O paraíso acaba. Por Lúcio Flávio Pinto

Na Amazônia Real

O vídeo é de janeiro deste ano, mas só agora pude vê-lo. Um morador local gravou as imagens. São 13 caminhões enfileirados, com dois a quatro anexos ou extensões, sobre os quais há 28 enormes toras de madeira, recentemente abatidas na floresta, que parecem ainda sangrar. Todas da mesma espécie, o ipê, “o diamante da Amazônia”, observa o morador, que, evidentemente, não se identificou.

Para os extratores de madeira selecionada, o trabalho deve ter rendido 1,5 mil reais. Em cima dos caminhões, o valor subiu para R$ 14 mil. Quando chegarem ao local de escoamento na direção do sul do Brasil, elas já valerão R$ 60 mil. Se tivessem permanecido na mata nativa, quanto valeriam?

Um abatedor de árvores, um caminhoneiro ou um madeireiro responderão que nada. Ela só vale mesmo quando entra na esteira da serraria para ser cortada e poder ser transformada em prancha, porta, móvel – na escala de sucessão da atividade produtiva. Num cálculo menos grosseiros, superficial e imediatista, que inclua a reciclagem dos nutrientes, a absorção de gás carbônico, a proteção ao solo e outras atividades naturais, que só ela pode desempenhar para manter a integridade da sua existência, certamente seu valor será muito maior, além de renovável, perene, eterno.

O enfileiramento de caminhões com árvores abatidas de ipê, árvores grossas e altas, não só as de maior valor, depois que o mogno foi quase extinto no caminho dos pioneiros, mas as de maior beleza cênica, dói no coração, na consciência, na alma. A clandestinidade é evidente: na posição dos caminhões, que parecem se ocultar, e no traçado que eles seguiram da mata fechada até o ponto de conexão com o tal do mercado, por uma estrada clandestina.

Tudo escondido, mas não dos satélites artificiais, que giram no alto e emitem suas imagens para os órgãos governamentais que os monitoram e sabem da destruição e da pilhagem, mas ou não conseguem ir da frente da tela do computador para s selva selvaggia de Dante, como, se lá chegarem, podem receber ordem de voltar, ou de não incomodar os parceiros ou receber uma reprimenda espalhafatosa e grosseira do chefe máximo, o presidente da república, ou do seu ordenança para o tema, o anódino ministro do Meio Ambiente. A selva virando sertão, onde a primeira lei se escreve com balas, que sua excelência Jair Bolsonaro quer presentear em maiores quantidades aos nacionais.

O saque é praticado num dos ambientes edênicos da Amazônia, a bacia do rio Arapiuns [afluente do rio Tapajós, no Pará], com seus sete mil quilômetros quadrados de área de drenagem. É uma paisagem tipicamente ribeirinha, que resiste a quatro séculos de convivência do nativo e sua natureza e com o colonizador munido de tecnologia superior. Meninos ou adolescentes, ia-se de Santarém, onde nasci, quase 70 anos atrás, até o piscoso, claro e limpo rio para estar em contato mais íntimo com o mais profundo ser amazônico, navegando-se pelo rio ou banhando-se nas suas cachoeiras, como a do Aruã.

Há muito tempo não volto ao Arapiuns. As imagens chocantes e revoltantes do vídeo servem de alerta: esse mundo já está desaparecendo, mais cedo e mais rápido do que poderia imaginar o mais pessimista dos frequentadores do lugar. Nada se pode fazer para deter esses bárbaros e seus cúmplices, sobretudo os de Brasília?

Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Acesse o novo site do jornalista aqui www.lucioflaviopinto.com.

Foto: Marizilda Cruppe/Greenpeace

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