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David Harvey (Gillingham, 1935) é um geógrafo marxista de origem britânica que trabalha como professor na City University of New York (CUNY) e que se tornou um dos cientistas sociais de referência para muitos movimentos de esquerda. Nestes dias, visita Barcelona para apresentar seu novo livro La lógica geográfica del capitalismo (Editora Icaria), uma obra biográfica que oferece uma passagem histórica pela trajetória do autor, uma entrevista realizada em 2015, novos textos traduzidos para o espanhol e um capítulo inédito.
A entrevista é de Edgar Sapiña, publicada por El Diario, 14-06-2019. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Você se define como anticapitalista, antes que socialista, comunista, anarquista ou populista. Por quê?
O capital tem muita influência sobre muitos aspectos da vida diária. Não é apenas a economia. É a cultura, a forma de pensar e as estruturas de conhecimento. Conceitos como o comunismo e o socialismo costumam estar muito associados com uma concepção de mundo muito rígida. As relações sociais entre as pessoas devem ser transformadas, mas isto requererá muitas transformações mentais. Por isso, penso que temos que retirar o capitalismo de nossas cabeças, assim como das ruas e da vida.
E o anticapitalismo é um termo que engloba mais aspectos que conceitos como socialismo ou comunismo?
Sim. Acredito que não estamos em uma posição suficiente para descrever, agora, uma alternativa ao capitalismo e quero escapar da caixa que é o comunismo, o socialismo ou o anarquismo.
Após um período de silêncio, parece que nos últimos anos houve um interesse crescente pelo comunismo. Aqui, na Espanha, por exemplo, em 2017, Alberto Garzón publicou “Por qué soy comunista”. Como se materializa o comunismo hoje?
Não sei. Também não sei o que Garzón pensa sobre o comunismo. Do que estou certo é que os níveis de desigualdade atuais são inaceitáveis. Não acredito em uma igualdade absoluta, acredito que certas desigualdades são interessantes, mas certamente as desigualdades de renda estão revertendo muitas das coisas que deveríamos poder alcançar.
Uma das coisas em que penso no final do dia é na qualidade das relações sociais entre as pessoas. Um dos efeitos de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos foi a degradação das relações entre grupos de imigrantes e entre grupos com diferentes orientações sexuais. A transformação destas relações sociais está indo em uma direção muito negativa.
O comunismo evoluiu, após a queda do muro de Berlim, em 1989, e com a dissolução da União Soviética em 1991?
O comunismo é crítico, obviamente evoluiu a partir de 1989 e acredito que, de alguma forma, o colapso da União Soviética e tudo o que isso supôs permitiu a reavaliação do que deveria ser o projeto comunista. Temos um governo na China que chama a si mesmo de comunista. Muita gente não o leva a sério, mas deveriam. O que devem fazer ou para onde precisam ir é uma grande pergunta para mim.
Acredita que é uma sociedade comunista?
Não, não é uma sociedade comunista, mas ideologicamente eles reivindicam que até 2050 serão uma sociedade plenamente socialista. Eu levo muito a sério essa proclamação, apesar de algumas medidas que adotaram, como o intercâmbio mercantil capitalista. Há problemas de desigualdade social e de degradação ambiental, mas todos os países têm. Eles disseram que serão plenamente socialistas até 2050 e isto significa combater o problema ambiental e a desigualdade social.
Uma das coisas que sabemos da China é que quando dizem que irão fazer algo, fazem e de forma muito rápida. Não são democratas em nada, mas não se deve subestimar as possibilidades que a China tem. Trump está organizando uma política antichina, nesse momento, e é um profundo erro por parte dos Estados Unidos, porque está estimulando a China a ser mais autônoma.
Duas das correntes de pensamento mais recentes são o feminismo e o ambientalismo. Como coexistem estes dois movimentos com o sistema econômico atual?
Uma das coisas interessantes destes dois movimentos é que o neoliberalismo colocou, a partir de 1970, uma grande ênfase no empreendimento e abriu a possibilidade para que o feminismo utilize esta ideologia para criar o que poderíamos chamar um feminismo corporativo. Esse é o feminismo de Hillary Clinton, um tipo de empreendimento satisfatório no qual, é claro, há a possibilidade de que as mulheres ocupem posições importantes no mundo acadêmico, por exemplo. O mesmo pode acontecer com o multiculturalismo e a orientação sexual.
O neoliberalismo pode ser visto como uma abertura que permite um progresso nos direitos do coletivo LGTBI e das mulheres. De qualquer modo, acredito que muitas feministas estão percebendo que o neoliberalismo não é a solução, mas, ao contrário, é o seu inimigo prioritário. Há uma transformação em algumas pensadoras feministas que dizem que não podem conquistar seus objetivos com o neoliberalismo e que é necessário avançar para posições anticapitalistas. O mesmo se pode dizer do movimento ambientalista.
Então, é compatível defender o capitalismo junto com o feminismo e o ambientalismo?
Se você defende o sistema econômico atual, estará defendendo um tipo de feminismo que se baseia em incorporar mais mulheres nas empresas, mas o problema, nesse momento, são as condições salariais das mulheres trabalhadoras, que estão vivendo em condições muito difíceis. São elas que estão sofrendo as políticas neoliberais. Enquanto uma mulher de classe média pode se beneficiar do neoliberalismo, muitas das trabalhadoras estão sofrendo muito sob as políticas de austeridade. Algumas mulheres e ambientalistas se beneficiam com o neoliberalismo, mas as principais problemáticas estão fora da dinâmica capitalista.
Você acredita que nos próximos anos o capitalismo evoluirá e defenderá o ambientalismo, em prol de gerar um lucro econômico com isso, ou se manterá no mesmo ponto em que está agora?
O ambientalismo faz parte de um grande negócio, há setores do mercado que estão buscando lidar com a mudança climática. Não digo que o capitalismo não tenha prestado atenção às questões ambientais, o que questiono é o limite do lucro capitalista. A industrialização da agricultura, por exemplo, criou um sério efeito secundário. Estes são problemas que levam ao limite a capacidade do sistema econômico capitalista.
As problemáticas que ultrapassam o material invisibilizam a luta de classes?
Há uma tendência que consiste em evitar a questão de classe, particularmente, a partir da queda da União Soviética, havia uma tendência que dizia que Marx e o conflito de classes sociais estavam mortos. Se perguntamos, agora mesmo, quais são os agentes ativos, em termos de políticas de esquerda, já não são os trabalhadores fabris. A clássica visão do proletariado que irá se emancipar é o trabalhador de uma fábrica.
O problema principal é se perguntar quem é o proletário hoje em dia. Quando fazemos esta pergunta, temos que pensar em uma configuração distinta. Outro dia, quando estava em um aeroporto, olhei pela janela e vi a força de trabalho. Quem faz funcionar um aeroporto? Quando você olha para os Estados Unidos, vê muita gente de cor, muitos imigrantes e mulheres assalariadas. Se toda esta gente abruptamente decide fazer greve, o aeroporto precisa fechar. O capital ficaria completamente bloqueado. Este é o novo proletariado.
Nesta década, os partidos de extrema direita cresceram. De fato, nas últimas eleições europeias, venceram na França, Reino Unido, Itália, Hungria e Polônia. Como os partidos de esquerda devem responder, já que uma parte dos eleitores de extrema direita são antigos eleitores da esquerda?
É necessária uma reorientação das políticas de esquerda e acredito que as bases institucionais das políticas de esquerda não sobreviveram muito bem. As políticas de esquerda falharam em grande medida, nos últimos 10 a 15 anos, com algumas exceções. Por exemplo, o auge inicial do ‘Podemos’ foi uma coisa muito positiva, mas acredito que ainda está em formação. Há uma vasta parte da população descontente com as políticas neoliberais. É um momento muito interessante. Tenho a sensação de que em um futuro muito próximo veremos um ressurgimento da esquerda, mas precisa buscar uma nova voz e falar de um modo diferente. A conversa deve ser baseada em uma configuração ideológica distinta.
Em que se deve basear essa conversa?
Tem que estar baseada em como entender as políticas anticapitalistas na atual conjuntura. As transformações revolucionárias não serão violentas. Nos últimos 20 anos, vivemos uma pressão muito forte na rua. Um exemplo atual disso são os coletes amarelos na França. A grande pergunta é para onde vai politicamente. Temos que repensar como devem ser as políticas. Para isso, para isso é preciso haver uma conversa sobre o que é o anticapitalismo.
Você considera a história e a geografia duas disciplinas inseparáveis que, juntas, explicam o que está acontecendo no mundo. De qualquer modo, hoje em dia, são estudadas em separado. Isto é um erro do mundo acadêmico?
É um profundo erro. A especialização é importante, mas o que realmente não gosto é da criação de aprendizagens que se supõe que não devem se comunicar com outras disciplinas. Por que estamos segmentando desta forma? Uma coisa peculiar no mundo acadêmico nos Estados Unidos, não sei se também ocorre aqui, é que há uma constante demanda por multidisciplinaridade.
Por que acredita que a geografia é uma disciplina útil para compreender a realidade?
Um dos motivos é que o fato da geografia não ser uma disciplina muito organizada, cria uma grande oportunidade. Duvido que teriam me deixado fazer em outra disciplina tudo o que fiz em geografia. A geografia é mais aberta, um pouco porque as pessoas não sabem exatamente o que é, tudo bem, mas, por sua vez, é ruim porque os administradores acadêmicos não sabem o que fazer com isso.
Não sei se está muito por dentro da situação política em Barcelona. Após as eleições municipais, Ada Colau buscará, neste sábado, ser reeleita prefeita com o apoio do PSC e da lista de Manuel Valls, que é apoiada por ‘Cidadãos’. Se isso acontecer, o partido ERC, que venceu as eleições, se tornaria o principal partido da oposição. Qual seria o melhor cenário para governar Barcelona, em sua opinião?
A gestão de Colau foi muito importante para as pessoas que, como eu, acredita que a organização do poder municipal é parte de um processo político muito crítico no mundo, nesse momento. Acredito que o que ocorre em nível municipal é importante e a administração de Colau foi uma mostra importante para o restante do mundo, ensinando que as coisas podem ser feitas.
A questão independentista precisa ser abordada. Este é um fato muito particular que torna as coisas difíceis, não é uma coisa de partidos de esquerda contra partidos de direita. Pessoalmente, não me emociona muito a ideia de uma Catalunha independente. Acredito que isso não irá acontecer e não acredito que a União Europeia irá aceitar, mas isso é só minha opinião de fora. Posso ser persuadido [risos].
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David-Harvey. Foto: Marcos Alves / Agência O Globo