84% dos aposentados e pensionistas recebem menos de 2 salários — os grandes privilegiados, para Guedes. Enquanto isso, governo dá tratamento VIP a bancos: perdoa dívidas e dá isenção fiscal em lucros obscenos
por Paulo Kliass, em Outras Palavras
O governo do capitão vive espalhando aos quatro ventos que sua proposta de reforma previdenciária veio para acabar com os privilégios existentes em nosso País. E para tanto a PEC 06 distribuía maldades para dificultar o acesso aos benefícios no interior do Regime Geral da Previdência Social (RGPS). Só que para essa turma liderada pelo superministro Paulo Guedes, os verdadeiros privilegiados seriam aqueles que recebem alguma aposentadoria ou pensão do INSS. Uma insanidade! A grande maioria desses beneficiários é composta de pessoas que estão na base de nossa pirâmide da desigualdade.
Essas informações são públicas e a cada mês o governo divulga um boletim com os resultados apresentados pelo RGPS. As estatísticas ali presentes desmontam a falácia do intento demolidor. Dos mais de 30 milhões de benefícios pagos mensalmente pela previdência social, mais de 84% correspondem a valores de até 2 salários mínimos. Ora, como é plausível classificar esses indivíduos como privilegiados, a ponto de merecerem uma Proposta de Emenda Constitucional, a terrível PEC 06, com tantas maldades embutidas em seu interior?
Sabemos todos que esse discurso é um embuste. São outros os verdadeiros setores que se beneficiam de nossa profundamente injusta estrutura de distribuição de renda. Os privilégios vergonhosos não devem ser buscados no interior do INSS, nem dentre a maioria dos servidores públicos. Os indivíduos que deveriam ser enquadrados para oferecer sua modesta contribuição para equilibrar as contas públicas não são os que recebem a fortuna mensal de um salário mínimo a título do Benefício de Prestação Continuada (BPC). Tampouco são os quase 10 milhões de trabalhadores rurais aposentados, que recebem em 99% dos casos o impressionante valor de R$ 998 a cada mês.
Os verdadeiros privilegiados
Os privilegiados mantêm seu elevado padrão de vida por meio de rendimentos auferidos no interior do sistema financeiro. Recebem fortunas a título de “lucros e dividendos” gerados pelas grandes empresas, inclusive pelos bancos. Esse tipo de remuneração foi agraciado com um impagável gesto de generosidade por parte de Fernando Henrique Cardoso em 1995. A partir daquele ano, esses ganhos passaram a ficar isentos de imposto de renda. Mais um dos inúmeros absurdos que escancaram a diferença de tratamento conferido às elites e à maioria da população. Assim, o trabalhador assalariado que ganhe mais de R$ 1.900 por mês está automaticamente incluído na faixa de cobrança de imposto de renda na fonte. Já o investidor que receba as fortunas milionárias relativas aos lucros e dividendos de suas participações nas empresas não recolhe um mísero centavo por conta desse mesmo tributo.
Essa triste paisagem é o verdadeiro retrato da desigualdade social e econômica que infelizmente tão bem caracteriza nossa sociedade. Paulo Guedes enche a boca para tecer loas ao espírito empreendedor de nosso povo, citando os milhões de casos de “micro empreendedores individuais”, que ganham inclusive a simpática sigla de MEI. Atualmente são mais de 8 milhões de pessoas nessas condições. No entanto, o que o governo não considera é que a maioria dessas funções são ocupadas por indivíduos que ficaram desempregados ou que não conseguem encontrar um posto de trabalho no mercado formal. Tanto que a partir de 2015, quando começou a recessão, houve um aumento de 77% nas estatísticas dos MEI.
No polo oposto do mosaico da desigualdade e da injustiça social, temos os bancos. Aqui, sim, uma verdadeira fotografia dos poderosos e influentes. As estatísticas apresentadas pelo Banco Central (BC) revelam que o sistema bancário em seu conjunto apresentou um lucro líquido de R$ 98,5 bilhões ao longo do ano passado. Ocorre que esse é um setor que comporta também uma característica estrutural igualmente perversa: o sistema bancário é extremamente concentrado – trata-se de um verdadeiro exemplo de oligopólio. De acordo com estudo divulgado recentemente pelo DIEESE, apenas os lucros dos 5 maiores bancos em 2018 atingiram o vergonhoso patamar de R$ 86 bi. Ou seja, os ganhos de Itaú + Bradesco + Santander + Banco do Brasil (BB) + Caixa Econômica Federal (CEF) representaram mais de 88% dos lucros apurados por todos as empresas do sistema.
Oligopólio de bancos – intocáveis
Os lucros líquidos desses 5 maiores bancos representaram um ganho de 16% em relação ao valor apurado em 2017. Ou seja, no mesmo intervalo de 12 meses em que os gastos do governo federal com saúde, assistência social, educação, previdência social e similares foram congelados, o ganho do financismo subiu leve e solto. No mesmo período em que o salário mínimo subiu exatamente apenas o índice da inflação, as finanças aumentaram seu lucro em 16%. No ano em que o consumo agregado das famílias cresceu apenas 2%, o lucro dos acionistas dos bancos cresce 8 vezes mais.
Impressiona como o comandante da economia tem a coragem de apontar o dedo para os despossuídos e passar a acusá-los de serem privilegiados. O governo nada faz a respeito dos impressionantes índices de sonegação e tampouco ele inclui em suas contas as perdas de receitas previdenciárias associadas às isenções tributárias gentilmente oferecidas às grandes empresas. Tendo em vista sua origem e vivência longeva no interior da nata do financismo, Paulo Guedes pouco se importa com o fato de o Brasil liderar a lista dos países que escancaram a maior concentração de renda no topo da pirâmide. Nenhuma outra nação do globo apresenta tanta desigualdade quando se considera a renda da parcela do 1% mais rico. Além disso, lembremos que apenas 5 bilionários por aqui detêm o equivalente a toda a riqueza dos 50% mais pobres.
Os bancos são melhor exemplo desse descalabro social e econômico. O setor é altamente concentrador e a opulência de seus proprietários contrasta tragicamente com a realidade da maioria de seus correntistas. Os interesses das empresas do mercado financeiro são sistematicamente defendidos pelos integrantes dos órgãos reguladores. O caso mais emblemático é do BC, pois esta agência pouco se preocupa em reduzir a margem de exploração patrocinada pelas empresas de um ramo tão oligopolizado como o bancário. A instituição pública que deveria regular e fiscalizar os agentes da oferta termina, na verdade, por se fazer complacente com a prática sistemática de apropriação de todo o tipo de renda possível de indivíduos, famílias e empresas que deles dependem. Afinal, estes são o elo frágil na relação com os superpoderosos do mundo das finanças.
A necessidade de maior contribuição dos integrantes do topo da pirâmide não deveria permanecer mais como tabu entre nós. O empresário tupiniquim típico sempre reclamou daquilo que os grandes meios de comunicação ecoam como “elevada carga tributária” reinante em nossas terras. Mas o fato é que nosso sistema tributário é profundamente marcado pela regressividade. Isso significa que os setores da base da pirâmide pagam proporcionalmente mais impostos do que os ricos.
A antecipação do debate eleitoral nos Estados Unidos, por exemplo, fez com que os maiores bilionários daquele país divulgassem documento expondo as mazelas da concentração e propondo que eles mesmos sejam ainda mais tributados em nome de uma suposta ordem social mais justa. Assim herdeiros da Disney, George Soros e outros sugerem um imposto federal de 1% sobre os ganhos do 1% mais ricos daquele país.
Talvez seja essa oportunidade para que nossas elites, sempre tão ciosas em elogiar o padrão norte-americano de conduta, comecem também a reconhecer a necessidade de oferecer sua modesta contribuição tributária para que seja recuperada a capacidade fiscal do Estado brasileiro. O escândalo da concentração de riqueza financeira e bancária é uma boa trilha a ser percorrida.
Se Paulo Guedes pretendesse, de fato, eliminar privilégios e cobrar deles sua cota de sacrifício que o momento tanto exige, o exemplo vindo das próprias elites do irmão do norte pode ser um bom começo.