Na Revista Cult
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, referência primaz do processo penal brasileiro, tem chamado de “sistemacídio” a ideia recorrente de retalhar a legislação para introduzir partes de modelo importadas dos Estados Unidos, uma espécie de americanização à brasileira (“Plea bargaining no projeto anticrime: crônica de um desastre anunciado”, Boletim IBCCrim, abril/2019).
O ponto central de sua crítica é a adoção mal ajambrada de um fragmento do sistema acusatório (no caso, a barganha penal), sem excluir os estilhaços do sistema inquisitório ainda presentes no direito brasileiro. Podemos lembrar, por exemplo, que o juiz se mantém na gestão da prova, pode decretar prisões não requeridas pela acusação e até mesmo condenar quando o promotor pleiteia a absolvição.
O mais curioso desta situação é que os principais responsáveis pela pretensa importação do plea bargain são justamente Deltan Dallagnol, por via das frustradas 10 Medidas do MPF, e Sérgio Moro, que estampa a proposta como uma panaceia modernizadora, no seio do pacote que apelidou de “anticrime”.
O professor Jacinto ainda não teve a oportunidade de se deter na ironia histórica que cerca esse movimento: quem sugere aprofundar o sistema acusatório são os mesmos personagens que o estão enterrando com a dobradinha revelada pelo The Intercept Brasil.
Não pretendo aqui discutir o mérito das sentenças prolatadas na chamada Operação Lava Jato, tampouco me estender acerca das possíveis consequências jurídicas que a revelação pode trazer. Foram eles, Dallagnol e Moro, aliás, que, produzindo e apoiando as tais 10 Medidas, defenderam expressamente que a prova ilícita podia ser usada em defesa dos réus e que a fonte da informação pudesse ser mantida em sigilo no bojo do processo. Durmam com o seu próprio barulho.
Também não é o caso de discutir eventual ilícito da divulgação pela possibilidade de que as informações tenham chegado por intermédio de um hacker, tese ainda não confirmada. Nos últimos anos, centenas de gravações sigilosas foram disponibilizadas pela mídia e apresentadas à exaustão ao público. Todas as vezes que assistimos na televisão, na hora do jantar, à reprodução de conversas interceptadas, tinha ocorrido um crime antecedente. Se não na própria extração, ao menos na violação do sigilo.
O Ministério Público, por sua vez, sempre entendeu que os jornalistas que divulgam as matérias, por interesse da opinião pública, não cometem crime algum -à montanha de divulgações de sigilo, portanto, não sucederam acusações criminais. Também porque, dada a proteção constitucional do sigilo da fonte jornalística, a autoria dos vazamentos, via de regra, não se torna conhecida.
Aliás, nem mesmo quando a divulgação se tornou explícita, com a decisão do juiz Sérgio Moro de oferecer ao conhecimento da imprensa conversas sigilosas gravadas no Palácio do Planalto, não houve mais do que uma reprimenda ética do falecido ministro Teori Zavascki. O Conselho da Justiça Federal inocentou Moro, por 13 votos a 1; o Conselho Nacional de Justiça nem isso: optou por esperar que ele deixasse o cargo, para, aí então, considerar o processo desnecessário.
Assim, seria incoerência que Dallagnol e Moro se batessem, a esta altura do campeonato, pela criminalização do jornalista que divulgou as conversas reservadas, apenas e tão-somente por terem mudado de lado no balcão.
Enfim, se o país simplesmente se recusasse a discutir conversas sigilosas, pela inidoneidade de sua obtenção, provavelmente receberia uma repreensão do próprio Sérgio Moro, que recentemente esclareceu no programa Conversa com Bial sua ordem de princípios: “O problema não era a captação do diálogo e a divulgação do diálogo, mas o conteúdo do diálogo em si”.
Mais do que a crueza que as conversas no Telegram apontam, um compartilhamento quase diário entre interesses e estratégias, daquele que acusa e o que julga, é a primeira reação que tiveram ambos os personagens que nos espanta. Sérgio Moro afirmou que não viu “nada de mais” nos diálogos reproduzidos; Deltan Dallagnol emendou que as conversas foram normais.
Segundo os relatos do The Intercept, todavia, o juiz: a) sugere ao promotor testemunha que deve ser arrolada (e ainda que atribua a uma fonte “anônima”, mascarando sua origem); b) sugere presteza em novas operações, pois a demora poderia ser prejudicial à causa; c) exige a troca de procuradora que não desempenhou eficientemente o seu papel em audiência; d) avalia coletivamente com o acusador o impacto jurídico e político de suas manifestações, como um briefing de equipe; e) sugere os limites para uma nova denúncia, também circunscrita à sua jurisdição; f) propõe a publicação de uma nota sobre interrogatório do réu para se sobrepor ao que depreciativamente chamou de “showzinho da defesa”.
Sobre a importância deste último ponto, deve se lembrar que o próprio Sergio Moro atribuía o “sucesso” da Lava Jato ao apoio da opinião pública. A disputa de narrativa era, pois, indispensável para a condenação, supostamente um objetivo comum a ambos.
O Código de Processo Penal, em seu artigo 254, inciso IV, qualifica de suspeito o juiz que tiver aconselhado uma das partes. Pelo interesse demonstrado, pode ser recusado pela outra. A questão é simples e não envolve grande polêmica: se o juiz se compromete com uma das partes em julgamento, não está em condições de exercer o papel de terceiro, que a lei lhe impõe. A imparcialidade é uma premissa inarredável da jurisdição.
As conversas indicariam, todavia, algo bem mais expressivo do que um mero aconselhamento.
É certo que, apesar de termos aderido ao sistema acusatório com a Constituição de 1988, mantivemos mecanismos do Antigo Regime alojados como verdadeiros entulhos autoritários na disciplina processual – não esqueçamos que a redação original do nosso Código é um legado intelectual do fascismo. Mas nem mesmo esses resquícios admitiriam uma promiscuidade da envergadura que as conversas em tese apontam.
O sistema acusatório impõe regras que devem funcionar para evitar que o juiz se transforme ele mesmo no acusador. Tenta afastá-lo da gestão da prova, relegando esta tarefa aos promotores e advogados, seja na proposta das diligências ou na oitiva das testemunhas, e busca impedir que ele possa substituir o MP na acusação, pois não é um acusador complementar. Tudo para obstar que o juiz se contamine com a intenção acusatória a tal ponto que perca a isenção de julgar.
Mas nada disso tem sentido, nenhum pilar deste castelo se mantém de pé, se reservadamente, ou seja, fora das vista da defesa (e, portanto, fora de controle processual), o juiz se imponha como partícipe na elaboração da denúncia, no arrolamento da testemunha, na produção de um contexto que valorize publicamente a prova produzida. Não há sistema acusatório que resista a um consórcio desta natureza.
Dizer que tudo isso não é nada de mais e que todas as conversas, sendo verídicas, seriam absolutamente normais, rotineiras, é decretar a morte do sistema acusatório, ou sua transformação no código dos mosqueteiros: um por todos, todos por um por um. Para além do direito, há quem prestigie esse tipo de ação, sem perceber seus evidentes riscos.
O jornalista econômico Carlos Sardenberg, por exemplo, escreveu n’O Globo que os diálogos não mostram mais do que uma “coordenação formal de trabalho” e que a operação é uma novidade eficiente que espanta só os que não querem punir a corrupção. A ideia de que uma “coordenação formal de trabalho” possa ser executada, excluindo a participação da defesa, só expõe o tamanho da incompreensão da noção de processo. Talvez sem perceber, o jornalista afirma exatamente aquilo que pretendia repelir.
Quanto à novidade na forma, recorro novamente aos ensinamentos do professor Jacinto Coutinho, que faz uma abordagem histórica do momento em que juiz e acusador se misturam. E não é lá muita novidade: “O Sistema Inquisitório aparece no âmbito da Igreja Católica e tem seu marco histórico (1215) em face do IV Concílio de Latrão”. Continua Coutinho, sobre a funcionalidade deste sistema: “Excluídas as partes, no processo inquisitório o réu vira um pecador, logo, detentor de uma ‘verdade’ a ser extraída”. O inquisidor, em suma, assume as funções de acusador e juiz: o réu é a encarnação do mal que deve ser combatido para o bem de todos.
Não há novidade alguma neste consórcio que, na história da humanidade, provocou tragédias inenarráveis. Mesmo assim, tivemos a capacidade de conviver no século 20 com um chamado “procedimento judicialiforme”, cuja acusação incumbia ao delegado de polícia; e nunca nos envergonhamos em adotar por décadas um processo penal conhecido como inquisitorial misto (já pensou se chamássemos nosso direito do trabalho de escravagista misto?).
Moro e Dallagnol se apresentaram como novidades. Mas apenas trouxeram novas roupagens a conceitos bem conhecidos, como a condução coercitiva que maquiou a antiga prisão para averiguações. Essa entidade centauro, corpo de promotor, cabeça de juiz, como se viu, também não traz inovação alguma: é uma modernizada representação do processo da Inquisição.
O savoir faire da Lava Jato não está propriamente na sofisticação jurídica de seus argumentos, mas na competente articulação com a mídia, e na incorporação das preocupações da opinião pública no âmago de suas estratégias. Surfou na onda do antipetismo que acabou por vitaminar. Quem quer que discuta garantias suprimidas ou se atreva a questionar o excesso das prisões provisórias é taxado de leniente, quando não de corrupto.
Quando o STF, em uma de suas poucas revisões, decidiu por alterar a competência para a Justiça Eleitoral em caso de conexão de delitos, uma enorme campanha difamatória surgiu nas redes sociais, e depois nas ruas, propondo até o fechamento do tribunal.
Instrumentalização da opinião pública, oportunismo do calendário eleitoral, convivência com o discurso do ódio.
A Lava Jato suportou uma saraivada de críticas dentro do meio jurídico, mas foi bem-sucedida, sobretudo, por seu apelo midiático. Ter as entranhas expostas diariamente na imprensa não deixa de ser outra grande ironia.
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MARCELO SEMER é juiz de Direito e escritor. Mestre em Direito Penal pela USP, doutor em Criminologia pela USP, é também membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia.
Pintura de 1683 de Francisco Rizi retratando um auto de fé na Plaza Mayor, Madrid, em 1680