Pesquisador diz que regulamentar setor é preciso e “tornar públicos os encontros entre lobistas e integrantes do Estado” também
Por Anna Beatriz Anjos, Agência Pública
“Sistemas democráticos precisam de equilíbrio mútuo, todo mundo tem que estar disposto a jogar o jogo”, afirma o pesquisador Manoel Santos, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), um dos principais estudiosos do lobby no Brasil: “Se há grupos ou segmentos sistematicamente excluídos do processo, o sistema vai quebrar”. Por isso, ele destaca, precisa haver um certo “grau de igualdade” na democracia, e quando se fala em lobby essa igualdade passa pelo acesso aos tomadores de decisão do Estado – os poderes Executivo e Legislativo e até Judiciário, em alguns casos.
Mas igualdade de acesso, segundo Santos, é exatamente o problema se o assunto é espaço e voz diante de parlamentares, servidores públicos e gestores. “Qualquer pessoa de bom senso está disposta a aceitar que grupos economicamente mais poderosos têm mais influência, e aqueles com mais acesso político também”, indica. Por isso, ele argumenta, “algo em que devemos apostar é como criar condições objetivas para que o acesso que os grupos mais organizados e com mais recursos têm também seja possível aos que não os têm, esse sim é um problema que precisa ser pensado”.
Em entrevista à Pública durante o encontro sobre o tema em São Paulo, Santos explica que a defesa de interesses junto a agentes públicos é uma atividade prevista na Constituição, mas que é urgente “trazê-la à luz”, o que pode ocorrer com a aprovação do projeto de lei de regulamentação do lobby (1202/2007), pronto para votação no plenário da Câmara. Para ele, o caminho ideal é tornar públicos os encontros entre lobistas e integrantes do Estado para que a sociedade possa consultá-los e “ter acesso a quem está conversando com quem e sobre o quê”.
O que é lobby, por definição?
Existem muitas definições de lobby, é um termo da arquitetura que passa para a política [o ex-presidente dos EUA Ulysses S. Grant chamava de lobistas as pessoas que o abordavam com pedidos diversos no lobby do hotel Willard, em Washington]. O lobby é uma ação de defesa de interesses junto a um tomador de decisão, no poder público, mas também fora dele, entre empresas privadas ou no campo pessoal. É uma atividade absolutamente comum e corriqueira, todos fazem; a confusão está relacionada ao fato de o termo ter assumido uma carga pejorativa ao longo do tempo. Quando se fala sobre o assunto, o termo está sempre associado a algum tipo de atividade sub-reptícia, que procura influenciar por meios não muito legítimos. Não sem razão, a antiga American League of Lobbyists [Liga Americana dos Lobistas, em português], nos Estados Unidos, mudou de nome e hoje se chama Association of Government Relations Professionals [Associação dos Profissionais de Relações Governamentais]. No Brasil, as duas associações que reúnem esses profissionais utilizam a mesma nomenclatura [Instituto de Relações Governamentais – Irelgov – e Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais – Abrig. Não porque os profissionais tenham problemas com isso [a palavra “lobby”] – não a maioria, mas muitos, inclusive, acham que o nome deveria ser esse –, o problema é que a batalha pela profissionalização da atividade passa também pela escolha de um nome que realmente reflita a atividade.
Quais os tipos de lobby são mais proeminentes no Brasil?
O Brasil ainda guarda uma estrutura que preserva um modelo corporativista de representação de interesse. Sindicatos, federações e confederações formam grandes confederações nacionais, que são poderosos atores na articulação política – exemplos são a Confederação Nacional da Indústria, a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária, a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo. Há também um lobby que se organiza em nível nacional, mas é feito fortemente por entidades de servidores públicos: na Ctasp [Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público], encontram-se confederações de servidores. Se você vai na Comissão de Justiça, há a forte presença, por exemplo, da AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros. São organizações que congregam servidores públicos, carreiras poderosas, que acabam também desenvolvendo uma atividade de representação de interesses. O lobby, por exemplo, da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], é muito presente no Congresso Nacional. A novidade interessante é a grande organização, em nível nacional, de novos atores: na sociedade civil, há grupos ambientalistas muito profissionalizados. Há também os de defesa do consumidor, que não representam interesses pessoais, mas difusos. O movimento negro está presente, o movimento feminista está muito bem organizado em nível nacional e atua em Brasília, o mesmo acontece com algumas ONGs internacionais, como o Greenpeace ou a Transparência Internacional. Ou ainda o Instituto Sou da Paz, brasileiro, com uma pauta na área da segurança pública, que faz um trabalho de acompanhamento da atividade parlamentar e do governo, emite opinião, apresenta estudos, contribui para o debate, também faz lobby. Os profissionais dessa área que trabalham no terceiro setor preferem dizer que fazem advocacy ou defesa de interesse público. Problemas semânticos à parte, não há muita diferença na ação, são as agendas que mudam significativamente. Em boa medida, a ideia de advocacy tenta se afastar do termo, que tem uma carga semântica pejorativa.
De onde vem a associação entre o lobby e atos ilícitos – corrupção, tráfico de influência etc.?
Qualquer atividade relacionada à defesa de interesses pode degenerar em uma relação escusa e inaceitável como tráfico de influência ou corrupção. Mas, por definição, o lobby não é corrupção – corrupção e tráfico de influência estão tipificados no Código Penal. A carga pejorativa está mais associada a um sentimento muito comum entre a população em geral de que há influência desequilibrada dos mais poderosos em detrimento daquilo que se convenciona chamar de interesse público. Ora, o dinheiro faz diferença: grupos econômicos mais poderosos de fato têm recursos que outros grupos não têm, por isso não é incomum encontrar grupos mais influentes que outros. Para quem se sente perdedor – e é justo que se sinta –, é natural a interpretação de que isso é uma interferência indevida do poder econômico no sistema democrático. Esse desequilíbrio de poderes entre setores da sociedade gera uma sensação de que grupos minoritários ou sem recursos para atuar politicamente sempre saem perdendo. Como vivemos numa democracia, nosso esforço é incluir, então precisamos pensar em como constituir mecanismos que deem voz também aos setores historicamente alijados do processo decisório, o que é um problema para a democracia.
Quais seriam esses mecanismos?
Não acredito que seja possível igualar [o acesso de todos os grupos às instâncias de decisão], não tenho a crença de que a democracia vai tratar todo mundo igual, mas também não acredito que possamos abandonar a ideia de que é possível diminuir as diferenças. Há alguns exemplos – tornar a atividade mais transparente é uma delas. Se a sociedade e a opinião pública, diante de uma tomada de decisão, sabem quem esteve envolvido no processo, fica relativamente fácil entender quem perdeu e quem ganhou. Do ponto de vista, por exemplo, do eleitorado, faz sentido que eu me engaje para escolher representantes que, uma vez no poder, me deem acesso. A União Europeia, por exemplo, nasce com um déficit de legitimidade, precisa reunir uma série de países, imagina o que seria um grupo de agricultores do interior de Portugal sair a Bruxelas para defender seus interesses no Parlamento Europeu? A lei que regula atividade na Comissão Europeia oferece recursos e meios para que as pessoas possam participar do processo. Em alguma medida, é preciso pensar em mecanismos que promovam o debate, e acredito muito que é possível, através das tecnologias da informação, incluir mais gente no processo.
Distribuir recursos para grupos que não dispõem de poder financeiro seria suficiente para diminuir as diferenças?
Parlamentares e a sociedade precisam promover recursos para financiar essa atividade para aqueles que não têm condições de viabilizá-la. Qualquer grupo que não tenha capacidade de mobilizar recursos para desenvolver a atividade, que não é barata, deve contar com apoio nesse sentido. A regulamentação do lobby em si se torna a atividade mais transparente, teoricamente cria as condições para que qualquer grupo, uma vez sabendo que o ministro da Infraestrutura se reuniu com empresas de navegação e portos, tenha o direito de pedir também uma audiência, de chegar lá e colocar seu ponto de vista. Se isso acontece fora do radar, em ambientes informais, é problemático. Não vale a pena alimentar a crença de que a regulamentação do lobby pode diminuir a desigualdade política; ela pode oferecer transparência, pode criar condições para decisões mais justas, mas a desigualdade econômica se projeta no sistema político. O grande desafio, na minha opinião, é como lidar com isso. Tem uma frase que diz “a quem pode, o poder; a quem não pode, a participação”, ou seja, participar simplesmente não garante que você seja levado em consideração, isso acontecerá na medida em que existam instituições nas quais você está representado. Por isso é tão importante, por exemplo, ter uma representação de mulheres que obedeça a nosso critério demográfico – e não só, há poucos negros e trabalhadores no Congresso, a comunidade LGBT lá representada está restrita a três ou quatro parlamentares. Se existe uma maneira de que a democracia promova o acesso desses grupos de forma um pouco mais equilibrada é garantir que estejam representados lá, porque a desigualdade econômica não será resolvida a curto prazo em um país como o nosso.
De que forma deve ocorrer a regulamentação do lobby, na sua opinião?
Há um longo debate sobre como fazê-lo. Em linhas gerais, poderíamos dividi-lo em dois: é possível fazer uma regulamentação a la Estados Unidos, onde regulamenta-se o que chamam indústria da influência, uma regulamentação pesada que exige cadastramento, relatórios, acompanhamento. A outra alternativa que, na minha opinião, é mais adequada para o Brasil é a regulamentação mais soft, basicamente no estilo do que foi feito no Chile: o cadastro surge naturalmente a partir das interações dos profissionais com os agentes de governo. É responsabilidade desse agente registrar com quem encontrou, que assuntos foram tratados, e isso vai para um portal público. Assim, é possível ter informações sobre quem está atuando politicamente, o que já dá uma transparência muito grande ao processo. A regulamentação nos Estados Unidos parece que errou a mão, ficou muito pesada. Muitos profissionais foram para as sombras – são chamados de shadow lobbyists –, e isso é grave; a regulamentação pode dar um efeito positivo em termos de transparência, mas pode provocar o efeito contrário também. Você começa a tornar o negócio proibitivo e isso gera um sub-registro, o que é ruim, pois essas pessoas não vão parar de atuar – o direito de petição, de falar com um parlamentar e exercer influência sobre, ele é constitucional. O que é preciso fazer para trazer a atividade à luz, que é a parte mais importante, é dar transparência aos relacionamentos.
Como isso é possível?
Talvez o melhor exemplo seja a Anvisa, que tem um espaço chamado Parlatório: se você quer marcar uma reunião com um técnico ou alto burocrata, alguém importante para o seu setor a quem você deseja apresentar uma proposta ou ideia, só pode fazê-lo via internet, pelo formulário online. O encontro se dá nesse Parlatório [na sede da Anvisa, em Brasília] e fica tudo registrado. Se você se encontrou com um agente público, fez o registro e nele consta o que vocês trataram, para mim está resolvido, penso isso com toda franqueza. A legislação dos Estados Unidos é tão forte, por exemplo, que o profissional ou o escritório tem que dizer quanto ganhou naquele ano, quem pagou, de quem são os interesses que representou. É um processo muito engessado e burocrático que, na minha opinião, não resolve o problema, pois quem está a fim de cometer desmando não vai se registrar. A melhor forma seria optar por um modelo de regulamentação que permitisse à opinião pública, aos eleitores e a outros grupos de interesse ter acesso a quem está conversando com quem e sobre o quê. Um exemplo: a reforma da Previdência. Quem foi que o secretário especial da Previdência recebeu esta semana? Saberíamos com quem está falando. Se eu tenho interesse nisso, vou lá e digo “a proposta desse setor com quem você está conversando é contrária à nossa, o senhor que ouvi-la?”. O servidor público ou parlamentar tem que ouvir vários lados. O problema está em trocar o resultado por vantagem. Quando digo isso, estou olhando pelo lado do parlamentar e do servidor público: “Eu faço isso se você me der isso”, ou, pelo lado de quem está exercendo influência: “Eu faço isso se você me der isso”. Você não pode tirar vantagem ou usar de tráfico de influência para tentar induzir uma determinada decisão pública.
Quais os principais problemas atrelados ao lobby no Brasil atualmente?
O problema do Brasil é a corrupção endêmica, que precisa ser combatida. Uma regulamentação daria transparência à atividade e segue o jogo, pois ela é salutar à sociedade. Algo em que devemos apostar é como criar condições objetivas para que o acesso que os grupos mais organizados e com mais recursos têm também seja possível aos que não os têm. Esse sim é um problema que precisa ser pensado. Sistemas democráticos precisam de equilíbrio mútuo, todo mundo tem que estar disposto a jogar o jogo. Se há grupos ou segmentos sistematicamente excluídos do processo, alijados de participar de uma parte considerável da produção de riqueza, cultura e acesso, o sistema vai quebrar. Esses grupos, uma hora, desistem de jogar o jogo e buscam outras vias para entrar no poder. Por isso a democracia exige algum grau de igualdade – ou que se persiga isso.
Em sua pesquisa, você analisa a capacidade do poder econômico em determinar resultados políticos de duas maneiras: por meio do financiamento de campanha e do lobby. Quais as conclusões?
Os resultados são ambíguos. Qualquer pessoa de bom senso está disposta a aceitar que grupos economicamente mais poderosos têm mais influência e aqueles com mais acesso político também. O problema é que o fato de você ter influência ou não é um componente do resultado político. Um lobista pode fazer um trabalho de um ou dois anos no Congresso para tentar aprovar uma lei. Se um dia antes a Esplanada dos Ministérios estiver lotada, ele vai perder – o Congresso não vai dar um tiro no pé, o parlamentar não vai se expor. Num regime democrático, existem múltiplas forças atuando. As pessoas dizem às vezes que os empresários mandam no governo, não é tão simples. O setor empresarial tem mais influência que os outros? Sim. Mas o Estado não está capturado por ele.
Em maio, o presidente Jair Bolsonaro compartilhou texto via WhatsApp dizendo que o Brasil é ingovernável devido aos interesses predominantes de “corporações” que impedem qualquer medida ou política contrária aos seus interesses.
São múltiplos interesses corporativos. Não há um grupo que manda no Brasil, há grupos que se beneficiam mais que outros. Numa democracia como a nossa, cheia de pontos de vetos, isso não é verdade. Fica muito difícil você atribuir um resultado político a uma ação específica. É óbvio que é importante decifrarmos os atores relevantes ao processo político, mas daí a dizer que eles capturaram o governo não é verdade. Precisa ter cuidado, é uma generalização muito forte.
O lobby do agronegócio é considerado um “case de sucesso” por conseguir articular muito bem seus interesses junto à Frente Parlamentar da Agropecuária – ou bancada ruralista. Por que isso é possível?
Talvez não haja hoje, no Congresso Nacional, uma bancada tão forte quanto a ruralista. Historicamente, o setor agrícola ocupou fortemente o Congresso, é uma bancada muito grande e articulada, e resolveu jogar o jogo lá, provavelmente também porque, nos últimos anos, não deve ter tido muito acesso ao Executivo — se estou com as portas fechadas no Poder Executivo, vou para o Parlamento, é uma questão de estratégia. Veja só que interessante: os movimentos feminista e LGBT perceberam muito cedo que a descriminalização do aborto não sairia de uma lei. Por isso, judicializaram a questão, e hoje, por exemplo, o aborto está descriminalizado [em caso de anencefalia do feto] por decisão judicial. O casamento de pessoas do mesmo sexo é outra coisa, não está em lei, mas há uma decisão do Supremo Tribunal Federal que garante às pessoas esse direito. Cada um joga na arena que lhe é mais favorável – houve um esforço no sentido de pressionar, na opinião pública, o STF de participar de audiências públicas e tentar induzir o voto do magistrado nessa direção. No Parlamento, para formar uma maioria e aprovar uma pauta que mexe com costumes e valores morais, é difícil.
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Imagem: Manoel Santos, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), um dos principais estudiosos do lobby do Brasil – Lucas Braga/UFMG