Guarani Kaiowá e Karipuna contestam governo brasileiro em evento paralelo ao Conselho de Direitos Humanos da ONU

“Fala bonito dentro do papel, mas não está sendo cumprido dentro do nosso país”, disparou Alenir Guarani Kaiowá para os representantes do governo

por Renato Santana, em Cimi

“Eu represento o povo Guarani Kaiowá. Muita dificuldade, muita luta pra chegar até vocês. Venho como mãe, com uma criança no peito, com muita dor… eu não aguento mais. São só negócios e negócios, interesses políticos. E o nosso direito, onde fica?”, disse Janete Guarani Kaiowá no início de seu pronunciamento ao painel Os Impactos do Deslocamento Forçado Interno Sobre Povos Indígenas – Proteção Internacional e a Situação Brasileira, evento paralelo à na 41ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU). Mediou o debate Ulises Quero, coordenador para a América da Franciscans International.

Janete estava, momentos antes de se dirigir ao painel, no plenário da 41ª Sessão, com a pequena Elisandra em seu colo, onde também fez uma fala denunciando a situação do seu povo, que vive no Cone Sul do Mato Grosso do Sul em situação amplamente documentada de emergência humanitária, mas longe das preocupações do governo brasileiro. Durante o painel, um representante do Itamaraty se pronunciou dizendo que “o Brasil tradicionalmente tem sido um ator ativo e construtivo nos principais fóruns e instituições  relacionados à promoção dos direitos dos povos indígenas e reiteramos nosso compromisso com os interesses dos povos indígenas, que são constitucionais”.

A frieza protocolar da diplomacia brasileira ressoou de forma constrangedora a todos e todas. Conforme lembrou o secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Cleber Buzatto, “em 2019 não temos nenhuma terra demarcada. Temos, no lugar, um presidente que insiste em quase semanalmente declarar aos jornais e em seu twitter que não vai demarcar as terras indígenas, que ele que manda e que ele não vai fazer, em contraponto à Constituição que determina a demarcação”. O discurso contra a demarcação, explica Buzatto, incita à invasão de terras da União, de usufruto exclusivo do povo que a ocupa, e o esbulho: razão dos deslocamentos forçados.

Vindo de Rondônia, Adriano Karipuna denunciou as ameaças a que estão submetidas as aldeias do povo. “Por conta do governo brasileiro. Dizem pra gente que a terra não é nossa (…) que não gera riqueza pro Brasil e pro município e que é muita terra pra pouco índio”, explica. Entre setembro de 2015 e maio de 2018, foram desmatados o equivalente a 11 mil campos de futebol no interior da Terra Indígena Karipuna. Em fevereiro de 2018, madeireiros e grileiros atearam fogo no Posto Indígena de Vigilância (PIV) da Fundação Nacional do Índio (Funai). Os deslocamentos internos dos Karipuna se dão em cenário onde a ação de criminosos esbulha o território tradicional.

Mais fatores motivam deslocamentos

Um outro elemento apontado pelo Karipuna é a liberação de agrotóxicos. Já são 211 novos venenos no mercado com o aval do governo Bolsonaro, em seis meses de mandato. Como as Terras Indígenas são cercadas ou invadidas por monocultivos, os agrotóxicos se tornam um perigo mortal para os povos que estão vulneráveis a eles por terra, ar e rios. Mais uma razão para deslocamentos forçados. “Como indígena, vamos continuar mantendo a floresta em pé, pra combater o aquecimento global e pra dar continuidade à existência do meu povo. Os não indígenas necessitam direta e indiretamente da floresta em pé”, ressaltou.

Adriano se dirigiu aos representantes da diplomacia brasileira dizendo: “o que seu governo tá fazendo não é legal para os povos indígenas. Trazemos o discurso de ódio que faz contra o povo indígena. Recentemente publicou uma nota tirando vários direitos dos povos indígenas, a demarcação, municipalização da saúde indígena… o governo brasileiro humilha o povo e mata o povo no cansaço… não levem isso pro lado pessoal, é um problema de governo”.

Para a liderança da Kuñangue Aty Guasu (Grande Assembleia de Mulheres Guarani Kaiowá), Alenir Guarani Kaiowá, o governo “fala bonito dentro do papel, mas não está sendo cumprido dentro do nosso país. Eles estão lutando pra tirar os direitos indígenas. É muito bom de ver que temos os nossos representantes fora do país, que faz coisa bonitinha no papel, mas não está sendo cumprido. Se estivesse tudo bem, não estaríamos gritando pela ajuda internacional”. Janete, que também é da Kunangue Aty Guasu, completou dizendo que se sente muito indignada em ouvir o governo dizer que atende os povos indígenas quando na verdade seu povo sofre sem terra, envenenado em retomadas, vagando pelo sul do Mato Grosso do Sul em acampamentos às margens das rodovias e se deslocando acuados por pistoleiros.

A indígena Guarani Kaiowá apontou que a violência que recai sobre as aldeias afetam diretamente as mulheres: “Quando nossos maridos são destruídos e criminalizados… deixam a família, deixam esposa, os filhos… a gente fica com criança, quem vai ajudar uma mulher sozinha? Como mulher a gente precisa lutar pra sobreviver”.

Esbulho como estratégia 

“O deslocamento forçado de povos ocorre desde o princípio do processo colonial e continua até hoje. O instrumento estratégico para isso é o que denominamos esbulho possessório, a expulsão dos povos indígenas de suas terras tradicionais”, analisou o secretário executivo do Cimi. Com o decorrer do tempo, seguiu Buzatto, se tornou “uma política de Estado no Brasil (…) uma parte é o próprio Estado que tem executado essa estratégia, essa política de expulsão, que também afeta quilombolas e outras comunidades tradicionais nas mais diversas regiões do Estado brasileiro”.

No entanto, não é apenas o Estado responsável pelos deslocamentos internos forçados de populações indígenas no Brasil. “Há várias situações em que as terras indígenas são griladas, sob os olhos do Estado brasileiro, que não age no ritmo certo para impedir esses esbulhos (…) são várias situações pelo Brasil, o caso Karipuna é uma dessas situações que sofre processo de esbulho territorial com risco iminente de serem deslocados, especialmente povos isolados que sofrem essas expulsões” e, na maioria das vezes, quando se tem notícia do fato é tarde demais para agir.

O representante do governo brasileiro não tratou diretamente do assunto. Citou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), garantindo que o Brasil segue como um dos 23 países signatários, a Declaração Americana dos Direitos Humanos, a Declaração das Nações Unidas e o documento final da Conferência Mundial dos Povos Indígenas. Reconheceu apenas um ponto: que há desafios a serem enfrentados. Lembrou da passagem da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, por Genebra e do especial interesse dela pela questão indígena. Por fim, fez o que era esperado: citou que 12,5% do território brasileiro é ocupado por 606 terras indígenas demarcadas e que essa área equivale a um punhado de países europeus juntos.

A representação do governo brasileiro, que usa essa estratégia desde o governo Dilma Rousseff, só esqueceu de dizer que de acordo com o Atlas Agropecuário, lançado pela Imaflora, GeoLab da Esalq/USP e a KTH da Suécia, 53% da malha fundiária é privada no Brasil, sendo 28% destas consideradas grandes propriedades, ou seja, maiores do que 15 módulos fiscais. As áreas protegidas somam 27% – incluindo terras indígenas – e os assentamentos apenas 5%. Ou seja, mais da metade do território nacional sendo que deste total 28% está nas mãos do latifúndio. O agronegócio, a agricultura produzida em escala e metodologia industrial (monocultivos) e concentrada nas mãos de poucos, ocupa a maior parte das terras do país.

“Situação será insustentável”

“Os povos indígenas brasileiros e suas terras enfrentam enormes ameaças e a situação em breve se tornará insustentável na estação seca”, afirmou Richard Pearshouse, assessor de Crises e Meio Ambiente da Anistia Internacional, após retornar das Terras Indígenas Karipuna e Uru-Weu-Wau-Wau, em maio deste ano.

“O governo deve proteger os povos indígenas que estão defendendo suas terras, ou haverá derramamento de sangue”. No Evento Paralelo de hoje, Pearshouse, um dos painelistas, informou ao governo brasileiro que fotos aéreas das terras foram feitas no dia 1o de  janeiro pela Anistia Internacional e outras serão feitas em 31 de dezembro, como efeito comparativo.

Painel tratou dos deslocamentos forçados e reuniu entidades nacionais, internacionais e o governo brasileiro. Crédito da foto: Paulo Lugon Arantes/Cimi

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