O atual governo tenta reeditar 1964 – ao pedir que o golpe fosse comemorado como revolução no último dia 31 de março -, como no livro 1984 de George Orwell, em que o personagem Smith deveria falsificar registros históricos para criar um passado de acordo com os interesses do governo.
por Leonardo Lusitano*, Le Monde Diplomatique
Desde que Jair Bolsonaro assumiu a presidência em janeiro, muito tem se falado sobre como sua equipe ministerial estaria tentando reeditar, mais do que 1964, 1984. Estaríamos então numa espécie de distopia, similar àquela do livro clássico de George Orwell. Mesmo que o consenso no campo acadêmico seja o inverso, Vélez, o ex- ministro da Educação, buscava uma versão de 1964 onde não houve golpe nem ditadura e sim uma revolução gloriosa.
Muita gente lembrou do livro 1984, pois a obra é protagonizada por Winston Smith, que trabalha no departamento de documentação do Ministério da Verdade. Smith deveria falsificar registros históricos para criar um passado de acordo com os interesses do governo atual. O presidente pediu que se comemorasse o golpe de 1964 nos quartéis como revolução, no último dia 31 de março.
Em abril, Bolsonaro compartilhou via Twitter que o novo ministro da Educação, visto como mais competente em sucatear as redes públicas de ensino, estudava “descentralizar” investimentos em faculdades de Filosofia e Sociologia. O objetivo era focar em áreas que, na sua tosca visão, gerem retorno imediato ao contribuinte, como Veterinária, Engenharia e Medicina. Após críticas, o governo decidiu uniformizar os cortes em 30%, atacando inclusive a educação básica. Os argumentos utilizados foram balbúrdia, 30% de 100 é igual a 3% etc. Mesmo com um ataque mais homogêneo, diante das declarações oficiais, fica claro que professores e pesquisadores de Filosofia e Sociologia são inimigos preferenciais.
Aos ricos, escolas progressistas, diplomas de Veterinária, Engenharia e Medicina. Aos pobres, 80 tiros. Querem reduzir gastos ou atacar os cursos que formam jovens insubordinados, que não se vergam diante das barbaridades desses cruzados medievais atingidos por algum tipo de peste?
Seguindo por esse caminho, estaríamos realmente diante de um esforço de reedição do 1984. Embora não se saiba quem leu o livro, pois o presidente tem dificuldade até com uma tela passando seu discurso. Talvez Damares tenha lido Orwell. Novilíngua é o nome da língua ideal no Estado de vigilância de 1984. Ela teria que suprir a velha fala para reduzir a liberdade de pensamento. Com o passar do tempo, o número de palavras vai diminuindo e a liberdade de consciência também diminui. No livro 1984, um amigo de Winston chamado Syme vibra com a destruição das palavras.
Também podemos suspeitar que o velho/novo ministro da Educação, Abraham Weintraub, seja o leitor de Orwell da turma, afinal, sem as palavras críticas, os “delitos de pensamento” são impossíveis, uma vez que as palavras necessárias não estão no vocabulário. O próprio conceito de liberdade também acaba aqui abolido.
Embora todos esses elementos estejam presentes em nosso cotidiano e sejam gravíssimos, talvez a realidade seja um pouco mais complexa. Talvez nossa imaginação social só perceba os vestígios (existentes) de uma sociedade disciplinar, ignorando que já estamos – ao menos com um pé – em algo mais assustador ainda: uma sociedade do controle. Para além desse Estado de vigilância orwelliano, vivemos uma época onde um pan-óptico que tudo vê para restringir liberdades cede espaço a outro pan-óptico digital, que faz uso excessivo da liberdade. Segundo o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, vivemos numa sociedade da informação, cuja principal característica é a multiplicação de palavras.
No livro de Orwell, o país está em guerra permanente. Como não poderia deixar de ser, o povo tem um inimigo, chamado Emmanuel Goldstein. É o comandante de uma rede subversiva que planeja derrubar o governo. Existe então uma guerra ideológica entre essa rede e o Grande Irmão. Diariamente o governo exibe na teletela um programa contra seus inimigos, o “Dois Minutos de Ódio.” Paralelamente o governo atua no Ministério da Verdade e com psicotécnicas como tortura, uso de drogas, privação de sono, isolamento, lavagem cerebral e eletrochoques.
Para o filósofo Han, esse Estado de vigilância com suas teletelas e câmaras de tortura é muito diferente do pan-óptico digital. Esse sistema funciona com a internet e com smartphones. Cria uma aparência de liberdade e de comunicação ilimitadas. Nesse pan-óptico não se é torturado, se é tuítado ou postado. Ministérios da Verdade não são necessários. A transparência e a informação substituem a verdade.
Não é a toa que, durante as eleições, Bolsonaro afirmava que as mídias com jornalistas que tem formação para checar informações não eram seguras. Que era preciso segui-lo pelo Twitter e pelo Facebook. Acreditar nas mamadeiras e kits gays denunciados por disparos criminosos no WhatsApp. A transparência e a informação substituem a verdade. Basta crer no corajoso e sincero messias, que fala o que dá na cabeça. O novo objetivo do poder não é tanto administrar o passado, mas controlar psicopolíticamente o futuro. O guru do governo mesmo tem falado sobre esse esforço de projetar um futuro. Chega a chamar seu conjunto de palpites de “uma obra pensada para a eternidade.”
Não podemos nos esquecer que esse governo é composto de militares, assim como de liberais, tal qual Paulo Guedes. Um ultraliberalismo voltado para acabar com a Previdência e transformar aspirantes a cidadãos em figurantes do Vidas Secas está em curso. Junto com o viés disciplinar estilo 1984, é uma mutação terrível, dois regimes combinados. O neoliberalismo tem técnicas que não são proibitivas ou repressivas, mas sim permissivas e projetivas, lembra Han em Psicopolítica – o neoliberalismo e as novas técnicas de poder.
Nesse tipo de regime o consumo se maximiza. Todos são estimulados a comunicar e a consumir. Não mais (apenas) a negatividade de um Estado de vigilância orwelliano, mas também uma positividade onde a vida deve ser apenas agradável. Há um estímulo por novas necessidades, uma exposição voluntária onde a câmara de tortura é substituída (ou revezada) pelo smartphone. No Instagram se mostra uma vida top, cheia de amenidades, sem espaço para algo estranho, surpreendente. Fotos com a mesma roupa e mesmo jeito de purpurinar milimetricamente o rosto no Carnaval afastam para longe o que não tem governo nem nunca terá, o que não tem sentido – uma vez que sentidos inauditos precisam ser criados.
O Grande Irmão com um rosto fofinho. Como na série Black Mirror. No episódio Queda Livre, usando implantes oculares e dispositivos móveis, as pessoas classificam suas interações realizadas online e pessoalmente em uma escala de cinco estrelas. A classificação de uma pessoa afeta significativamente seu status socioeconômico. Lacie é uma jovem atualmente avaliada com 4.2 que se esforça para alcançar uma avaliação de 4.5, objetivando se qualificar para receber desconto de um apartamento de luxo. Diante de uma série de imprevistos, Lacie tem sua avaliação reduzida a zero e sua vida é destruída. Não sobraram amigos, financiamento e nem mesmo um emprego.
No pan-óptico digital ninguém se sente vigiado ou ameaçado. As pessoas se sentem livres e se auto-exploram, auto-expõem. Assim, o mesmo mecanismo que faz alguém se sentir importante por ser curtido nas redes, faz sujeitos sentirem-se participando da política ao ver uma live do Jair Messias, ao receber um zap batizado com fake news que instaura medo e raiva, ao atacar um opositor numa caixa de comentários. Diz o palpiteiro Olavo de Carvalho que Bolsonaro está criando uma democracia plebiscitária no Brasil pelas redes sociais. Esse plebiscito é democrático se considerarmos os milhares ou até milhões de robôs expondo opiniões de charlatões, tecidas para influenciar o jogo político?
É fato que esse governo também usa técnicas de um regime neoliberal, sabe jogar com a sociedade de controle. Joga com o desejo de liberdade, que negativa a ideia de sermos trabalhadores e positiva o desejo por um empreendedorismo. Não é mais apenas o corpo que está subjugado. É a alma que está a desejar algo. Há formas de produção pós-industriais, imateriais, em rede. O neoliberalismo cria uma psicopolítica que motiva, faz competir, otimizar o tempo até a exaustão para produzir, como se não tivéssemos corpos. São modos de desejar ser explorado e aumentar a produtividade no capitalismo. Lacie se sente livre se vendendo como produto até ser considerada descartável.
No filme interativo de Black Mirror, o jovem programador Stefan Butler começa a criar um videogame de aventura chamado Bandersnatch, baseado em um livro de mesmo nome com o tema “escolha sua própria aventura”. Ele lança o jogo pela empresa de videogames Tuckersoft, porém Stefan trabalha no jogo em casa por conta própria. Stefan sente que está sendo controlado e começa a enlouquecer da mesma forma que o autor do livro que baseia o jogo, Jerome F. Davies, que não encontrava saídas para o jogo. O telespectador escolhe interativamente as ações de Stefan. Ou melhor, pensa que é livre para escolher. A liberdade de escolha de Stefan em um regime onde sujeitos desejam ser explorados até enlouquecer é falsa, assim como a liberdade do telespectador, ao interagir como o filme. Quase nunca se pode, realmente, escolher sua própria aventura.
Nesse hibridismo macabro entre 1984 e Black Mirror, estamos fatalmente relegados a uma distopia? Nessa hora onde não é mais preciso vergonha para praticar todo tipo de barbárie, lembremos de Darcy Ribeiro. Para o autor de O Povo Brasileiro, o mundo mudou muito nos últimos cinquenta anos e ninguém sabe como ele será nos próximos cinquenta.
Portanto, o mais importante é inventar o Brasil que nós queremos. Darcy também lembra que surgimos do entrechoque do invasor português com indígenas e com o povo negro africano. Que somos um povo novo que apesar da fusão de matrizes diferenciadas, se comporta como uma só gente que está aberta ao futuro. Basta andar pelas ruas de qualquer cidade brasileira e observar as pessoas. São tão diversas que não sabemos a fisionomia de alguém brasileiro.
Essa linha de força diversa, criadora, aberta eticamente para o novo, não está apenas nos corpos. Ela passa também pelos espíritos. Há períodos em que um povo inteiro parece enlouquecer. Mas, essa linha de força criadora jorra feroz e silenciosa como os rios subterrâneos que esperam uma simples rachadura no solo para emergir e seguir um curso incerto: um rio sem margens é o ideal do peixe!
Como ativar uma imaginação social que acione essas linhas de força criativas que, para Darcy, com seus olhos bem lavados, fazem de nós uma gente aberta ao futuro? Esse parece ser um desafio urgente. O velho antropólogo e educador é como outros grandes pensadores e pensadoras: estrelas já mortas, que não estão mais aqui mas que ainda irradiam luzes do passado. Luzes que brilham no presente. Não estamos sozinhos no esforço de criação.
*Leonardo Lusitano é professor de história no município de Itaboraí, mestre em Letras pela UFRJ e doutorando em Filosofia pela UERJ.
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imagen: Steve Cutts