Cineasta de ‘Democracia em Vertigem fala a CartaCapital sobre o processo de construção de sua obra – e a desconstrução em processo do Brasil
Por Flávia Guerra, na Carta Capital
Democracia em Vertigem, o novo filme da cineasta Petra Costa, nem havia estreado na Netflix quando o trailer já batia a marca de um milhão de visualizações (mais que sucessos mundiais como Stranger Things). Para além das visualizações, a polarização entre os cliques em “gostei” e “não gostei” rendia campanhas nas redes sociais por quem ainda não havia visto o documentário mas já se posicionava contra ou a favor do conteúdo do trailer.
Até a tarde de terça-feira 25, o trailer havia sido visto por mais de 1,8 milhão de pessoas e 210 mil “gostei” e 310 mil “não gostei”. A Netflix não abre, em geral, seus números de audiência, mas a julgar por estes números, pelo debate que vem sendo travado em veículos de imprensa, nas redes sociais e afins, o número de espectadores deve certamente já passar de um milhão nos mais de 190 países onde Democracia em Vertigem estreou. Tanto a ‘batalha’ dos likes e deslikes quanto a discussão em torno do filme revelam que a polarização em torno dos acontecimentos políticos da História recente do Brasil não se arrefeceram e nem se chegou, obviamente, a um consenso.
É neste sentido que o documentário chega em hora oportuna, enriquecendo o debate sobre o País por meio do cinema. “Espero que as pessoas vejam no filme a tentativa de uma cidadã de entender um processo democrático e investigando os erros dos diferentes personagens deste processo, os erros e acertos”, declarou a diretora.
De fato, em Democracia em Vertigem Petra faz um recorte pessoal e, ao mesmo tempo, global da história recente do Brasil, da eleição de Lula ao impeachment de Dilma, passando pela ditadura militar, redemocratização e passado colonial, sem esquecer a eleição de Jair Bolsonaro.
A propósito das eleições de 2018, é acertada a decisão de não se adentrar muito no assunto. Caso contrário, seria preciso outro filme. Assim como é interessante o recorte que faz das entrevistas com Lula, Gilberto Carvalho, Dilma e outros membros da esquerda.
“A gente ainda está num momento de muitas paixões e aversões políticas, em que só o fato de ouvir a voz do Lula já desperta sentimentos muito radicais”, comentou ela.
É nesta vontade de escuta que Democracia em Vertigem aposta para, muito além a batalha de likes e deslikes, atingir expectadores em todo o mundo, mas principalmente ampliar o debate em torno do tema no Brasil.
Confira a entrevista:
CartaCapital: Quando a gente assiste a filmes com o distanciamento histórico, há um tipo de experiência. Já Democracia em Vertigem acaba em um tempo muito presente e doloroso ainda. Como foi fechar o roteiro do longa e decidir a hora de parar de filmar?
Petra Costa: Foi difícil. Se eu soubesse que ia ter este vazamento (a série Vaza Jato, de reportagens do Intercept Brasil) não teria parado. A princípio o filme era só sobre o impeachment, mas quando estávamos começando a entender na ilha de montagem o material que tínhamos em mãos, a história que a gente ia contar, surgiram os vazamentos do (Michel) Temer. Lembro que fui para Brasília tão cansada, que sina era aquela em que tinha de viver o eterno retorno ao ambiente árido de Brasília. E havia a questão de se Temer ia ou não renunciar. Tínhamos de entrar no Palácio do Planalto. Quando ficou claro que não ia terminar no impeachment, ficou claro que o fim do filme seria a eleição do próximo presidente, que eu acho que é o fim de um capítulo que começou em 2013 e terminou em 2018.
CC: Já na campanha de lançamento de Democracia em Vertigem, houve uma queda de braço entre cidadãos mais alinhados à sua visão e mais alinhados à da direita, que clicaram em “gostar” e “não gostar” no trailer no Youtube.
PC: Pois é. E nestas campanhas de vai-e-vem o trailer já está com mais de um milhão e meio de visualizações, mais que O Mecanismo e Stranger Things.
A gente ainda está num momento de muitas paixões e aversões políticas, em que só o fato de ouvir a voz do Lula já desperta sentimentos muito radicais. Mas concordo muito com dois autores, o Steven Levitsky e o Daniel Ziblatt, de Como as Democracias Morrem, que o fundamental para uma democracia é respeito mútuo e autocontrole. Estes antagonismos são muito simplistas e reduzem a gente a 1% do que a gente é capaz de ser.
CC: Você termina o filme citando um filósofo grego e afirmando que a “democracia só está segura se as oligarquias estão com medo”. Ao mesmo tempo, muitos brasileiros de classe média e média baixa votaram em Jair Bolsonaro. Você cita isso no filme por achar que esta eleição partiu das classes mais altas do País?
PC: Não a eleição, mas a erosão que a democracia brasileira sofreu nos últimos anos é responsabilidade dos principais atores políticos brasileiros, dos principais atores do poder. Seja em 2014, quando todos os partidos desrespeitaram uns aos outros mais do que nunca desde a redemocratização, seja o PT ofendendo a Marina, o Aécio ofendendo a Dilma e o PT, enfim. E vice-versa. Acho que ali se cometeu uma falta de respeito mútuo muito grande. E depois quando a oposição não reconhece a vitória de Dilma na eleição de 2014 e começa a pedir a recontagem dos votos e depois o impeachment e “que depois a gente encontra a causa deste impeachment e o crime que ela cometeu.”
O Levitsky e o Ziblatt afirmam que um impeachment sem uma causa clara e inquestionável é como uma bomba atômica para uma democracia. E quase todo mundo embarcou na ideia de que um impeachment seria bom, apesar de não haver um crime inquestionável. As elites neste sentido são responsáveis pelas consequências que este impeachment vem trazendo.
CC: Democracia em Vertigem nasceu de uma inquietação muito particular, uma vez que você não vinha de uma trajetória de filmes políticos?
PC: Pelo contrário. Teve uma coisa meio ingênua de sentir que havia algo muito inquietante acontecendo na sociedade brasileira. Um ódio latente. Com Elena, eu sonhei que minha irmã tinha vomitado. Eu encontrava esse vômito e o cozinhava. E quando estava evaporando, vinha uma voz e me falava que a fumaça era a dor dela evaporando. Lembro que na noite anterior às filmagens da manifestação de 13 de março de 2016, vendo vídeos na internet, senti que havia algo muito doente na sociedade brasileira e pensei: “Acho que posso tentar ajudar isso a se transformar de alguma forma, mergulhando nesse assunto.” Mas pouco sabia que ia ser quase devorada por tudo isso.
CC: Há quem diga que este cenário, esta polarização, não combina com a imagem que se tem do Brasil. Democracia em Vertigem chega para o grande público após ter passado por importantes festivais como Sundance (nos Estados Unidos) e Sheffield (na Inglaterra). Como tem sido a receptividade ao filme no exterior?
PC: A recepção tem sido muito boa. Eu até pouco tempo falava, de uma maneira ingênua, que os Estados Unidos têm toda a potência, mas também um nível de intolerância política que a gente não tem, esta é a nossa vantagem. O interessante da crise é que ela expõe a ferida. Por muito tempo o Brasil teve esta democracia racial falsa, esta anistia que fez com que a gente não olhasse de fato para o que foi a ditadura militar. E assim vão se perpetuando autoritarismos e perversidades de uma forma discreta. E agora ficou tudo exposto.
CC: Você entrevistou muita gente. Em algum momento pediu esta autocrítica tanto de integrantes da esquerda quanto da direita?
PC: Muitas vezes. Perguntava “quer fazer uma autocrítica? Do que você se arrepende?” O Gilberto Carvalho foi o único que realmente levou esta pergunta com seriedade. Espero que isso mude. Sem dúvida a autocrítica por parte do Lula e da Dilma é muito necessária, mas é também necessária por parte do PSDB, da imprensa, da classe empresarial e dos próprios cidadãos que, como eu, por muito tempo levaram a democracia como uma certeza.
CC: E os que nunca concederam uma entrevista a você?
PC: Vários. Pedi uma entrevista para Aécio Neves antes de pedir para a Dilma. Ele foi a primeira pessoa com quem tentei falar. A Michel Temer também pedi muito, mas ele nunca me respondeu. Para Eduardo Cunha também pedi. Fernando Collor também. Há um momento em que corro atrás do Collor e digo: “O senhor não é representante do povo?” E ele me ignorou solenemente.
CC: O Brasil, diferentemente de países como Chile e Argentina, produziu poucos documentários sobre seu cenário político. Isso vem mudando?
PC: É impressionante como não há nenhum documentário, filme em longa-metragem, sobre o impeachment do Collor. Nenhum documentário feito durante a Ditadura Militar, só em retrospecto. Não temos um A Batalha do Chile, filmado no calor dos acontecimentos. É impressionante esta falta. Os documentários investigativos vão ser agora uma das ferramentas principais para se desvendar e exigir das instituições que elas sejam realmente democráticas.
CC: Como foi a aproximação com a Netflix?
PC: Logo que fizemos um teaser, a gente apresentou em um festival e fizemos um pitch (apresentação para se vender um projeto) para possíveis compradores e parceiros. Logo de primeira a Netlfix se interessou. E o processo de receber uma proposta e fechar com eles foi bem rápido. O filme pôde passar no cinema em vários festivais e a Netflix tem um programa muito bacana educativo, o Educational Screens (exibições de documentários para fins educacionais), qualquer bairro comunitário e escolas podem passar o filme. Acho importante que haja experiências coletivas, as pessoas poderem ver o filme, discutir e debater. Não tem nada melhor que poder ser visto por tanta gente em tantos lugares do mundo. E isso a Netflix proporciona.
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FLAVIA GUERRA – É documentarista e jornalista, com mestrado em direção de documentários pela Goldsmiths – University of London. É editora do TelaTela (www.telatela.com.br) e colunista da Rádio Band
FOTO: DIEGO BRESANI