Papa Francisco: direitos sociais, os juízes e os poetas sociais

Para que serve ser juiz, se não for para ser um instrumento que torne este país um lugar mais justo para se viver?

Por Kenarik Boujikian, no Justificando

Nos dias 3 e 4 de junho de 2019 Papa Francisco reuniu cerca de 100 juízes e juízas das Américas para um Encontro no Vaticano, com a proposta de reflexão sobre Direitos Sociais.

O Brasil se fez presente: CNJ e STJ estavam representados; tribunais e  juizes que atuam nas  diversas jurisdições; a Procuradoria Geral da República; a Defensoria Pública, a advocacia popular e observadores.

O Encontro foi plasmado pelos conhecidos passos: “ver, julgar e agir”. Foram dois dias de intensa troca, com relatos de vários magistrados que analisaram os direitos sociais, em seus respectivos países, de acordo com suas vivências e realidades, o que possibilitou uma observação integrada do contexto da construção dos direitos sociais nas Américas e permitiu um julgar do estado da arte, que impõem  uma ação urgente, pois a realidade clama e os mais pobres necessitam.

É preciso, como nunca, dar concretude à normativa acolhida pela humanidade, nos diversos documentos de ordem regional, internacional e no caso do Brasil, também na Constituição Federal.

Ao término do segundo dia, a aguardada mensagem de Papa Francisco, contundente e amorosa. Bastou ele por os pés e a sala transbordou de humanidade, a mesma que ela deseja que todos os jurisdicionados recebam dos juízes, que só pode ser dada com justiça social.

No II Encontro Mundial com os Movimentos Populares (em 2015) ouvi o Papa Francisco dizer aos participantes que eles eram poetas e agora ele diz o mesmo para os juízes: poetas sociais, quando  atuam com coragem para  transformação do sistema judicial, ancorados na justiça e sobre o primado da dignidade humana, cumprindo para que os direitos sociais, especialmente dos mais pobres e vulneráveis, sejam respeitados e garantidos.

Para que serve ser juiz, me pergunto, depois de ter exercido a jurisdição por trinta anos, se não for na compreensão que a jurisdição é um ato político (não partidário) e a política um ato de amor, de generosidade para com o povo e com o outro. Para que serve ser juiz, se não for para ser um instrumento que torne este país um lugar mais justo para se viver?

O meu olhar sobre a mensagem de Papa Francisco, que sucintamente apresento aqui, confirma a resposta:

Ele sinaliza que a função do juiz  é ser um agente que fomenta o Estado a cumprir a sua obrigação de realizar o bem comum para o povo,  lembrando que a cada falha, no plano dos direitos econômicos, sociais e culturais, há a consequente produção de desigualdade.

Vivemos um tempo marcado por uma crise, com graves problemas sociais. Temos um complexo normativo potente, com direitos consagrados mundialmente, em prol da construção de um mundo mais igualitário. Entretanto, vivemos uma deterioração no gozo destes direitos e nossos povos reclamam que sejam superadas as dinâmicas de exclusão e segregação.

As normas que tratam dos Direitos Sociais fornecem um arcabouço fundamental para que se alcance patamares dignos da humanidade, mas muitos encontram formas de rechaçá-las, desconsiderando o papel destas regras. O fazem com argumentos diversos, como por exemplo: deficiências orçamentárias, impossibilidade de generalizar benefícios ou o caráter programático e não imperativo dos direitos sociais. Nesta medida, confirmam políticas que levam o povo à cada vez mais aguda desigualdade e indignidade.

Estas decisões que descartam as garantias constitucionais e os tratados internacionais – que têm valor universal – naturalizam a injustiça social e mostram que há muitos que são incapazes de enxergar a realidade e de se colocar no lugar do outro. Por isto, é fundamental que todos os operadores do direito, em sua formação, conheçam e tenham contato verdadeiro com as realidades a que um dia servirão, compreendendo as injustiças pelas quais um dia terão que agir.

Esta visão distorcida dos direitos sociais conta com parcela da sociedade que carimba injustamente os que exercem o direito de manifestação, etiquetando-os das formas as mais variadas, tentando silenciá-los.

Urge construir a democracia real, com ações concretas por parte das autoridades, incluídas as do Poder Judiciário, que devem compreender os direitos sociais como um farol que aponta o caminho que pode encurtar a distância entre as normas e a vida, já que não se pode falar em democracia onde há fome, nem de desenvolvimento com pobreza e tampouco justiça na desigualdade.

Papa Francisco registrou sua preocupação com uma nova forma de risco para a democracia, através do uso indevido de procedimentos legais e judiciais, conhecido como lawfare, usado para minar os processos políticos emergentes e que tendem para a violação sistemática dos direitos sociais.

A fim de garantir a qualidade institucional dos Estados, disse ser fundamental detectar e neutralizar este tipo de prática que resulta de uma atividade judicial imprópria em combinação com ações da multimídia.

Papa Francisco lembrou que muitos juizes sofrem ataques por defenderem o direitos dos mais vulneráveis. Assim, durante o Encontro, foi formado o “Comitê Permanente Panamericano de Juízes e Juízas para os Direitos Sociais”, que objetiva , entre outros, proporcionar apoio e assistência para revitalizar a missão dos magistrados (um dos sete nomeados é a a juíza brasileira Ana Inês Algorta Latorre).

Bem, o que está em jogo quando juízes tratam de direitos sociais é a alma do nosso povo, como disse Papa Francisco, e acrescento, também a nossa própria alma. Logo, só são poetas sociais os juízes que sabem julgar com a ferramenta dos direitos sociais, destinadas ao povo.

*Kenarik Boujikian é cofundadora da Associação Juízes para a Democracia, fundadora da ABJD (Associação Brasileira de Juristas para a Democracia), desembargadora do TJSP ( 1989/2019), consultora da CDH-OAB/SP e conselheira do Fundo Brasil de Direitos Humanos

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