Luta pela terra, caminho de emancipação. Por Gilvander Moreira[1]

Para Combate Racismo Ambiental

Em Campo do Meio, sul de Mina Gerais, Obed Vieira De Jesus, 47 anos, Sem Terra assentada no Assentamento Nova Conquista II no ex-latifúndio da ex-usina Ariadnópolis, na luta pela terra se libertou de um marido machista e, além de conquistar um pedaço de terra, resgatou a saúde de seus filhos e uma vida digna e feliz. Obed narra assim sua luta: “Vim de Campinas, SP. Antes, morei no Vale da Ribeira, em Ribeirão Preto, SP. Eu sempre fui do lar. Meu ex-marido não permitia que eu trabalhasse fora de casa. Sou mãe de dez filhos e seis netos. Dei linha no companheiro e hoje estou livre, cuidando dos meus filhos. A luta pela terra tem sido o nosso caminho de libertação, pois na cidade não tinha dinheiro que dava. Eu e meus filhos sofremos demais durante muitos anos. Cidade pra mim é um inferno. Lá na cidade, mesmo que a gente ganhe muito, a gente gasta muito e sofre demais. Com fé em Deus e no MST, que somos nós povo do campo, nós não vamos mais ser despejados. Pra mim a vida digna é na terra, porque a cidade é um inferno, não canso de repetir. Os escravizados da cidade acham que se eles vierem lutar pela terra, eles vão morrer de fome. Aqui eu trato todos meus filhos com remédios caseiros. Por isso estamos aqui cultivando nossa horta comunitária medicinal do Grupo de Mulheres Raízes da Terra. Aqui a gente vive com 700 reais por mês, eu e meus filhos, enquanto meus parentes lá de Sumaré, SP, com três mil reais por mês passam fome lá na cidade.”

Sentindo que todas as portas da cidade se fechavam para ela, a Sem Terra Maria Lúcia da Silva veio acampar e persevera há dezoito anos na luta pela terra. Lúcia está assentada no Assentamento Primeiro do Sul, em Campo do Meio, ao lado dos 11 acampamentos nas terras da Ariadnópolis. “Cheguei um ano após a primeira ocupação. Vim pelo sonho de ter um pedaço de terra e criar meus filhos com dignidade. Vim de Ilicínea, aqui no sul de Minas. Desempregada, devendo muito, convidada a conhecer, vim e estou aqui há 20 anos. A luta pela terra é o caminho, porque levantar de manhã e ver minha lavoura de café e o nosso pomar produzindo nos dá muito alegria. Meus filhos estão com saúde, mesmo tendo chegado aqui doentes. Meus meninos eram muito doentes na cidade. Depois que eu vim pra cá, a saúde dos meninos melhorou.”

A pedagogia da luta pela terra praticada pelo MST no sul de Minas não se restringe a buscar conquistas econômicas, mas envolve de forma entrelaçada muitos aspectos da luta que acontece processualmente a partir de duas dimensões: a organização e a formação, e se espraiam para a Frente de Massa, Trabalho de Base, lutas concretas dentro e fora do território, trabalho de produção, tudo fomentando a emancipação humana. É o que nos diz Michele Neves Capuchinho, da direção estadual e do Setor de educação do MST no sul de Minas Gerais: “Se a gente faz a luta pela terra somente na perspectiva de ganho econômico, a gente não tem avanços. Essa é uma leitura que a história de luta do MST nos ensina. Dois elementos que são centrais na nossa luta pela terra: formação e organização. Mas fazemos a luta dentro de um intenso processo de formação, aliado a um processo de organização. Só assim a gente pode ter condições de sair da emancipação política e econômica e avançar para a emancipação humana. Não tem como a gente dizer para quem acabou de chegar, que só pensa em adquirir seu pedacinho de terra, sem envolvê-lo em um constante processo de organização e de formação que envolve muitos elementos: formação política, onde estudamos perspectivas de origens da luta dos trabalhadores camponeses, as experiências de luta pela terra construídas ao longo da história, qual o modelo de sociedade que nós queremos, quais os valores que queremos e devemos construir, o que temos que deixar lá fora, etc. Se não for assim, cada um vai querer lutar só para adquirir seu pedaço de terra e se acomoda. Nos 11 acampamentos aqui na Ariadnópolis, estamos organizados e em processo de formação permanente. Nos últimos quatro anos, fizemos um processo de formação para a companheirada entender a História do MST, o sentido dos símbolos do MST, a bandeira do Movimento, a pedagogia do exemplo, a pedagogia do trabalho, a importância e a necessidade da produção agroecológica e de um estilo de vida agroecológico. Toda luta nossa é precedida por um processo de formação e organização. Todos que vão para uma luta concreta devem primeiro entender porque está lutando e abraçar a luta com amor. A luta é uma coluna central, mas só a luta não resolve nossos problemas. Em 2015, fizemos um curso na nossa Regional com 35 militantes, três vezes por semana, de 17h às 20h, durante três meses. Temos hoje várias dezenas de pessoas na Coordenação Regional do MST do sul de Minas. Estamos tendo condições de dar saltos de qualidade, porque nossa capacidade de mobilizar gira em torno das pessoas que entendem e abraçam com paixão o processo da luta coletiva. O processo de avanço da consciência é como ser ciclista no morro. Se a gente para de pedalar – que é organizar, formar e lutar, de forma entrelaçada -, o nível de consciência cai. Precisamos organizar o processo de formação desde a infância com as crianças Sem Terrinha até os idosos. A formação política tem que ser um processo coletivo, nunca será realizado por uma única pessoa. A troca de experiência e de aprendizados é muito mais enriquecedora do que o repasse de conhecimentos teóricos apreendidos em livros. Aprende-se fazendo e construindo juntos. Por exemplo, um coletivo de quatro pessoas organizou um curso de três meses e foi convidando vários companheiros/as para aprofundar vários aspectos: história da luta pela terra na região, trabalho de base, agroecologia, processo de produção, formação política, etc. Temos aqui na Ariadnópolis um acampamento provisório, onde os novos companheiros passam lá um mês para as pessoas fazerem a experiência do que é lutar coletivamente. Não aceitamos mais chegar e ir direto para um lote. A questão financeira não pode se tornar um obstáculo para nossa organicidade. A manutenção da luta coletiva é feita através de projetos e de nossos parceiros históricos. Parte da nossa produção mantém as equipes técnicas. Nossos parceiros nos ajudam a pagar os ônibus para levar a companheirada para as lutas fora daqui. Quatro vezes por ano, fazemos festas com bingos, leilões, rifa, o que é sempre pedido pelo povo. Há uma política nacional do MST que pede que cada pessoa Sem Terra contribua com o Movimento com a quantia de dez reais por ano, mas nem todos contribuem. Contribuímos anualmente com o Sindicato da Agricultura Familiar, que é o nosso sindicato.”

Os desafios enfrentados pelo MST são enormes. É preciso entender os antecedentes históricos e como desenvolver o processo de formação. É o que nos ensina Sebastião Mélia Marques, da coordenação do MST no sul de Minas. “Desde a infância, nossa classe trabalhadora e o campesinato são massacrados pela televisão, pela família, pela escola e pelas igrejas, que via de regra, reproduzem o espírito e a lógica do sistema do capital. O povão é (des)educado para servir ao capital. É muito difícil nós do MST formarmos um cidadão consciente, porque o sem-terra é deformado desde criança. Por necessidade, ele vai seguir a coordenação, mas ele não tem uma consciência emancipada. Mas nunca ele estará formado completamente. Temos que construir nossa escola, com professores nossos, que atendam desde as crianças até os idosos, se não será impossível formar para uma consciência libertadora e estilo de vida que emancipa. Aqui na Ariadnópolis, no processo antigo, a gente simplesmente acolhia quem vinha de São Paulo e de outros lugares e já se instalava diretamente em um lote de um acampamento. Um vinha e depois ia trazendo parentes e amigos. Mas esse jeito deu muito problema. Vinha gente sem nenhum trabalho de base. Nós tínhamos que massificar e, por isso, pegávamos gente de todo tipo. Mas após ocuparmos todo o latifúndio, fomos identificando problemas, tais como venda de lotes[2], recusa de seguir as orientações da coordenação e gente que estava fugindo da polícia. Avaliamos e criamos a proposta do Acampamento Provisório – um mês de experiência na luta coletiva pela terra -, onde a gente explica que não será aceito quem tem problema com a polícia, quem tem casa na cidade, que é preciso ter origem camponesa, que não pode ser alcoólatra, nem mexer com droga, não bater em mulher, não roubar, que é preciso participar das lutas do Movimento etc. Enfrentamos inclusive muitas ameaças. Quando no mesmo acampamento havia um grande número de parentes, isso complicava o trabalho de organização do MST, pois a “família” mostrava sempre ser maioria. Isso dá problema, porque dava o rumo da reunião, muitas vezes contrário às orientações da coordenação/Movimento. Mudamos e passamos a alocar os novos por sorteio nos lotes de quem desistia, isso também para impedir que os parentes ficassem juntos. No Acampamento Provisório sempre tem reserva de candidatos à posse da terra. Quando alguém desiste, logo a Coordenação Regional do MST coloca o próximo da lista. E para ser aprovado há um processo de avaliação. Assim, passamos a ter coordenação do povo acampado. Hoje temos a coordenação de área/acampamento, com no mínimo dois coordenadores ou coordenadoras. A gente tem um calendário de reuniões. Os coordenadores de cada acampamento se reúnem semanalmente e extraordinariamente segundo a necessidade. Na coordenação regional tem o Grupo de Frente de Massa, que faz trabalho dentro e fora dos acampamentos. Todos os setores atuam articulados e entrosados. O acampamento Fome Zero, por exemplo, tem 50 famílias, que eram da FETAEMG, e, por isso, ainda têm resistência contra o MST. Eles estão se aproximando devagar. Antes não havia ninguém que os coordenava. Durante o processo de formação e de lutas, vão despontando lideranças que vão sendo acolhidas no processo de organização. Nas áreas também brotam lideranças que passam quase que naturalmente a contribuir na coordenação.”

Notas:

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.

[2] O artigo 189 da Constituição Federal determina que os beneficiários da reforma agrária receberão “títulos de domínio ou de concessão de uso, inegociáveis pelo prazo de dez anos. Logo, é inconstitucional vender lote recebido no Programa de Reforma Agrária no período de dez anos. Por isso e também por questão ética, o MST e a CPT repudiam a ação de venda de lotes recebidos para fins de reforma agrária.

Imagem: Olivério de Carvalho do Assentamento Primeiro do Sul, do MST, em Campo do Meio, MG, e amostra da infinidade de frutas produzidas no PA Primeiro do Sul. Foto: frei Gilvander Moreira.

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