aliando-se ao tradicional apoio das Deputadas Erika Kokay, do PT/DF, e Maria do Rosário, do PT/RS, bem como o apoio dos Deputados Carlos Veras, do PT/PE, Helder Salomão, do PT/ES, e Tulio Gadelha, do PDT/PE, cabendo consignar, também, o apoio da Senadora Mara Gabrilli, do PSDB/SP, todos e todas na luta pela realização e término do julgamento da criminalização da homotransfobia – para citar aqueles/as com quem dialoguei amplamente nos dias que antecederam o julgamento).

Foi uma frustrante surpresa saber que, por volta das 21h do dia 22 de maio, a pauta do STF tinha sido alterada, para incluir processos daquele dia na pauta de quinta-feira, dia 23 de maio, ante a promessa do Ministro Dias Toffoli de que manteria o processo na pauta (o que denotava julgamento imediato no dia 23 de maio). Mas temos que ser justos(as) com o Ministro Dias Toffoli: a pauta de quinta-feira é sempre um pouco “fictícia”, no sentido de que é muito comum que um julgamento de quarta-feira ocupe também a pauta de quinta (não que isso não seja criticável, mas é uma praxe tradicional do Tribunal, desde muito antes dele assumir a Presidência dos STF). Sem falar que é certamente um trabalho hercúleo organizar a pauta do STF e definir o que precisa ser julgamento prioritariamente, ante inúmeros temas relevantes que pendem de julgamento. Seja como for, os(as) Ministros(as) foram bem rápidos(as) na definição da tese daquele julgamento e rapidamente foi pautado o julgamento da criminalização da LGBTIfobia.

Em seu início, concretizou-se aquilo que se especulava nos bastidores: verdadeira tentativa de golpe do Senado Federal, por sua advocacia, que apresentou petição, ao Ministro Celso de Mello, Relator da ADO 26, “informando” que sua Comissão de Constituição e Justiça havia aprovado o PLS 672/2019, que inclui os termos “orientação sexual” e “identidade de gênero” na Lei Antirracismo (Lei Federal 7.716/89), positivando o entendimento dos quatro votos que já tinham sido proferidos, embora estes tenham considerado a homotransfobia crime de discriminação por raça, na acepção político-social de racismo já afirmada no célebre HC n.º 82.424/RS.

Trata-se de “pedido” que beira a mais profunda e genuína má-fé, pois a jurisprudência do STF é pacífica há décadas de que a mera tramitação de projetos de lei não afasta a existência da mora inconstitucional e, assim, não faz as ações perderem o objeto (pedido implícito, porque não formulado expressamente, mas era clara a pretensão). O Ministro Celso de Mello disse que, a princípio, pretendia ouvir o advogado propositor das ações (este articulista) e a PGR, mas que, para fins de otimização de tempo do julgamento, isto dispensaria, lendo seu voto pela rejeição do “pedido” (algo de praxe na jurisprudência: se o Tribunal rejeita o pedido formulado, dispensa-se a oitiva da parte contrária, em contraditório, por ausência de prejuízo a esta, donde obviamente não nos opusemos a isso – sempre que um Tribunal não ouve a parte contrária é porque rejeita o pedido, daí a tranquilidade que tive no momento da citada fala do Ministro Relator). Em seu sempre erudito e substancioso voto, o Ministro Celso de Mello explicou a citada jurisprudência pacífica de décadas do Tribunal, pontuando julgados relatados, por exemplo, pelos Ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli nesse sentido, superando a jurisprudência do início dos anos 1990 em sentido contrário.

Outrossim, muito bem pontuou o Ministro Celso de Mello outros fatos notórios a quem tem mínimos conhecimentos do devido processo legislativo: a aprovação terminativa do PLS 672/2019 só o fará ir diretamente à Câmara dos Deputados se não houver recurso de Senadores(as), para que ele seja apreciado pelo Plenário do Senado, no prazo de cinco dias após a sua aprovação (prazo este que não terminou no momento em que este artigo é escrito, domingo, 26 de maio). Se isto ocorrer, sabe-se lá quando o Plenário do Senado o aprovará, sujeito a emendas modificativas de seu texto etc. Mas, mesmo que isso não ocorra, terá que ser remetido à Câmara dos Deputados, autuado com outro número, para que seja designado um(a) Deputado(a) Relator(a), o que por vezes leva tempo, pela disputa parlamentar para tanto (que ocorrerá, pelo interesse da autoproclamada “Bancada Evangélica” no tema, e o evidente interesse de parlamentares efetivamente aliados/as da causa LGBTI+).

Posteriormente, terá que passar por, pelo menos, uma Comissão (a CCJ), eventualmente duas, para só depois ser aprovado, também com o risco de recurso ao Plenário da Câmara. Se alterado o projeto vindo do Senado, ele retornará a esta Casa Iniciadora, para deliberação sobre as alterações. E, se finalmente aprovado, ainda estará sujeito ao veto do Sr. Presidente da República, um notório e histórico opositor da plena cidadania LGBTI. Como disse um dos Ministros durante o julgamento (salvo engano, o Ministro Lewandowski), são muitos “ses” que precisam se concretizar até este PLS 672/2019 se tornar lei, donde por mais louvável que seja (e é) e movimentação do Senado Federal sobre o tema, ela não faz as ações perderem o objeto e não afasta, assim, a mora inconstitucional.

Assim, com a inexplicável oposição dos Ministros Marco Aurélio e Dias Toffoli em respeitarem essa jurisprudência pacífica do STF, a claríssima pretensão do Senado foi rejeitada, por uma acachapante maioria de 9×2. Os votos vencidos acharam que os quatro votos já proferidos já teriam produzido o “efeito” de fazer o Congresso Nacional se movimentar (Ministro Dias Toffoli, que inexplicavelmente disse que teriam, também, “diminuído a violência” contra pessoas LGBTI, uma fala que chocou a plateia ali presente), e que seria, assim, um “momento de deferência” para com o Congresso Nacional (Ministro Marco Aurélio). Todavia, como bem disse a Ministra Cármen Lúcia, não cabe ao STF decidir o que quer julgar, no sentido de que, uma vez que a Presidência do STF tenha feito a dura escolha de pautar um tema (entre tantos outros temas polêmicos e relevantes que pendem de julgamento), ele precisa ser julgado. O Ministro Fux, em seu voto de mérito, posteriormente bem disse que é preciso que o STF dê a devida resposta jurisdicional imediatamente (defendeu que ela se desse ainda no dia 23 de maio). Seja como for, os fundamentos dos Ministros Marco Aurélio e Dias Toffoli não justificavam nenhuma exceção à citada jurisprudência consolidada do STF, tanto que não tentaram explicar a coerência de suas posições com dita posição pacífica dos precedentes do Tribunal nas últimas décadas.

2.2. As dificuldades que enfrentaremos na Câmara dos Deputados

Como destaquei em minha sustentação oral, dia 13 de fevereiro: a Constituição quer que a lei seja aprovada, não que o projeto fique tramitando indefinidamente no Congresso Nacional. Cabendo destacar que toda essa “agilidade” do Congresso Nacional se deu, primordialmente, na semana anterior ao dia da retomada do julgamento, o que remete a lamentável praxe histórica do Congresso Nacional: sempre que o STF está para julgar ou retomar o julgamento de um tema de omissão legislativa inconstitucional, algum(a) parlamentar pede que o julgamento não ocorra, ou que algum(a) Ministro(a) peça vista, com a promessa que o Congresso irá, finalmente, aprovar lei regulamentadora.

Ocorre que quase nunca a promessa é cumprida: só me lembro de um caso em que isso, de fato, ocorreu (o tema do aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, e somente quando o STF já discutia a forma que iria regulamentar o tema, a despeito de a Constituição expressamente exigir lei formal para tanto, por se tratar de omissão/mora inconstitucional do Congresso na aprovação da lei constitucionalmente exigida). Na grande maioria dos casos, o Congresso descumpriu tal promessa, donde, com todo o respeito, essa lamentável tradição institucional do Parlamento não pode ser desconsiderada na análise do tema.

Logo, como eu e parlamentares inclusive mencionamos em audiência com o Ministro Dias Toffoli, é irreal achar que um Congresso Nacional que nunca aprovou nenhuma lei preocupada com a cidadania da população LGBTI+ vá dar prioridade à criminalização da homotransfobia, ainda mais em um contexto de discussões sobre “Reforma” da Previdência (a deforma de Guedes-Bolsonaro), de análise de polêmicas medidas provisórias do Governo Federal etc. Por outro lado, se o STF finalizar o julgamento e efetivamente disser que a homotransfobia configura crime de racismo, aí sim a “Bancada Evangélica” e demais parlamentares que tradicionalmente se opõem a aprovar leis em defesa da população LGBTI+ terão efetivo interesse real em aprovar uma lei de criminalização da LGBTIfobia. Somente aí o tempo do Congresso Nacional agirá com a rapidez que o tempo demanda, destacaram os(as) parlamentares na citada audiência.

Isso porque, como amplamente divulgado na mídia, é notório que querem incluir alguma ressalva sobre a não-criminalização do regular exercício da liberdade religiosa. A princípio, uma tal ressalva seria desnecessária, pelo pacífico conceito penal de tipicidade material, que significa, em síntese, que se um fato se enquadra, formalmente, na semântica do texto de um crime (por exemplo, “ofender a dignidade ou o decoro”, do crime de injúria, com a pessoa se sentindo “ofendida”), mas, ao mesmo tempo, se configura como exercício regular de um direito (por exemplo, a liberdade religiosa, um padre ou pastor dizendo que entende que a homossexualidade seria “um pecado aos olhos de Deus”), então o fato não é, materialmente, considerado como crime (mesmo que, no exemplo citado, a pessoa se sinta “ofendida” com isso).

Fico muito tranquilo neste tema, pois falei exatamente isso em minha sustentação oral, nas recentes entrevistas ao Fantástico (19.5.2019) e à CBN (22.5.2019), onde também expliquei que não nos opomos a isso, enquanto Movimento LGBTI+, desde que se coloque, também, o que tenho chamado de “ressalva da ressalva”, ou seja, que a manifestação regular de liberdade religiosa não configura crime, desde que não se configure como discurso de ódio, assim entendido como a incitação ao preconceito, à discriminação, ao ódio, à segregação e à intolerância, que é o conceito doutrinário de discurso de ódio. Traduzindo: ninguém vai seriamente dizer que a liberdade religiosa permitiria apedrejar mulheres ou segregar pessoas negras nas escolas, como, no passado, era usada para isto justificar. Da mesma forma, não pode ser usada para oprimir pessoas LGBTI+.

Tenho absoluta tranquilidade para falar do tema, porque entreguei petição a todos(as) os(as) Ministros(as) do STF isto explicando (aqui disponibilizada, com explicações prévias sobre o contexto social e parlamentar do debate), na qual, como proposta de tese a ser afirmada pelo Tribunal, sugeri o seguinte, em nome de ABGLT e PPS (atualmente denominado Cidadania), entidades propositoras da ação, obviamente com o aval de seus representantes:

TESE. O crime de discriminação por raça, previsto no art. 20 da Lei 7.716/89, bem como o crime de injúria racial (art. 140, §3º, do Código Penal) e demais delitos raciais, abarcam os discursos de ódio, injúrias e discriminações caracterizados como homofóbicos ou transfóbicos, por interpretação conforme a Constituição decorrente do conceito constitucional, político-social, de raça e racismo, já afirmado pelo STF (HC 82.424/RS). Igualmente, a motivação homofóbica ou transfóbica deve gerar a incidência da agravante genérica relativa ao motivo torpe (art. 61, II, “a”, do Código Penal). Nada nesta decisão deve ser interpretado como proibindo manifestações de liberdade religiosa e proselitismo religioso que não se configurem como discursos de ódio, entendidos como a incitação ao ódio, à intolerância, à discriminação, à segregação e/ou à violência”. (grifo nosso)

Como se vê, em nenhum momento se pretende criminalizar a liberdade religiosa. Dizer respeitosamente que algo constitui “pecado” não constitui nem jamais constituirá crime. Da Tribuna do STF eu disse que serei o primeiro a dizer que isso seria inconstitucional e eu seria (e serei) o primeiro a isto defender, se um dia vier a ocorrer. Não é, nem de longe, o caso aqui. Pois uma coisa é dizer que algo é “pecado”, outra, bem diferente, é dizer que gays seriam “pedófilos”, que pessoas LGBTI seriam “perigosas”, que deveriam ser “combatidas”, que precisariam ser “tratadas bem longe da gente”, apenas para pegar alguns exemplos reais de discursos já proferidos contra pessoas LGBTI, e que invocavam a “liberdade de expressão” ou a “liberdade religiosa” para isto justificar.

Reiterando: da mesma forma que ninguém pode seriamente dizer que a liberdade religiosa permitiria apedrejar mulheres ou segregar pessoas negras nas escolas, como, no passado, era usada para isto justificar, então a liberdade religiosa não pode ser usada para injuriar, imputando qualificações (adjetivações) negativas a toda e qualquer pessoa LGBTI, pelo simples fato de ser LGBTI. Isso constitui discurso de ódio, significa imputar uma suposta “periculosidade” a uma pessoa por uma simples característica sua, algo de todo descabido. Parafraseando a grande Djamila Ribeiro, quando um homem branco erra, ninguém culpa a branquitude, mas apenas aquele homem branco individualizado, mas quando uma pessoa negra erra, toda a negritude é responsabilizada, o que é de todo descabido e, acrescento, puro discurso de ódio.

Da mesma forma, quando uma pessoa heterossexual e cisgênera erra, ninguém culpa a heterossexualidade e a cisgeneridade por isso, mas apenas a pessoa héteroCis em questão, mas quando uma pessoa LGBTI erra, então toda sexualidade não-heteroafetiva ou toda identidade transgênera (conforme o caso) é culpabilizada. Trata-se de conduta absurda, que não pode ser tolerada (consoante o célebre paradoxo da tolerância: deve-se tolerar a todas e todos, menos as pessoas intolerantes, porque sua intolerância acabaria por destruir a própria regra da tolerância).

Nesse tema, vale lembrar o citado debate da CBN, do qual também participou o Dr. Walter, que fez sustentação oral contrária às ações no dia 13 de fevereiro de 2019, em nome da autoproclamada Frente Parlamentar pela Família (embora apenas a família heteroafetiva, sem preocupação com a família homoafetiva…): em discurso muito comum a nossos opositores, ele disse que seria preciso definir o que seria “discurso de ódio”, o que seria “homofobia” etc, para fins de precisão legislativa.

Ele disse que se preocupa com as ações pedirem a criminalização de “ofensas” a pessoas LGBTI, por temer que isso poderia ser potencialmente prejudicial à liberdade religiosa. Respondi imediatamente: primeiro, as ações são direcionadas a uma Suprema Corte, então usam termos em seu significado técnico-jurídico, de sorte que o termo “ofensas” foi usado no sentido técnico-jurídico de injúrias, lembrando-se que o crime de injúria fala em “ofender a dignidade e o decoro”, ao passo que a jurisprudência exige, como requisito indispensável a um discurso ser considerado ilegal, que haja o chamado “animus injuriandi”, a intenção de ofender, não mera descrição de fatos, não a mera leitura do que diz um livro sagrado etc. Isso é pacífico na doutrina jurídica e na jurisprudência.

Por outro lado, respondi que criminalizar a homotransfobia com igualdade, para combater privilégios, significa criminaliza-la como se criminaliza tudo nesse país, o que falei no sentido de que o artigo 20 da Lei Antirracismo, ao criminalizar a conduta de “praticar, induzir ou incitar o preconceito e a discriminação por raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, não se preocupou em definir “o que seria” preconceito, discriminação ou os discursos de ódio que ele criminaliza. Isso é analisado, caso a caso, pelo Judiciário, na citada lógica do animus injuriandi. Então, configura profundo desconhecimento técnico de como as coisas realmente são no mundo real (e não em um hipotético mundo das ideias platônico) achar que seria “necessário” reinventar a roda na criminalização da homotransfobia.

Por outro lado, como também destaquei na citada entrevista, é irreal achar que o Judiciário, uma vez criminalizada a homotransfobia como crime de racismo, irá passar a pura e simplesmente punir, como criminosos, quaisquer falas que desagradem de qualquer forma a comunidade LGBTI+. Com efeito:

A uma, lembre-se que no âmbito cível, em processos sobre danos morais, é pacífico que não é qualquer dissabor cotidiano que gera o dano moral, não sendo o mero desconforto caracterizador de atos ilícitos, devendo a fala em questão transcender os limites do razoável para se caracterizar como dano moral (indenizável). Se isso é assim na esfera civil, notoriamente menos exigente que a penal para a caracterização de um ato ilícito (não é incomum um fato considerado “dano moral cível” não caracterizar “crime contra a honra” no âmbito penal), obviamente também o seria na questão dos crimes contra a opinião (injúria, difamação e discursos de ódio).

Por outro lado, e mais importante, basta ver a aplicação prática da Lei Antirracismo, que mostra um Judiciário muito tímido na punição de discursos negrofóbicos. A paradigmática obra do Professor Adilson José Moreira, intitulada Racismo Recreativo, da Coleção Feminismos Plurais, organizada pela filósofa Djamila Ribeiro, bem mostra isso: mesmo em casos extremamente ofensivos e, portanto, de racismo negrofóbico, o Judiciário disse não ver “animus injuriandi”, mas mera intenção de “brincar”, puro “humor” (o chamado “animus jocandi”), por exemplo, em horrendo caso de uma mulher negra que, ao comprar bananas, ouviu de uma cidadã se ela estaria comprando-as para seus “macaquinhos” (SIC). E o Judiciário disse, absurdamente, que não havia aí racismo (injúria racial), mas mera “brincadeira”.

Então, no mundo real, uma preocupação pragmática, preocupada com aquilo que efetivamente acontece e não com elucubrações desprovidas de base empírica que lhes sustente, demandaria que a lei dissesse que determinados fatos não excluem a ilicitude, não que determinados fatos não configuram crime. Contudo, como uma mostra de boa-fé, nós do Movimento LGBTI+ temos deixado claro que não nos opomos à ressalva de liberdade religiosa não configurar crime, desde que conste a citada ressalva da ressalva, que afirma que os discursos de ódio não serão isentos de punição. Algo que claramente precisa ser dito, já que, em entrevista dada ontem, o Deputado Federal Sóstenes Torres se opôs a aprovar crimes de ódio contra pessoas LGBTI, por (absurdamente) entender isso como potencialmente “prejudicial” à liberdade religiosa (sic!), um entendimento, como visto, pura e simplesmente indefensável, mas que demonstra a extrema dificuldade que enfrentaremos, na Câmara dos Deputados, no debate sobre o tema.

É incrível a contradição dos discursos de nossos opositores, que nos acusam de querermos “privilégios” (sic), quando tudo que queremos é igualdade, a igual proteção penal de que falam as ações em julgamento no STF. Como dito, a Lei Antirracismo, nossa lei penal geral antidiscriminatória, não traz ressalva nenhuma nos crimes de discriminação por religião, por procedência nacional, por etnia, por cor e por raça (onde se enquadra a homotransfobia, no citado conceito político-social de racismo), então, por qual motivo acham “necessário” tratar diferentemente apenas os crimes de ódio homotransfóbicos?

2.2.1. A insuficiência de meras agravantes genéricas ou qualificadoras nos crimes do Código Penal. Persistência de omissão inconstitucional parcial

Especula-se que uma das propostas da “Bancada Evangélica”, na Câmara dos Deputados, seria meramente “agravar penas” dos crimes de violência, no Código Penal. Aqui, sempre tento ser justo: não se trata necessariamente de má-fé, podendo haver muita ignorância (desconhecimento) sobre o tema. Isso porque aparentemente quase ninguém sabe que as condutas de discriminar alguém e de proferir discursos de ódio (ofender e inferiorizar uma coletividade de pessoas) não constituem crime no Código Penal (CP), mas apenas na Lei Antirracismo.

Com efeito, o crime de constrangimento ilegal (art. 146 do CP) exige violência ou grave ameaça para sua configuração, donde não é qualquer discriminação que é por ele punida – por exemplo, demitir alguém por preconceito e não-atender em estabelecimentos comerciais ou deles expulsá-los, sobretaxar em aluguéis, condutas muito praticadas contra pessoas LGBTI, não são por ele criminalizadas (e nem se diga que podem ser punidas nas Justiças Trabalhista e Civil, pois estamos aqui debatendo a seara penal na luta por igualdade: se alguém for demitido, não-atendido ou sobretaxado por sua religião, a conduta será passível de punição tanto na seara penal quanto na seara trabalhista ou civil, donde queremos igualdade para também isto ocorrer na discriminação contra pessoas LGBTI).

Da mesma forma, os crimes de difamação e injúria (arts. 139 e 140 do CP) abarcam apenas ofensas a pessoas individualizadas, não ofensas a coletividades (o que chamo de injúrias coletivas), donde não punem os discursos de ódio. Em ambos os casos, a criminalização encontra-se apenas no art. 20 da Lei Antirracismo, ao considerar crime as condutas de “praticas, induzir ou incitar o preconceito ou a discriminação por raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Por esse motivo, a retórica de que “o Código Penal é suficiente para combater a homotransfobia” é improcedente, porque não pune duas das condutas que mais assolam a comunidade LGBTI+: a discriminação e os discursos de ódio (não obstante os casos de violência física tenham, compreensivelmente, maior mídia). Sem inclusão da homotransfobia nos crimes da Lei Antirracismo, qualquer lei que a criminalize estará incompleta e, assim, incidirá em omissão inconstitucional parcial, por não abarcar condutas que estão entre as que mais assolam a comunidade LGBTI+.

Cabe lembrar que é pacífico na doutrina constitucionalista que a omissão inconstitucional pode ser total (inexistência de lei) ou parcial (lei que regulamenta de maneira insuficiente o tema, em aspectos relevantes). Obviamente, o Congresso Nacional tem ampla liberdade de conformação para regulamentar o tema, mas não pode deixar de regulamentar aspectos indispensáveis ao núcleo essencial do tema em questão. Não se trata de impor a decisão do STF como de mera execução, sem liberdade de conformação. De forma nenhuma. Mas, como visto, as condutas de discriminar alguém e praticar discursos de ódio constituem o núcleo essencial da criminalização da homotransfobia, por estarem entre as opressões que mais assolam a comunidade LGBTI+. Assim, não podem deixar de ser criminalizadas.

2.2.2. A resistência à expressão identidade de gênero. Dificuldades específicas com a transfobia

Há um forte discurso de que a Bancada Evangélica “não aceita” a expressão identidade de gênero, que, como se sabe, é a que abarca travestis e transexuais (ao lado de pessoas cisgêneras). Obviamente, isso decorre da verdadeira demonização que fizeram da palavra “gênero”, no espantalho moral reacionário que criaram ao inventar-se a expressão “ideologia de gênero”, para demonizar tudo aquilo que não se enquadre na heterossexualidade e na cisgeneridade.

Seja como for, a posição do Movimento Social, representado nas ações pela ABGLT – Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos, do PPS/Cidadania, da ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais, do GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero e da Associação Mães pela Diversidade é a de que o texto aprovado pelo Senado, no PLS 672/2019, é o texto que abarca de maneira adequada a criminalização da LGBTIfobia (cf. item 2.2.1, supra), ainda que eventualmente inclua a “ressalva” da liberdade religiosa, desde que com a “ressalva da ressalva”, no sentido de que ela não permitirá a incitação ao preconceito, à discriminação, ao ódio, à segregação ou à violência.

É um texto que parece sofrer forte oposição na Câmara dos Deputados, por parlamentares reacionários que o considerariam “muito amplo” (sic). Aqui, retomamos a curiosa contradição dessas pessoas: nos acusam de querermos “privilégios”, o que não é verdade, pois queremos apenas a mesma proteção penal a pessoas LGBTI que a Lei Antirracismo concede, por exemplo, à discriminação por religião. Por que consideram a Lei Antirracismo “muito ampla” para coibir a LGBTIfobia, mas não a consideram assim para coibir a discriminação religiosa?! Nunca explicam isso. Como se vê, quem deseja privilégios não é o Movimento LGBTI+, mas os fundamentalistas e conservadores que se opõem a que a homotransfobia seja punida da mesma forma que as demais opressões criminalizadas pela Lei Antirracismo. Remeto às considerações do tópico 2.2, sobre o fato disso em nada prejudicar a liberdade religiosa que não incite ao preconceito, à discriminação, ao ódio, à segregação e à violência, consoante tese que propus ao STF sobre o tema, em nome das entidades propositoras das ações (ABGLT e PP/Cidadania).

3. Respostas às críticas abolicionistas (Abolicionismo Penal) e minimalistas (Direito Penal Mínimo)

O abolicionismo penal é uma relevantíssima doutrina que se preocupa com a famosa e nefasta seletividade do sistema penal, que notoriamente pune, de forma mais dura, grupos vulneráveis, como pessoas pretas e pobres, sem falar nas condições desumanas dos presídios. Em popular expressão coloquial, diz-se que o sistema penal pune primordialmente o famoso grupo PPP – Pretos, Pobres e Profissionais do Sexo. Não se questiona isso, mas o que se questiona é quererem jogar a responsabilidade da nefasta seletividade penal em uma lei antidiscriminatória, quando, notoriamente, são as leis de crimes contra o patrimônio e de criminalização do uso pessoal de drogas as responsáveis pelo horrendo e real genocídio da juventude negra e perseguição da população pobre em geral. Logo, não é uma lei antidiscriminatória, como a Lei Antirracismo, que gera o encarceiramento em massa da população negra e pobre, o que mostra que culpabilizar a criminalização da homotransfobia por isso implica, com todo o respeito, errar o alvo. Ou seja, atira-se com uma crítica correta, mas direciona-se o tiro no alvo incorreto.

Há muito tempo debato esse tema. Em síntese, respondo às críticas abolicionistas da seguinte forma:

(i) hierarquização de opressões. A não se criminalizar a homotransfobia como se criminaliza tudo nesse país, estar-se-á passando a mensagem de que as opressões criminalizadas seriam “mais graves” que as não-criminalizadas. Vivemos em uma sociedade punitivista, que acredita no uso do sistema penal, e sempre que o Estado considera uma opressão intolerável, ele a criminaliza (algo bem ressaltado pelo voto do Min. Alexandre de Moraes, na ADO 26 e no MI 4733, vale ressaltar). Assim, como já escrevi em outra oportunidade, aqui no Justificando, ou se muda todo o sistema penal, para uma lógica de Justiça Restaurativa ou mesmo uma lógica abolicionista não-penal, ou se pune criminalmente a homotransfobia como se pune criminalmente tudo nesse país. Não somos “tubos de ensaio”: a decisão sobre como punir as opressões em uma sociedade é uma decisão fundamental da sociedade, donde ou se muda todo o sistema penal/punitivo brasileiro, ou se pune criminalmente a homotransfobia como se pune criminalmente tudo neste país. Assim, não cabe criar um “Direito Penal de Segunda Classe” ou uma “Cidadania de Segunda Classe” onde se pune de forma distinta ou (pior) não se puna a LGBTIfobia relativamente a como se pune tudo nesse país;

(ii) já temos penas alternativas no Brasil, pelo critério do tamanho da pena. Nos termos do art. 44, I, do Código Penal, quando a condenação criminal for de até quatro anos, a pena será substituída por penas alternativas (como prestação de serviços comunitários, pagamento de cestas básicas etc), exceto se o Juízo fundamentar (simplificando) a extrema gravidade do caso, a demandar a privação da liberdade (prisão), o que é raro. Ao passo que criminalizar a homotransfobia na Lei Antirracismo gerará penas de 1 a 3 anos de prisão no geral, sendo que algumas qualificadoras aumentam a pena de 2 a 5 anos. Como se vê, a esmagadora maioria das penas (de até 4 anos) implicará na sua substituição por penas alternativas, de sorte que a criminalização da homotransfobia não será responsável por aumentar a população carcerária desse país, excetuados casos de extrema gravidade que demandarem, de forma indispensável, a segregação, algo a ser devidamente fundamentado na decisão condenatória (e, reitere-se, parece raro, na prática);

(iii) incoerência de ser contra novas criminalizações sem ao mesmo tempo defender a revogação das leis penais já existentes, de proteção a minorias. Para ter um mínimo de coerência e merecer respeitabilidade em seu argumento, quem se opõe à criminalização da homotransfobia (LGBTIfobia) ou qualquer outra opressão, precisa, por coerência lógica, pregar a revogação das Lei Antirracismo[8], para ficar apenas na negrofobia, Lei Maria da Penha[9], [Lei que criminaliza a] discriminação da Pessoa Vivendo com HIV/AIDS[10], crimes conta a infância, crimes contra o idoso nos estatutos respectivos, [Lei do] Feminicídio[11], que na prática um aumento de pena… Então, não se pode hierarquizar opressões: se outras operações contra grupos vulneráveis são criminalizadas, a opressão contra pessoas LGBTI tem que ser criminalizada da mesma forma, é esse o sentido do direito a igual proteção penal invocado na petição inicial das ações. Quero deixar claro, eu jamais defendi ou defenderei isso, até porque tais revogações seriam inconstitucionais (princípios da proibição do retrocesso social, proibição de proteção insuficiente e inconstitucionalidade de se revogar leis que a Constituição expressamente exige sejam criadas, consoante praticamente pacífico, extremamente hegemônico, na doutrina constitucionalista), mas a coerência demandaria isso de críticos/as de novas criminalizações que visem proteger grupos vulneráveis. Infelizmente, a coerência é uma virtude que anda, muito, em falta no mundo contemporâneo e neste tema em particular…;

(iv) o que gera o encarceramento e genocídio da população negra e pobre são as leis de drogas e de crimes contra o patrimônio, não leis antidiscriminatórias. Leis antidiscriminatórias dão instrumentos de luta à população oprimida e, com esforço, consegue-se punir o homem branco hétero cis classe média/alta sim – sempre digo, precisamos, além de reforçar as Defensorias Públicas, aumentar as advocacias pro bono (gratuitas) para pessoas pobres e grupos vulneráveis em geral, para lhes dar defesas técnicas de qualidade, porque isso já ajudará sobremaneira no combate a injustiças do sistema penal. Ademais, a médio e longo prazo, também ajudará que movimentos sociais organizados pressionem o Judiciário, denunciando e fazendo repúdios públicos, perante a mídia e redes sociais, decisões que se negam a punir condutas opressoras (algo muito comum na prática da Lei Antirracismo, como prova o citado livro do Professor Adilson José Moreira, sobre “Racismo Recreativo”). Entre a utopia da doutrina abolicionista e a minha utopia de um Estado Penal não-seletivo ou com seletividade bem baixa, creio que a minha é menos utópica. Então, fico na crítica tradicional ao abolicionismo penal: embora traga relevantíssimas críticas, que devem ser consideradas – e o são, nesta minha proposta –, ela ainda se afigura completamente irreal no contexto social contemporâneo, especialmente pela ausência de propostas, por pessoas abolicionistas, de projetos de lei com um sistema punitivo não-penal, objeto do próximo tópico;

(v) onde está um Projeto Modelo de Código Punitivo Não-Penal que, pragmaticamente, resolva os problemas gravíssimos de homicídios, estupros, lesões corporais etc? Isso porque mesmo minimalistas (doutrina do Direito Penal Mínimo/Estado Penal Mínimo) defendem pena de prisão (reclusão/cadeia) para casos gravíssimos tais, e penas alternativas para o restante (posição do Deputado Jean Wyllys, por exemplo). Com todo o respeito, é muito fácil criticar indefinidamente um sistema já existente e nada propor de concreto em seu lugar. Críticas tais são relevantes, que fique claro, mas acabam se tornando inócuas, se não se apresentam propostas pragmaticamente possíveis de substituírem o sistema que tanto se critica.

Serei o primeiro a apoiar uma proposta tal, se surgir, e me disponho a ajudar a produzi-la, o mesmo valendo para uma lógica que, ainda penal, substitui o sistema punitivista atual por um sistema de verdadeira Justiça Restaurativa, preocupado com a reparação do sofrimento da vítima e ressocialização do(a) criminoso(a) (algo que a Lei de Execuções Penais já demanda, sendo solenemente desconsiderada, na prática, pelo Estado Brasileiro, no verdadeiro Estado de Coisas Inconstitucional do sistema carcerário brasileiro, como já reconhecido pelo próprio STF). Mas, até lá, não há como não se criminalizar a homotransfobia como se criminaliza tudo neste país, sob pena de hierarquização de opressões (cf. supra).

Mas nada disso é sequer enfrentado por críticos(as)… Não estou exigindo que concordem, mas apenas que tenham um mínimo de boa-fé para fazerem um debate honesto que enfrente esses pontos… mas, pelo visto, isso é “exigir demais” em um mundo torpe de pós-verdades para todos os lados, em verdadeiros simplismos acríticos de conveniência, de fingir que não sabe quais são as críticas ao seu posicionamento e não-enfrentá-las… E para evitar mal entendidos, não cobro que todos(as) os(as) críticos(as) abolicionistas saibam disso, protesto contra quem já ouviu essas críticas minhas e, ainda assim, finge que não as ouviu e meramente se repete nos fundamentos que já refutei…

Por ter essa posição, integro o que parte das esquerdas progressistas chama de “esquerda punitiva” (sic), notória terminologia criada pela Professora Maria Lucia Karam (que acusou as ações e o STF de terem “criminalizado por analogia”, de sorte a merecer as duras críticas que abriram este artigo[12]), numa crítica à confiança no Estado Penal para proteger grupos vulneráveis pela citada seletividade do Estado Penal. A essas pessoas, respondo que elas integram o que chamo de esquerda idílica, que fica presa a uma espécie de platônico mundo das ideias, mas que nada, de concreto, fazem para mudar o sistema penal que tanto criticam, aparentemente esperando algum milagre divino para que o sistema penal desapareça e algo maravilhoso surja em seu lugar.

Daí a necessidade de apresentarem um citado Projeto Modelo de Código Punitivo Não-Penal para as opressões sociais, que provavelmente adotaria a lógica da Justiça Restaurativa e penas não-privativas de liberdades (obrigatoriedade de realização de cursos de capacitação e sensibilização no tema em questão, prestação de serviços comunitários, pagamento de cestas básicas a entidades beneficentes etc). Seja como for o modelo ideal que a doutrina abolicionista defenda, ele precisa ser apresentado, inclusive como Projeto de Lei, para que possa ser debatido democraticamente, no Congresso Nacional e na sociedade em geral. Até lá, a crítica de utopia inalcançável continuará sendo legítima à doutrina abolicionista (reiterando que a “minha utopia é menos utópica” que a deles, por um sistema penal não-seletivo ou, pelo menos, menos seletivo).

Sobre as críticas ditas minimalistas, também há tempos as refuto, explicando que pela lógica do Direito Penal Mínimo, a homotransfobia deve ser criminalizada. É preciso superar o verdadeiro senso comum que critico há muito em debates sobre o minimalismo penal. Isso porque o que a teoria do Direito Penal Mínimo propugna é que a criminalização de condutas deve se dar apenas quando houver “bem jurídico” relevante, no sentido de indispensável à vida em sociedade (digno de tutela penal) e, ainda, apenas quando os demais ramos do Direito se mostrarem incapazes de resolver o problema. Logo, afirma que não é qualquer conduta que deve ser criminalizada, mas apenas aquelas que atendam tais requisitos, hipótese na qual a criminalização se justificará inclusive pela teoria do Direito Penal Mínimo, o que ocorre no presente caso.

Com efeito[13], começando pelo requisito da ultima ratio, nos poucos Estados ou Municípios que possuem leis anti-homotransfobia (com penas administrativas, como advertência, multa e, para pessoas jurídicas, suspensão ou cassação de licença de funcionamento, como no caso da Lei Estadual Paulista 10.948/01), a discriminação homotransfóbica não diminuiu, o que mostra que os demais ramos do Direito têm se mostrado insuficientes para combater a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero cometida contra pessoas LGBTI – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (não que a criminalização seja panaceia de todos os males, como acredita a Direita, mas erram as esquerdas progressistas ao achar que ela em nada ajuda, pois há efetiva diminuição de condutas criminalizadas, embora não erradicação, ao passo que o ponto aqui feito é o de que, sendo ineficazes os demais ramos do Direito, como são neste caso, a criminalização se torna necessária mesmo à luz da teoria minimalista).

Ademais, há bem jurídico digno de tutela penal, decorrente dos direitos fundamentais à tolerância e à liberdade, a saber, os direitos à livre orientação sexual e à livre identidade de gênero, logo, o direito de vivenciar sua orientação sexual ou identidade de gênero sem opressões. Obviamente tais direitos não dependem de regulamentação para poderem ser exercidos, mas estão materialmente inviabilizados pela verdadeira banalidade do mal homotransfóbico[14] que vivemos na atualidade, caracterizada pela clara crença de incontáveis pessoas (“normais”, e não “monstros nazistas”) de que teriam um pseudo “direito” de ofender, discriminar, agredir e até matar pessoas LGBTI por sua mera orientação sexual ou identidade de gênero.

Pessoas LGBTI que moram na cosmopolita cidade de São Paulo chegam a ter medo de andar de mãos dadas e, enfim, agir como namorados(as) da mesma forma que casais heteroafetivos por medo de violência homotransfóbica na cosmopolita Avenida Paulista: a famosa lampadada de 2010 virou um caso paradigmático sobre o tema, mas que está (lamentavelmente muito) longe de ser isolado. Tivemos em 2011 e 2012 os absurdos casos de heterossexuais sofrendo homofobia, a saber, pai e filho agredidos por estarem abraçados (o pai perdeu parte da orelha) e irmãos gêmeos espancados por estarem abraçados (um deles faleceu) – isso por terem sido entendidos como casais homoafetivos. Neste ano de 2018, tivemos o caso de uma mulher cisgênero com câncer que, por estar careca, foi confundida com um homem trans e foi, por isso, ofendida e agredida[15].

Esses exemplos mostram a verdadeira banalidade do mal homotransfóbico que vivemos (se heterossexuais estão sendo vítimas de homofobia e cisgêneros de transfobia por não corresponderem aos estereótipos de gênero impostos pela ideologia de gênero heteronormativa e cisnormativa que assolam nossa sociedade, imagine-se o que não ocorre com pessoas LGBTI, vítimas de tão notórias e constantes opressões por sua identidade sexual e de gênero minoritárias).

4. Conclusão

A plena cidadania da população LGBTI+ ganhou histórica e paradigmática vitória com a consolidação da maioria do STF em prol do reconhecimento do dever constitucional do Congresso Nacional de criminalizar, de forma específica, a homotransfobia, de considera-la espécie do gênero racismo e, assim, da aplicação do crime de praticar, induzir ou incitar o preconceito ou a discriminação por raça (art. 20 da Lei 7.716/89) para abarcar a discriminação e os discursos de ódio motivados na orientação sexual e na identidade de gênero da vítima. Isso até que o Congresso Nacional se digne a cumprir seu dever constitucional de legislar, aprovando lei específica sobre a homotransfobia.

O Legislativo sempre poderá (e deverá) aprovar lei específica, que prevalecerá dali em diante, a qual, obviamente, deverá caracterizar uma proteção eficiente à população LGBTI, algo que supõe, além de se agravarem as penas dos crimes que já protegem a população em geral quando cometidos por motivação homotransfóbica (por intolerância à orientação sexual ou identidade de gênero da vítima), deverá, necessariamente, abarcar toda discriminação e todo discurso de ódio cometido contra pessoas LGBTI. Algo que não é criminalizado pelo Código Penal, mas apenas pelo crime do art. 20 da Lei Antirracismo, ao criminalizar a conduta de praticar, induzir ou incitar o preconceito ou a discriminação por raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Sem isso, persistirá omissão inconstitucional parcial, porque o núcleo essencial da proteção eficiente a pessoas LGBTI+, considerando as opressões que concretamente lhes assolam no mundo real, demanda pela punição das discriminações em geral (não punidas pelo crime de constrangimento ilegal, que supõe violência ou grave ameaça, não abarcando qualquer discriminação concreta) e dos discursos de ódio (não punidos pelos crimes de difamação e injúria, que supõem pessoas individualizadas como vítimas, não abarcando ofensas a coletividades de pessoas). Criminalizar a homotransfobia sem privilégios significa criminaliza-la no contexto de nossa Lei Penal Geral Antidiscriminatória[16], a saber, a Lei Antirracismo, que pune as discriminações e discursos de ódio por cor, etnia, religião, procedência nacional ou raça (conceito no qual se enquadra a homotransfobia, na acepção político-social de raça e racismo, cf. supra).

A princípio, não seria tecnicamente necessária nenhuma “ressalva” em lei criminalizadora da homotransfobia para resguardar a liberdade religiosa, pelo pacífico conceito penal de tipicidade material, que significa, em síntese, que se um fato se enquadra, formalmente, na semântica do texto de um crime (por exemplo, “ofender a dignidade ou o decoro”, do crime de injúria, com a pessoa se sentindo “ofendida”), mas, ao mesmo tempo, se configura como exercício regular de um direito (por exemplo, a liberdade religiosa, um padre ou pastor dizendo que entende que a homossexualidade seria “um pecado aos olhos de Deus”), então o fato não é, materialmente, considerado como crime (mesmo que, no exemplo citado, a pessoa se sinta “ofendida” com isso). Fico muito tranquilo neste tema, pois falei exatamente isso em minha sustentação oral e nas recentes entrevistas ao Fantástico (19.5.2019) e à CBN (22.5.2019), onde também expliquei que, inclusive como prova de boa-fé do Movimento LGBTI+, não nos opomos a uma tal ressalva que deixe expresso que a manifestação regular de liberdade religiosa não constitui crime, desde que se coloque, também, o que tenho chamado de “ressalva da ressalva”, ou seja, que a manifestação regular de liberdade religiosa não configura crime, desde que não se configure como discurso de ódio, assim entendido como a incitação ao preconceito, à discriminação, ao ódio, à segregação e à intolerância, que é o conceito doutrinário de discurso de ódio. Traduzindo: ninguém vai seriamente dizer que a liberdade religiosa permitiria apedrejar mulheres ou segregar pessoas negras nas escolas, como, no passado, era usada para isto justificar. Da mesma forma, não pode ser usada para oprimir pessoas LGBTI+.

Paulo Iotti é mestre e doutor em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru (ITE), especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e em Direito da Diversidade Sexual e de Gênero e em Direito Homoafetivo, membro do GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero, advogado e professor universitário.

[1] Para íntegra do parecer da PGR na ADO 26, que trata especificamente do tema (de inexistência de analogia in malam partem), vide: <https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI222328,11049-PGR+defende+que+homofobia+seja+julgada+como+crime+de+racismo>. Último acesso: 26.05.2019.
[2] Para notícia que remete ao inteiro teor dos votos, vide: <https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI296790,31047-Congresso+e+omisso+por+nao+tipificar+condutas+homotransfobicas+dizem>. Último acesso: 26.5.2019.
[3] Esclareça-se que não se está afirmando que a literatura negra antirracismo já defendeu a homofobia e a transfobia como espécies do gênero racismo, ao lado da (aqui chamada) negrofobia. O que se afirma é que a compreensão por ela afirmada de “raça” e de “racismo” mais que justificam a compreensão aqui defendida.
[4] ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural, Belo Horizonte: Ed. Letramento, 2018, p. 19-22.
[5] MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Tradução de Sebastião Nascimento, N1-Edições, 2018, p. 20-22, 27-28, 42, 53-54, 62 e 72-74. Esclareça que obviamente se sabe que o autor fala do racismo a partir da perspectiva da pessoa negra, que historicamente foi vítima concreta de racismos mesmo antes de sua teorização. Ocorre que se entende que os conceitos trazidos pelo autor, por sua amplitude e expressa desvinculação da condição fenotípica da pele negra (e, especialmente, da biologia), reforçam o entendimento defendido nesta ação, da homotransfobia como espécie do crime de discriminação por raça do art. 20 da Lei n.º 7.716/89. 
[6] STF, HC n.º 82.424-2/RS, confirmação de voto do Ministro Nelson Jobim, p. 04. Vide Réplica ao Senado na ADO 26 (pet 47), p. 10.
[7] MOREIRA, Adilson José. O que é Racismo Recreativo? Belo Horizonte: Ed. Letramento, 2018, p. 29-30 e 39. Por honestidade intelectual, ressalte-se que o autor vincula racismo a aspectos fenotípicos em sua obra, aduzindo, pouco antes, que a racialização existe “para classificar os mecanismos a partir dos quais sentidos culturais são atribuídos a certas características físicas com a finalidade de construir um grupo como diferente” (Ibidem, p. 29). E, na parte final do trecho transcrito, destaque-se que o autor fala em “mecanismos de atribuição de sentido a traços fenotípicos para que abominação de um grupo sobre outro possa ser legitimada”, de sorte a “validar projetos de dominação baseados na hierarquização de grupos com características fenotípicas distintas” (Ibidem, p. 29-30). Ocorre que, ousando problematizar sua densa e certamente já (nascida como) clássica obra, não me parece fazer sentido racional que o “racismo” implique na construção de um grupo como diferente, inferiorizando-o relativamente a um grupo dominante, por força das relações de poder socialmente existentes e culturalmente impostas, apenas no que tange ao critério da cor de pele (o fenótipo). Ora, o racismo é uma ideologia segregacionista, que parte de relações de poder entre grupo dominante e grupo dominado, como as definições aqui expostas, da literatura negra antirracismo, bem demonstram. Então, como sempre digo, não obstante pessoas negras tenham sofrido racismo desde antes de se teorizar sobre o racismo, tem-se que concluir que esse conceito deve evoluir para abarcar qualquer ideologia segregacionista, baseada em relações de poder, que inferiorizem um grupo social relativamente a outro grupo social, cujo status (dominante) fica socialmente privilegiado, como o (único) “natural” e classifica os demais como “Outros”, “identitários”. Nesse sentido, justifica-se a lógica do STF, no célebre HC n.º 82.424/RS, aqui desenvolvida no tema da homotransfobia, de se interpretar os conceitos de raça e de racismo à luz do princípio da igualdade: isso não significa que se admite “crime por analogia”, significa que o crime de discriminação “por raça” é passível de uma interpretação evolutiva, para compreender o termo “raça” para além de critérios puramente fenotípicos.
[8] Lei Federal n.º 7.716/1989. Que pune as discriminações por “raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.
[9] Lei Federal n.º 11.340/2006.
[10] Lei Federal n.º 12.984/2014.
[11] Lei Federal n.º 13.107/2015, que criou o inc. VI e os §§2º-A e 7º, I a III, do art. 121 do Código Penal.
[12] Para o irresponsável artigo de leviano título ad terrorem, manifestamente descabido (o trecho transcrito de minha sustentação oral já refuta essa teratológica acusação de “destruição” de “garantias de direitos humanos fundamentais”), vide: KARAM, Maria Lúcia. A pretendida criminalização da homofobia e da transfobia e a destruição das normas garantidoras de direitos humanos fundamentais. In: Emporio do Direito, 27.02.2019. Disponível em: <https://emporiododireito.com.br/leitura/a-pretendida-criminalizacao-da-homofobia-e-da-transfobia-e-a-destruicao-das-normas-garantidoras-de-direitos-humanos-fundamentais>. Último acesso em 26.5.2019. 
[13] Nesse sentido: VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Pela lógica do Direito Penal Mínimo, Homotransfobia deve ser criminalizada. In: Justificando, 10.07.2017. Disponível em: <http://www.justificando.com/2017/07/10/pela-logica-do-direito-penal-minimo-homotransfobia-tem-que-ser-criminalizada/>. 
[14] Vide a manifestação de mérito no MI 4733 (petição eletrônica n.º 59), requisitada pelo Ministro Fachin, em cujo início se explicam diversos dos incontáveis casos de agressões e discriminações homotransfóbicas contra a população LGBT. Usa-se a expressão banalidade do mal no preciso sentido de Hannah Arendt, em seu clássico Eichmann em Jerusalém.
[15] Cf. “Mulher cis em tratamento contra câncer sofre agressão ao ser confundida com trans”. Disponível em: <https://observatoriog.bol.uol.com.br/noticias/2018/11/mulher-cis-sofre-agressao-ao-ser-confundida-com-trans>.
[16] Terminologia bem atribuída a ela por Roger Raupp Rios, renomada autoridade brasileira do Direito Antidiscriminatório.

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