João Cândido: o almirante da revolta

No dia em que faria 139 anos, lembramos de um dos maiores símbolos da resistência brasileira

Por Fernanda Alcântara, na Página do MST

A vida de João Cândido é uma daquelas histórias que comprovam o quanto a história do Brasil é escrita e explorada apenas do ponto de vista dominante. Embora o nome de João Cândido (ou do Almirante Negro) soe familiar devido às canções e homenagens realizadas postumamente, ainda há muito o que aprender sobre esta grande figura.

Era 24 de junho, dia de São João Batista – sincretizado com Xangô nas religiões de matrizes africanas –  quando a ex-escrava Inácia Cândido Felisberto deu à luz João Cândido Felisberto. Cerca de 15 anos depois, o menino se alistava na Marinha do Brasil, não necessariamente por escolha, mas por questões de sobrevivência.

O tempo passou e na noite de  22 de novembro de 1910,  enormes canhões foram apontados para a capital Federal do Brasil.

Um grupo de mais de mil marinheiros subalternos da Marinha de Guerra se rebelou na baía de Guanabara, tomando o controle dos navios mais importantes da frota.

À frente destes marinheiros estava João Cândido, que por indicação dos demais líderes tinha o comando geral de toda a esquadra revoltada. Com habilidades técnicas impressionantes e desenvoltura exemplar, João Cândido entrava para a história do Brasil como um dos maiores símbolos de resistência e luta pela igualdade racial.

A Revolta da Chibata

No final do século 19, somente os brasileiros mais pobres, aqueles que não tinham alguém que os defendesse junto às Forças Armadas, poderiam ser levados ao serviço militar. A lei do recrutamento era pouco eficaz e o Exército e a Marinha enfrentavam problemas graves de falta de pessoal. 

Durante quase 15 anos João Cândido serviu oficialmente à Marinha. Seu potencial havia sido reconhecido quando, em 1909, juntou-se à outros marinheiros enviados à Grã-Bretanha para aperfeiçoar o manejo de encouraçados encomendados para o Brasil. Na Europa, Cândido tomou conhecimento do movimento realizado pelos marinheiros russos em 1905, reivindicando melhores condições de trabalho e alimentação. 

Ele sabia que, no Brasil, os marinheiros enfrentavam as mesmas condições que os russos. Por aqui, eram em sua maioria negros, pardos e oriundos do norte e do nordeste do Brasil, que também exigiam melhores condições de trabalho, com o destaque para o fim dos castigos corporais que, mesmo após 20 anos da assinatura da abolição da escravatura, ainda estavam sendo aplicados.

O uso da chibata como castigo aos marinheiros subalternos era, acima de tudo, simbólico. Mostrava que, para o Estado, os pretos e pobres continuavam sem importância humana. Mais de uma vez  autoridades responsáveis se comprometeram com o fim destes castigos, mas em nenhuma das negociações as promessas foram atendidas. Assim, no final de 1910, muitos grupos já articulavam a revolta para novembro.

Neste meio tempo – e com o objetivo de tentar inibir a manifestação – o marinheiro Marcelino Rodrigues de Menezes foi condenado à uma punição de 250 chibatadas aplicadas ininterruptamente, na presença de toda a tripulação do Encouraçado Minas Gerais. O acontecimento não só mobilizou a rebelião, que durou aproximadamente cinco dias, mas também influenciou a sociedade, conforme noticiado pelos jornais da época.

Após a revolta e a nova crueldade do estado

A Revolta da Chibata terminou com o compromisso do governo federal em dar fim aos castigos físicos e conceder anistia aos revoltosos. Entretanto, no dia seguinte ao desarmamento dos navios rebelados, foi emitido um decreto expulsando do país os marinheiros considerados “perigosos” que estivessem na revolta. Um mês depois, autoridades da Marinha encarceraram marinheiros em prisões solitárias no complexo naval da Ilha das Cobras, entre eles, João Cândido.

A prisão foi feita no feriado de Natal de 1910. Ma ocasião, 18 pessoas foram deixadas numa solitária por três dias sem ar puro, comida e água. A situação foi agravada ainda mais pelo acréscimo de uma solução de cal nas celas, diante das intempéries, somente dois homens sobreviveram – o soldado naval João Avelino Lira e João Cândido. 

Depois de sobreviver a esta atrocidade, João Cândido ainda permaneceu preso por dois anos, incomunicável, resultando também em um quadro de depressão. Foi internado em um hospital psiquiátrico por “ouvir os gritos dos seus falecidos colegas e ter visões”. Retornou ao presídio até ser  liberto e desligado da Marinha. 

De Almirante Negro ao ostracismo

A partir deste evento, o governo Brasileiro, na figura da Marinha, passou a boicotar João Cândido por quase cinco décadas, por personificar o movimento que libertou gerações de marinheiros de humilhações. Apenas em 1959, o conjunto desses fatos ficou conhecido pela historiografia brasileira como Revolta da Chibata, título do livro do jornalista Edmar Morel. 

Discriminado e perseguido pela Marinha até o final da sua vida, João Cândido morreu em São João de Meriti, vítima de um câncer. Apenas em 2008, 39 anos depois da morte de João Cândido Felisberto, publicou-se, no Diário Oficial da União, a Lei Nº 11.756 que concedeu anistia ao líder da Revolta da Chibata e a seus companheiros. 

O Brasil deve muito à João Cândido. A partir da construção de sua figura como objeto histórico da luta pela igualdade, recuperamos esta memória com a finalidade de que, um dia, estas histórias sejam valorizadas pelo que são: um exemplo de luta e amor pelo ser humano.
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*Editado por Maura Silva

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