“O capital financeiro é determinante na formação do déficit habitacional”. Entrevista especial com Karina Macedo Fernandes

Por: João Vitor Santos, em IHU On-Line

Apesar de o direito à moradia digna estar assegurado na Constituição Federal brasileira, “atualmente o Brasil enfrenta um déficit habitacional de mais de 6,2 milhões de moradias”, diz Karina Macedo Fernandes na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line. “Das regiões do Brasil, o déficit habitacional mais crítico se encontra na região  Sudeste (2.562.117 domicílios), seguindo-se Nordeste (1.867.563 domicílios), Sul (658.360 domicílios), Norte (631.586 domicílios) e Centro-Oeste (478.668 domicílios)”, informa.

Na avaliação da pesquisadora, a falta de moradia no Brasil é resultado da combinação entre as formas jurídica e econômica. O direito, explica, “sob o discurso da lei e da ordem como expressões da vontade geral ou do ‘interesse público’, é utilizado como um instrumento de estratégia de classe na produção do espaço urbano” e “a legislação urbanística é utilizada como um instrumento privilegiado para racionalizar o uso do espaço em benefício das classes dominantes”. Já a economia, dominada pelo capital financeiro, transformou a moradia numa mercadoria. “O fortalecimento do complexo imobiliário-financeiro tem como principal impacto a despossessão massiva de territórios, o empobrecimento substancial da população — desde a criação da categoria de pobres urbanos ‘sem lugar’ até os processos de subjetivação estruturados a partir da lógica capital do endividamento — e a segregação social cada vez mais profunda das cidades”, adverte.

Karina pontua ainda que os principais desafios para enfrentar a falta de moradia no país são o “cumprimento da Constituição e da lei quanto à política urbana” e a elaboração de um programa habitacional que “atenda às necessidades emergenciais das populações vulneráveis”.

Autora da tese de doutorado intitulada “Direito à cidade, Colonialidade e Território: a disputa pelo Cais Mauá, em Porto Alegre” (2019),  Karina  também reflete sobre o direito à cidade e afirma que o projeto de revitalização do cais na capital gaúcha não considerou os elementos sociais, econômicos e políticos da cidade como um todo.

Karina Macedo Fernandes é graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG, mestra e doutora em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Integra o Núcleo de Direitos Humanos da Unisinos e desenvolve pesquisas na área de Direito, com ênfase em direitos humanos, direito à cidade e pensamento descolonial.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – No que consiste o direito à moradia digna e à cidade? Como esses direitos incidem na vida dos sujeitos?

Karina Fernandes – Reconhecido como direito humano na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e, no Brasil, como direito social no artigo 6º da Constituição Federal, o direito à moradia digna é o direito que todo ser humano tem de viver em um lugar com segurança, paz e dignidade. Muito mais do que um teto e quatro paredes, a moradia adequada compõe o direito a um padrão de vida adequado e tem como principais pressupostos o acesso a serviços, equipamentos e infraestrutura urbana, como água, saneamento, energia, rede de transporte público.

Suas características intrínsecas são: habitabilidade (espaço adequado, proteção do calor, frio, umidade, chuva, alagamentos e outras ameaças), localização (a moradia deve ser localizada onde seja possível o acesso ao emprego, à educação, aos serviços básicos de saúde e outros serviços sociais), segurança legal da posse (proteção legal contra remoções forçadas e quaisquer ameaças ao exercício da posse), acesso econômico  (em suas proximidades deve haver oferta de emprego e fontes de renda e de abastecimento básicas), não discriminação (deve ser acessível a minorias políticas, como mulheres, idosos, crianças, pessoas portadoras de necessidades especiais, vítimas de desastres naturais ou de perseguições políticas, de maneira que o direito à não discriminação é inerente ao direito à moradia — não há moradia plenamente adequada se há discriminação) e adequação cultural (a construção de moradia e qualquer intervenção que nela se realize deve expressar a identidade e a diversidade cultural de quem a habite, o que significa que a habitação expressa uma dimensão cultural que deve ser respeitada).

Isso significa dizer que a moradia adequada é aquela que possui condições de salubridade, de segurança e de instalações sanitárias adequadas, atendida pelos serviços públicos essenciais, dentre os quais água, esgoto, energia elétrica, iluminação pública, coleta de lixo, pavimentação e transporte coletivo, e com acesso aos equipamentos sociais e comunitários básicos (postos de saúde, praças de lazer, escolas públicas etc.), além de possuir um tamanho mínimo para ser considerada habitável e guardar proximidade com meios de mobilidade que possibilitem o exercício da força de trabalho das cidadãs e dos cidadãos.

direito à cidade é visto e expressamente trabalhado a partir de 1968, quando Henri Lefebvre lança o livro “Direito à cidade” (Le droit à la ville) em Paris e marca a data de nascimento de uma categoria política que teve seu percurso histórico consoante às lutas dos movimentos sociais que reivindicam o usufruto digno e equânime das cidades, isto é, o acesso amplo às questões que surgem da vida nas cidades. O direito à cidade, assim, existe sob um paradoxo em que se tem, de um lado, seu caráter jurídico, enquanto, por outro lado, uma plataforma política de movimentos sociais.

Direito à cidade

Brasil foi o primeiro país do mundo a positivar o direito à cidade, a partir da Emenda Popular pela Reforma Urbana, formulada por um conjunto de entidades e associações de classe, organizações não governamentais, associações civis, movimentos e grupos sociais reunidos em torno da pauta da reforma urbana, cujo resultado foi a participação na Assembleia Nacional Constituinte. Com a Emenda Popular Pela Reforma Urbana, houve a conquista da transposição da questão urbana no Capítulo da Política Urbana na Constituição Federal. Foram apenas dois artigos (artigos 182 e 183) que deram a base constitucional da nova ordem jurídico-urbanística, mas o impacto político deste reconhecimento foi expressivo: a política urbana foi colocada pela primeira vez na história constitucional brasileira, revolucionando o paradigma civilista clássico do Código Civil de 1916, que até então correspondia à forma legal aplicável às questões inerentes aos processos socioeconômicos e territoriais que caracterizaram o processo de urbanização no Brasil.

Nascido no movimento constituinte, o Movimento Nacional pela Reforma Urbana realizou em outubro de 1988 o primeiro encontro do Fórum Nacional de Reforma Urbana, que passava, assim, a ser o principal sujeito coletivo a postular a normatização do direito à cidade; nesse encontro, foram definidos os três princípios básicos da política urbana:

a) direito à cidade e à cidadania;

b) gestão democrática da cidade; e

c) função social da cidade e da propriedade.

Treze anos depois do reconhecimento constitucional e da instituição do Fórum Nacional de Reforma Urbana, os artigos 182 e 183 da Constituição Federal foram regulamentados no Estatuto da Cidade, Lei nº. 10.257 de 10 de julho de 2001. Sua publicação ocorreu onze anos após o protocolo do respectivo projeto de lei, e as razões para a longa tramitação correspondem à agenda das reformas liberais que marcou a década de 1990 no Congresso Nacional, assim como à resistência de muitos parlamentares da época quanto ao conteúdo em si do projeto de lei do Estatuto da Cidade e seu forte comprometimento com os princípios da função social da propriedade e da cidade, distante do debate político hegemônico de então.

As diretrizes gerais da política urbana estão previstas no artigo 2º do  Estatuto da Cidade, e representam uma ampla preocupação com a gestão compartilhada do solo urbano, com a ordenação e controle do uso do solo. As diretrizes gerais buscam evitar, essencialmente, a utilização inadequada dos imóveis urbanos, a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes, o parcelamento do solo, a edificação ou o estabelecimento de usos excessivos ou inadequados à infraestrutura urbana, a instalação de empreendimentos ou atividades que possam comprometer o tráfego das cidades sem que haja previsão de infraestrutura correspondente, a retenção especulativa de imóvel urbano que resulte na sua subutilização ou inutilização, a deterioração de áreas urbanizadas e a degradação ambiental.

Os princípios de direito urbanístico que correspondem às diretrizes gerais da política urbana, conforme o artigo 2º do Estatuto da Cidade, buscam instituir o paradigma da função socioambiental [1] da cidade e da propriedade urbana. Em vista disso, seu conteúdo vai de encontro ao paradigma clássico da propriedade individual plena e perpétua instituído no Brasil desde a Lei de Terras de 1850, revolucionando a forma específica de uso e direitos sobre a terra estabelecida nos últimos séculos de história da relação social entre a humanidade e o território no Brasil.

Durante o II Fórum Social Mundial, um ano após a aprovação do Estatuto da Cidade, o Fórum Nacional da Reforma Urbana propõe a Carta Mundial pelo Direito à Cidade, documento que enfatiza o papel das cidades como espaços onde o usufruto coletivo da riqueza, da cultura, de bens e conhecimentos sejam garantidos a todos os seus habitantes. Na mesma ordem de definições do Estatuto da Cidade, a Carta Mundial pelo Direito à Cidade é um instrumento jurídico-político internacional que confere legitimidade às demandas de movimentos sociais, sociedade civil e governos para assegurar o pleno exercício do direito a um padrão de vida adequado, fortalecendo a importância do debate sobre a cidade e constituindo-se como um referencial político, social e econômico, ao mesmo tempo em que se constitui como um conjunto de princípios orientadores dos processos de produção, construção e gestão das cidades, além de uma carta de direitos, deveres, mecanismos de exigibilidade e fiscalização na orientação da ação dos agentes públicos e privados nas cidades.

O impacto desses direitos na vida dos sujeitos pode ser analisado como um processo de ampliação de cidadania que se dá a partir da consagração normativa de que a moradia é um direito a ser assegurado a todos, da mesma forma que deve ser assegurada a participação direta dos cidadãos nos processos decisórios da cidade. A possibilidade de ampliação do exercício da cidadania está em colocar o Plano Diretor e as decisões importantes da cidade em uma esfera de debate com a população na busca de realizar as melhores estratégias de intervenção no território: os cidadãos em geral (e não apenas os “clientes” dos planos e leis de zoneamento, aqueles que, por terem interesse ou relacionamento econômico com o parcelamento do solo urbano, dominam a linguagem e a utilização das leis correspondentes) deixam de ser apenas “consultados”, mas passam a ter um papel ativo nos processos decisórios. Não se pode perder de vista que onde há regularização fundiária e coparticipação do Estado e dos cidadãos na vida das cidades, há potencial redução de desigualdades sociais e de violência nessas cidades. A violência emerge nos espaços onde o Estado não se faz presente.

IHU On-Line – Como compreender a violação dos Direitos Humanos à moradia e à cidade que ocorre no Brasil atualmente?

Karina Fernandes – É importante situar esses direitos e as lutas sociais que os prescindem no contexto atual, de aumento significativo de despejos e deslocamentos compulsórios nas grandes cidades, somado às crises do capitalismo financeiro pós-colapso do sistema financeiro globalizado de 2008. Isso tudo se reflete diretamente na produção do espaço urbano constituído, especialmente na moradia, e nos coloca diante da construção de uma hegemonia ideológica e prática de um modelo de urbanização sem planejamento territorial, no qual a habitação se transforma em ativo financeiro. Nesse contexto, a propriedade individual clássica, escriturada e devidamente registrada em cartório, desponta como um dos meios mais poderosos de exclusão social e territorial. Os territórios acabam se reduzindo a espaços estritos de valor econômico e de perspectivas de rendimentos futuros, motivo pelo qual a perpetuação da propriedade se torna uma condição de sobrevivência no mundo dos contratos e das finanças.

Diante do crescimento da propriedade e da habitação como fronteiras de expansão do capital financeiro, o planejamento territorial urbano se mostra imprescindível à constituição de cidades que se pretendem inseridas em um Estado Democrático de Direito, como ocorre no Brasil. Ao contrário disso, o fortalecimento do complexo imobiliário-financeiro  tem como principal impacto a despossessão massiva de territórios, o empobrecimento substancial da população — desde a criação da categoria de pobres urbanos “sem lugar” até os processos de subjetivação estruturados a partir da lógica capital do endividamento — e a segregação social cada vez mais profunda das cidades. No cenário brasileiro, verifica-se um padrão colonial de cidade a partir do que Raquel Rolnik denomina de colonização dos lugares.

Diante desse cenário, as possibilidades de concretização da regularização fundiária no Brasil têm se verificado no direito urbanístico, tanto pela via judicial, quanto pela via administrativa. Consequentemente, emergem como principais entraves à via pública de regularização fundiária a fragilidade da esfera local, na gestão de processos complexos e conflitivos, pela descontinuidade administrativa, através de pactos locais eleitorais que dificultam o manejo do aparato legal protetivo de direitos coletivos contra segmentos sociais empoderados e patrimonializados, além do desaparelhamento teórico, político e material de órgãos como a Defensoria Pública, órgãos urbanísticos locais e dos movimentos sociais.

A consolidada posição do direito de propriedade, sobretudo a partir da sedimentação ideológica que lhe deu o liberalismo jurídicomonista dos séculos XIX e XX, contribui para o incremento do seu caráter excludente, de maneira que passa a ser um direito alheio à pluralidade e às superposições de domínios ou, em outras palavras, o direito de propriedade é tangente, mas não convergente ao direito de moradia e à regularização fundiária  registral.

A periferização em larga escala

De outro lado, a exclusão urbanística no Brasil, determinada pelo crescimento das cidades através da exclusão social e da segregação espacial, fez com que se formasse um contexto de urbanização da pobreza, na informalidade do acesso ao uso e à produção do solo e da moradia nas cidades. Com isso, instaurou-se também um contingente vasto de  assentamentos irregulares nas cidades, formando-se, assim, uma zona de ilegalidade habitacional em paralelo à legalidade urbanística.

Ao definir formas proibidas e permitidas de produção do espaço, a legislação define espaços dentro e fora da lei, o que gera uma série de discriminações e exclusões. Além do descaso do Estado em relação aos territórios ilegais ou irregulares, bem como aos seus respectivos ocupantes, a legislação urbanística tem forte atuação no estabelecimento de um  mercado imobiliário que privilegie a rentabilidade do capital.

Ademais, a ilegalidade urbana tem, historicamente, o poder de formar espaços elitizados/centrais e espaços marginalizados/periféricos, uma vez que o modelo de legalidade foi tradicionalmente acessível às elites endinheiradas, sobrando o restante ilegal à maioria pobre. A periferização em larga escala é um dos mais expressivos exemplos do poder da legislação utilizada em favor do poder público para acabar com os focos de moradias pobres.

Essa situação legal/ilegal que permeia os contornos da cidade e da questão urbana repercute na convergência objetiva de uma nova configuração urbana, chamada de cidade-mercadoria ou cidade-empresa-cultura, na qual a cidade tem uma gestão urbana empresarial, respaldada pelo direito de propriedade do solo, o que produz um crescimento exponencial da ilegalidade, especialmente quanto à moradia.

Considerando que a ocupação ilegal do solo ou da terra urbana constitui o modelo de desenvolvimento urbanístico no Brasil, a aplicação da lei pode ser vista como um instrumento de poder arbitrário; não obstante os instrumentos normativos que visam a efetivação do direito à cidade, as cidades seguem crescendo de modo predatório, reproduzindo características próprias da colonialidade do poder e que denotam uma realidade na qual se pode denominar a cidade contemporânea do capital como a cidade colonial.

IHU On-Line – Por que, ainda hoje, é tão difícil assegurar o direito à moradia digna?

Karina Fernandes – Em pesquisa organizada pela Organização das Nações Unidas – ONU em 2005, estimou-se que mais de 100 milhões de pessoas no mundo vivem em situação de rua e, das quase sete bilhões de pessoas no mundo, 1,6 bilhão não têm moradia adequada. No Brasil, embora sejam escassas as pesquisas quantitativas a respeito da situação de moradia, em 2008 foi realizada uma pesquisa em 71 cidades pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, cuja conclusão apontava para 30 mil o número de pessoas vivendo sem moradia. Em 2013, pesquisas demonstravam que o número de pessoas em situação de rua passava dos cinco mil no Rio de Janeiro e dos 15 mil em São Paulo. É importante observar que após três anos, em 2016, a cidade do Rio de Janeiro viu este número triplicar: 14,2 mil pessoas não têm moradia naquela cidade.

direito à moradia representa, portanto, um grande desafio aos governos em todas as esferas: municipal, estadual e federal. É necessário que se estabeleçam políticas públicas eficazes no sentido de garantir o que está na  Constituição e no Estatuto da Cidade — e realizar o direito que todos têm a um nível adequado de vida, no que se inclui a moradia digna. Entretanto, o que acontece é que o salário não cobre o custo de vida nas grandes cidades, cujos lugares centrais e mais bem equipados com infraestrutura adequada estão destinados às pessoas mais endinheiradas. Resta, então, ao povo trabalhador mais pobre morar e fazer sua vida nas periferias, autoconstruindo sua moradia, muitas vezes de forma precária (rústica ou improvisada) e sem condições adequadas de salubridade.

IHU On-Line – Qual deve ser o papel do Estado na regulação do acesso à terra e à propriedade, a fim de, a partir dessa regulação, assegurar o direito à moradia? E como, na prática, esse papel vem sendo desempenhado?

Karina Fernandes – O Estado tem o dever de assegurar o cumprimento da  Constituição e do Estatuto da Cidade, que estabelecem a política da  ordem jurídico-urbanística e estão assentados na gestão democrática da cidade e na sua função social, o que nos leva à função social da propriedade urbana. O Estatuto da Cidade, nesse sentido, consagra especialmente a limitação do direito privado de propriedade ao definir o potencial construtivo dos terrenos, assim como sujeita áreas vazias ou subutilizadas localizadas em áreas de infraestrutura (áreas que contêm, principalmente, pavimentação, saneamento, iluminação, transporte) ao pagamento de IPTU progressivo no tempo e a edificação e parcelamento compulsórios, conforme a destinação específica determinada pelo Plano Diretor de cada cidade. Surgem como meio de interação entre a regulação urbana e a lógica de formação de preços no mercado imobiliário e potencializam o enfrentamento da expansão horizontal ilimitada e do triunfo do mercado imobiliário gerador de capital especulativo. Na prática, contudo, o que se verifica é que as cidades seguem a lógica do mercado financeiro e a moradia, consequentemente, passa a ser relegada a um direito de segunda ordem. Há diversas ocupações urbanas Brasil afora que, não obstante o preconceito que lhes é dirigido generalizadamente, atendem às necessidades de moradia para além da lógica da casa própria individual de maneira nunca contemplada por qualquer política pública.

Um programa de moradia eficaz deveria contar, no mínimo, com um estoque de moradia capaz de funcionar como casa de acolhimento, com estrutura plausível de oferecer um padrão de vida digno a quem sofre a perda deste direito por diversos motivos, como, por exemplo, os altos preços do aluguel, a violência doméstica, a violência urbana de territórios tomados pelo tráfico de drogas ou por milícias. As vítimas desse caos necessitam de um suporte do Estado para seguirem suas vidas. No Brasil, atualmente não existe um programa de atendimento nesses parâmetros e, pior, há um histórico de produção massiva de moradias populares, concedidas mediante subsídio, que além de não resolverem o problema da moradia em si, não foram acompanhadas por igual produção de cidade, o que faz com que especialistas no assunto, como Raquel Rolnik, afirmem que o nosso déficit maior é de cidade, não de moradia.

IHU On-Line – Como a ideia de colonialidade do poder pode contribuir para compreendermos a exclusão que ocorre nas grandes cidades, relegando pessoas a moradias não dignas?

Karina Fernandes – O conceito de colonialidade do poder, definido pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano, designa um processo fundamental de estruturação do sistema-mundo moderno e colonial, no qual se têm os lugares centrais e periféricos segundo a divisão internacional do trabalho em articulação com a hierarquia étnico-racial global e os crescentes movimentos migratórios de cidadãos de países terceiro-mundistas para as grandes cidades globais, interferindo também na hierarquia étnico-racial desses lugares. De maneira que a colonialidade é o lado oculto da modernidade e seu percurso emancipatório, marcado por eventos intraeuropeus, tudo o que está para além do centro da ideia de  Europa  (países do Norte Global ou desenvolvidos) é considerado periférico, e essa lógica é concretizada pelas exigências de desenvolvimento impostas pelo  Banco Mundial [2] e pelo Fundo Monetário Internacional. Em outras palavras, a colonialidade explica o fato de que países considerados periféricos, situados no Sul Global, ainda que não respondam a uma administração colonial, estejam sempre sujeitos aos ditames de países centrais, do Norte Global, e aos organismos internacionais correspondentes.

crescimento econômico como condição do desenvolvimento deve ser compreendido como base para uma série de incompatibilidades na perspectiva dos direitos humanos, o que faz com que o modelo de desenvolvimento pautado pelo crescimento e pelo acúmulo de capital seja eminentemente excludente e negativamente impactante na sociedade e na cultura de países considerados subdesenvolvidos ou periféricos, como o caso do Brasil e dos países da América Latina, que sobrevivem às custas de uma economia de dependência. Na realidade política atual, em que anos de  governos de esquerda, após assumirem o legado deixado por diversos  governos neoliberais, foram novamente substituídos por governos neoliberais, a política e a cultura de desenvolvimento pelo crescimento agravam a tensão entre os setores que se beneficiam do crescimento e setores que devem pagar o custo dessas políticas. O lado mais fraco de tais polos, quem mais necessita do Estado, acaba sendo considerado um “obstáculo” ao crescimento do país e, com isso, tanto a estigmatização dessas pessoas quanto a negação dos seus direitos passam a servir de justificativa para o “bem-estar social”.

Essa tensão entre os poucos que são beneficiados e os muitos que são prejudicados é corolário de déficits democráticos, circunstanciados pelo distanciamento que existe entre as pessoas atingidas pelo desenvolvimentismo e os centros políticos e econômicos, o que constitui um fato de silenciamento das lutas por um desenvolvimento includente e menos violento. A desigualdade na distribuição da riqueza é a mais profunda da história da humanidade, sendo notória a concentração crescente do dinheiro global nas mãos das grandes corporações do capital.

Deslocamentos compulsórios

A situação dos deslocamentos compulsórios no Brasil é um exemplo disso. Ocorrem, no campo e na cidade, à margem de qualquer participação e informação das populações atingidas, que muitas vezes não têm sequer a possibilidade de decidir sobre os rumos das suas próprias vidas, diante da falta de informação sobre os processos de remoções e desalojamentos forçados — e quando determinados setores atingidos são informados, não raro passam a ser cooptados para atender aos interesses do poder público. Os locais de reassentamento não lhes oferecem as mesmas condições de vida que existiam antes dos deslocamentos e as reparações pecuniárias chegam a ser esdrúxulas, considerando-se o valor indenizado, a forma e o objeto da indenização. Considerando que o desenvolvimento includente requer a garantia do exercício dos direitos civis, cívicos e políticos por meio de uma gestão democrática, é possível concluir que existe uma grande distância entre o desenvolvimento social, includente e propagador de direitos e o desenvolvimento colocado em prática, alheio a uma democracia participativa, direta, capaz de criar melhores condições para o debate dos assuntos de interesse público.

IHU On-Line – A lógica global que força as pessoas a migrarem por questões econômicas é a mesma que força os deslocamentos no espaço urbano? Como isso ocorre? Quais as semelhanças e distinções nesses dois cenários?

Karina Fernandes – Diferentemente do conceito tradicional de migrante, que, segundo a ONU, é “a pessoa que se deslocou a uma distância mínima especificada pelo menos uma vez durante o intervalo de migração considerado” e que parece relegar a migração a um mero ato de vontade, o deslocado compulsório é aquele que não escolheu a migração, mas foi atingido por fatores externos que o levaram a isso, como guerras, conjunturas sociopolíticas e econômicas e fatores estruturais na cidade e no campo. Quando o deslocamento ocorre dentro das fronteiras do mesmo país, a situação migratória pode ainda se agravar, se consideradas as ausências ou deficiências de políticas públicas destinadas a salvaguardar os interesses dessa categoria de migrantes não estrangeiros.

Os deslocamentos no espaço urbano estão diretamente relacionados à ausência de interesse por parte dos Estados em atender aos problemas de quem é obrigado a se deslocar em decorrência da infraestrutura urbana. São milhares de pessoas atingidas por remoções forçadas, ou seja, que são obrigadas a deixar suas casas em prol de obras de desenvolvimento urbano, mesmo que tais obras firam diretamente a dignidade dessas pessoas. Esse modelo gera uma série de problemas de ordem infraestrutural no espaço urbano, formando esse grupo de pessoas involuntariamente deslocadas dos seus lugares de identificação e pertencimento, o que se verifica de forma bastante evidente na gestão das grandes cidades, especialmente no que tange à questão habitacional e de regularização fundiária, onde se pode vislumbrar claramente a segregação socioeconômica.

Dessa forma, vários aspectos devem ser considerados tendo em vista as causas e consequências do deslocamento forçado, bem como as violações de direitos dos atingidos pelo deslocamento. A ausência de uma política de regularização fundiária possibilita a grilagem de terras e a gentrificação. Além disso, o uso e o aproveitamento da terra e do espaço urbano para fomento do capitalismo, com a realização de empreendimentos de médio e grande porte, supõem uma situação de anormalidade para o exercício do  direito à terraà moradia e à cidade dos atingidos.

Essas concentrações e dispersões populacionais, compulsórias ou não, foram marcadas por mudanças comportamentais diretamente relacionadas à acumulação de capital, bens e serviços, bem como ao consumo, inserindo-se diretamente na lógica urbanística de desenvolvimento capitalista. Isso repercutiu diretamente nas relações de dependência da economia internacional, na reestruturação produtiva, na precarização do mercado de trabalho, além das alterações relativas ao lugar das atividades no espaço do território.

Fluxos migratórios

Os fluxos migratórios estão diretamente relacionados, pois, com a presença do Estado na regulação da economia e na definição de políticas de desenvolvimento, quase sempre posicionadas estrategicamente a favor do  capital, ainda que isso importe na precarização do trabalho e na  flexibilização das legislações administrativas e tributárias. A possibilidade de crescimento econômico, motivação principal dos movimentos migratórios voluntários, parece que tem sido motivo de segregação de muitas pessoas, que, não raro, encontram-se na contramão das realizações dos projetos de desenvolvimento adotados por determinados Estados.

Como vimos, há muitas semelhanças em ambos os cenários, mas as distinções são fulcrais: enquanto a migração voluntária não pressupõe necessariamente a desterritorialização das pessoas migrantes (a impossibilidade de se construir e exercer efetivo controle sobre seus territórios e sobre suas vidas), o deslocamento compulsório é em si mesmo uma espécie de desterritorialização, marcada por processos de profunda exclusão socioeconômica — contexto esse que influi diretamente no tipo de relação das pessoas com o espaço em que se inserem. O fato de que estes grupos sofrem com a precarização das suas condições básicas de vida, do acesso aos recursos básicos da cidade, assim como com a negação de sua expressão simbólico-cultural, significa que sofrem com a desterritorialização. Isso não necessariamente condiz com a mobilidade, mas, antes disso, com a opressão que esses grupos enfrentam.

IHU On-Line – De que forma podemos relacionar as ocupações, especialmente de áreas urbanas, com o longo processo de violação dos Direitos Humanos à moradia e à cidade?

Karina Fernandes – A ausência de infraestrutura básica (saneamento, atendimento à saúde, segurança e educação) em diversos espaços da cidade, a ausência de controle sobre os preços do aluguel, a especulação imobiliária e a exposição de diversas regiões a riscos ambientais, como de deslizamentos e enchentes, é diretamente associada ao déficit de moradia  e de cidade que ora mencionei, e compõe um contexto de vulnerabilidade generalizado que exige a firmação de um programa público que atenda as pessoas atingidas nesse contexto. As ocupações de áreas urbanas surgem para preencher esta ausência do Estado e costumam ocorrer em prédios vazios e subutilizados, bem localizados nas cidades, que já foram moradia ou espaços comerciais. Esses locais, que não estão habilitados para produzir moradia, acabam constituindo vazios urbanos e servindo ao capital especulativo, à margem do Estado.

Da mesma forma, há muitos territórios populares nas cidades, que foram autoconstruídos e que têm condições de serem habilitados para moradia, mas em que o Estado não chega para cumprir seu dever. Nesses lugares, as ocupações assumem o papel do Estado e realizam política urbanística para as pessoas que vivem ali, garantindo moradia, acesso à cidade, à saúde, à educação, ao saneamento básico, à cidadania e à cultura conforme assegurado pela Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988 e por tratados dos quais o Estado brasileiro é signatário, como o  Pacto de San Salvador.

Como exemplo de benefícios trazidos por uma ocupação está o acesso ao centro da cidade, que representa, invariavelmente, significativas melhorias na condição de vida das pessoas ocupantes, que passam a ter condições de acesso à rede municipal de serviços de educação e saúde, bem como aos transportes públicos. Outro benefício significativo está em propiciar a formação de uma rede de solidariedade e participação social na cidade, conforme a autogestão dos moradores e sua organização para que a ocupação seja considerada um espaço de debate e de uso coletivo da cidade. Em uma ocupação, é comum ocorrer um empoderamento das pessoas que antes viviam em situação de abandono e exclusão e que passam não só a ter consciência de seus direitos e habilidades, como a defendê-los.

IHU On-Line – Qual o papel do Estado e da sociedade no caso das ocupações urbanas? Como conceber alternativas que vão além da remoção das famílias?

Karina Fernandes – O Estado tem o dever de aliviar as tensões inerentes às ocupações urbanas e auxiliar na composição de todos os interesses envolvidos. Com o advento da Lei nº. 13.465/17 (Lei da Regularização Fundiária, também conhecida como Reurb), cabe ao Estado identificar núcleos urbanos informais, criar unidades imobiliárias compatíveis com o planejamento urbano, priorizar a permanência dos ocupantes no local, prevenir a formação de novos núcleos urbanos informais, conceder direitos reais, e possibilitar a participação dos interessados nas etapas da regularização fundiária. Com a Reurb, a remoção das famílias passa a ser o último caso a ser considerado em um processo que prioriza a regularização fundiária.

Reurb

Esta lei opera sob duas modalidades: Reurb-S, de interesse social, aplicável aos núcleos ocupados predominantemente por população de baixa renda e assim declarados em ato do Poder Executivo municipal, e Reurb-E, aplicável aos núcleos urbanos ocupados por população com outra qualificação, como é o caso de ocupações de propriedades privadas. Tanto os beneficiários quanto o Estado (Ministério Público, Defensoria Pública, Administração Pública direta e indireta) e até mesmo os proprietários privados podem requerer a Reurb e há uma série de instrumentos jurídicos que podem ser utilizados na sua aplicação. A legitimação fundiária, a compra e venda, a doação, a usucapião, a desapropriação por interesse social ou em favor dos possuidores, o direito de preempção, a concessão de uso especial para fins de moradia, a concessão de direito real de uso, são exemplos de instrumentos jurídicos que podem ser destinados à consolidação da regularização fundiária nos termos da Lei, o que explica que o papel do Estado exige uma postura ativa que regularize as ocupações urbanas da melhor forma possível aos moradores. À sociedade, além do conhecimento dos instrumentos jurídicos e políticos que estão ao dispor da salvaguarda do direito à moradia a todos e todas, cabe ampliar os espaços de reflexão e debate acerca da importância dos direitos à cidade e à moradia, além de promover o respeito e a proteção desses direitos, como fazem diversas organizações nacionais e internacionais

IHU On-Line – A senhora pesquisou o impacto de megaeventos, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, na violação dos Direitos Humanos à moradia e à cidade. Nesse sentido, o que essas duas experiências relegaram para as cidades brasileiras?

Karina Fernandes – Não se pode dizer que estas experiências deixaram um significativo legado urbanístico. Além de alguns projetos viários e de infraestrutura relacionados com os deslocamentos necessários para esses eventos, o que a Copa e as Olimpíadas deixam nas cidades é o ônus das  remoções forçadas de comunidades e assentamentos que se encontravam há décadas nos locais marcados para o desenvolvimento de obras de infraestrutura. Esse impacto foi mais sentido no Rio de Janeiro, sede de ambos os megaeventos esportivos, mas outras cidades, como Porto Alegre, também foram afetadas. A expulsão de setores de menor renda das áreas mais urbanizadas e o crescimento de periferias desqualificadas, sem urbanidade e condições de vida razoáveis para a população, levou ao aumento da quantidade de pessoas morando na rua e sem teto. Não há outros legados do ponto de vista urbanístico que possam ser mencionados. Ações esperadas, como a despoluição da Baía de Guanabara e a melhoria das condições de saneamento gerais da cidade, não foram realizadas. Por outro lado, para a implantação desses projetos de infraestrutura foi necessário remover comunidades e assentamentos que se encontravam naqueles locais há décadas sem que uma alternativa adequada de moradia tenha sido oferecida. Para as pessoas diretamente atingidas, ao invés de um legado, a Copa deixa um ônus.

Entretanto, é importante considerar que a mobilização e organização da sociedade civil em resistir e defender as conquistas jurídicas e políticas relativizadas pelo Estado em nome do capital (como as remoções forçadas, a privatização de espaços públicos, a repressão generalizada) representa um dos poucos impactos positivos dos processos de realização dos megaeventos no Brasil. Se o poder público desrespeita os direitos historicamente conquistados pela população, essa tem o direito e o dever de defendê-las, resistindo e enfrentado as violações perpetradas.

IHU On-Line – Em que medida o mercado, a especulação imobiliária, contribui para exclusão e déficit habitacional? Como enfrentar esse problema?

Karina Fernandes – É necessário dizer que o capital financeiro é determinante na formação do déficit habitacional. Conforme demonstram pesquisas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea e da  Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – Fiesp, atualmente, o  Brasil enfrenta um déficit habitacional de mais de 6,2 milhões de moradias, indicador evidenciado quando ocorre pelo menos uma de quatro situações: domicílios precários (rústicos ou improvisados); situação de coabitação (famílias conviventes com intenção de se mudar ou residentes em cômodos); domicílios cujo valor do aluguel é superior a 30% da renda domiciliar total (excedente de aluguel); e domicílios alugados com mais de três habitantes utilizando o mesmo cômodo (adensamento excessivo). Das regiões do Brasil, o déficit habitacional mais crítico se encontra na região Sudeste (2.562.117 domicílios), seguindo-se Nordeste (1.867.563 domicílios), Sul (658.360 domicílios), Norte (631.586 domicílios) e Centro-Oeste (478.668 domicílios).

Déficit habitacional

O déficit habitacional é um indicador que contribui para a formulação e avaliação da política habitacional, orientando especialmente os governos das cidades na especificação das necessidades das moradias. O objetivo do indicador é orientar os agentes públicos responsáveis pela política habitacional na construção de programas capazes de suprir a demanda explicitada na estimação do indicador nas esferas municipal, estadual e federal.

Para afirmar que o déficit habitacional tem ligação direta com a  financeirização do capital é importante localizar o leitor na chamada  mercantilização da moradia, que é a transmutação do valor social da moradia em ativo financeiro, fenômeno fortemente presente em economias capitalistas. A mercantilização da moradia ocorre pela criação de um mercado secundário de hipotecas — composto por instituições públicas ou semipúblicas de habitação — e conectou sistemas regionais e globais de circulação de capital, alavancando o crédito e níveis jamais pensados antes. Esta conexão dos sistemas financeiros de habitação às finanças tem na ação do Estado não apenas o papel de regulação, mas também de construção da hegemonia política da casa como mercadoria e ativo financeiro. Isso sem perder de vista o impacto enorme das mudanças nas políticas habitacionais e na regulação urbanística na construção das cidades e da paisagem urbana.

O investimento na especulação de ativos financeiros se mostrou como uma possibilidade mais factível de materialização dos lucros: entre investimento na produção de baixo lucro e em tomada de empréstimos a taxas baixas ou inexistentes de juros em um país com a possibilidade de investimento do capital emprestado a altos índices de cobertura em outro, a segunda opção parecia bem mais interessante. A expansão dos excedentes de capital ao nível global permitiu a ampliação do crédito a níveis extremos, criando e inflando as chamadas bolhas predecessoras das crises e da ressurreição do capital. Em uma lógica de endividamento e investimento que pressupõe a especulação de ativos e tem como consequência a explosão da dívida, o surgimento dos mais sofisticados mercados de derivativos e a formação de bolhas e crises como meios de absorção de grande quantidade de capital excedente, desenvolve-se a prática de financeirização da tendência da crise, expressão utilizada por  David Harvey para expor a ausência de limites na circulação do capital financeiro.

IHU On-Line – Como analisa as lutas sociais pela busca do direito à moradia? De que forma a resistência pode tensionar transformações?

Karina Fernandes – A moradia é uma plataforma de luta política que reúne diversas pautas sociais, mas que necessariamente reivindica cidade. É possível afirmar que a luta pela moradia é uma luta territorial, de disputa dos espaços representados e apropriados pela articulação da política e da economia na vida das pessoas. O território, nessa perspectiva, é a luta essencial, é o desafio à dimensão econômico-social que envolve a propriedade, administração e estratégias defensivas do direito à moradia. Quando um movimento social se forma ou se articula em torno da defesa desse direito, da organização de pessoas atingidas pela violação desse direito, da conscientização coletiva sobre sua importância e seu impacto social, toda a sociedade se movimenta com ele — parafraseando a famosa fala de Angela Davis: “quando uma mulher negra se movimenta, toda a sociedade se movimenta com ela”.

Nesse sentido, o território é um espaço que possibilita o desenvolvimento de relações e práticas sociais que proporcionem poder: individual, correlacional, multidimensional, material e imaterial, da mesma forma que é uma noção localizada no contexto histórico e geográfico, uma vez que pode ser local, global, pode ser articulador de conexões em redes — de maneira que sempre corresponderá à relação de controle entre espaço e poder. O mosaico de características componentes do território o constitui enquanto significante de identidade nos processos ativos de identificação e representação identitária, em uma espécie de militância.

Tal perspectiva implica reconhecer que a luta pela cidade e pela moradia, em suas dimensões jurídica e espacial, é composta por discursos e materialidades mutuamente relacionados. Em outras palavras, os significados políticos atribuídos aos corpos e discursos, além de inerentes entre si mesmos, são diversos, de modo que a rua se mostra como a metáfora do espaço em que se localizam os sujeitos de direito. Analisar, explicitar e debater o território requer, diante de seus diversos significados, um olhar amplo que considere a corporalidade e o discurso intrínsecos às noções de política, geografia, direito e sociologia relacionadas a tais lutas. Ter a consciência de que as lutas pela cidade e pela moradia, em essência, reivindicam território, implica em considerá-las de modo mais amplo e significativo, porque representam um desafio à lógica homogênea global.

IHU On-Line – Quais os maiores desafios para o problema da falta de moradia no Brasil de hoje?

Karina Fernandes – O problema da falta de moradia resulta na análise da combinação entre a forma jurídica e a forma econômica. A partir disso, temos o encontro do direito com a realidade concreta, o que demonstra que o direito, sob o discurso da lei e da ordem como expressões da vontade geral ou do “interesse público”, é utilizado como um instrumento de estratégia de classe na produção do espaço urbano. Em outras palavras, a  legislação urbanística é utilizada como um instrumento privilegiado para racionalizar o uso do espaço em benefício das classes dominantes. Isso, conforme os ensinamentos de Roberto Lyra Filho, cria uma zona de antidireito, de oposição e violação ao direito em si.

Ordem urbana, desordem material

A suposta ordem urbana, assim, é camuflagem para a desordem material e concreta, permitida e incentivada pelo Estado, que dirige seus recursos, suas atenções, seus instrumentos jurídicos ao desenvolvimento do capital e à produção de espaços destinados às classes médias e altas na cidade. Enquanto isso, vazios políticos se reproduzem nos espaços segregados por essa ordem de prioridades e sustentam o discurso ideológico utilizado pelo próprio Estado no planejamento urbano: insegurança, caos e atraso. A  cidade tomada pelo capital é produzida e destinada a poucos.

Diante disso, é possível considerar que os principais desafios para o problema da falta de moradia no Brasil de hoje estão, ainda hoje, no cumprimento da Constituição e da lei quanto à política urbana, bem como na realização de um programa nacional de habitação que atenda às necessidades emergenciais das populações vulneráveis em relação à moradia. Isso significa dizer que é fundamental um esforço muito maior do Estado e da sociedade civil em realizar a regularização fundiária de assentamentos irregulares e de ocupações de prédios urbanos, utilizando-se dos instrumentos de direito urbanístico oferecidos pelo Estatuto da Cidade e, mais recentemente, pela lei da regularização fundiária. No âmbito cultural, um dos grandes desafios que fica é o da ampliação do debate sobre o problema da falta de moradia e o modo como as pessoas que têm este direito violado são atingidas e se posicionam na sociedade, a fim de acabar com o estigma que geralmente acompanha o tema em diversos aspectos.

IHU On-Line – O que as disputas em torno da recuperação do Cais Mauá, em Porto Alegre, podem nos revelar acerca do direito à cidade? E como, nesse caso em específico, compreender as lógicas das colonialidade em territórios urbanos?

Karina Fernandes – O projeto de revitalização do Cais Mauá se trata de uma realidade específica de intervenção urbana que não leva em conta os elementos sociais, econômicos e políticos da cidade como um todo. Sob o discurso da modernização, o Poder Público apresenta as necessidades prioritárias na gestão do espaço urbano e justifica, assim, o modo pelo qual busca atender a essas prioridades: o caso do Cais Mauá demonstra a formação de um vazio urbano como algo inútil a ser capitalizado por meio de uma parceria com a iniciativa privada que, como “salvadora da pátria”, realizaria todos os investimentos que a prefeitura não teria condições de realizar.

Nessa perspectiva, as leis urbanísticas são manipuladas de modo a conferir um cenário de legalidade sobre verdadeiros abusos políticos que os gestores públicos realizam nas cidades. Um exemplo disso está na questão das contrapartidas do caso do Cais Mauá, que não foram apresentadas na manifestação de interesse, na licitação ou no projeto vencedor como pagamentos ou retornos efetivos ao erário municipal, mas como elementos pro forma, garantias financeiras de que o empreendimento que altera os índices construtivos da região sairá do papel e de que os impactos regionais de trânsito serão diminuídos; entretanto, nove anos passaram entre a realização do certame e o seu cancelamento sem que nenhuma obra tivesse sido concluída, além de a ideia apresentada no projeto para desafogar o trânsito [ou reduzir o seu impacto] ser aparentemente mais prejudicial do que benéfica à coletividade — a obra do túnel da rua Anita Garibaldi, contrapartida à expansão do Shopping Iguatemi, é uma demonstração disso.

Quando afirmo que as contrapartidas deveriam ser tomadas como pagamentos ou retornos efetivos ao erário público municipal, não me refiro ao dinheiro em espécie que deixa de entrar nos cofres públicos, mas à ausência de um equilíbrio econômico na medida em que o empreendedor se beneficia gratuitamente com a alteração do regime urbanístico do local onde realizará seu empreendimento, beneficia-se dos recursos que o investimento atrairá e se beneficia da permissividade do uso do espaço público já investido pela gestão municipal.

Cais Mauá e a reivindicação pela cidade

O caso da intervenção sobre o Cais Mauá revela um exemplo perfeito de  reivindicação pela cidade. Não obstante as tentativas de triunfo do mercado e dos interesses privados, a disputa pela diversidade de usos da cidade, pelo acesso universal dos cidadãos e cidadãs aos espaços da cidade emergiu das lutas dos movimentos sociais articulados nesse sentido. A inclusão do Cais Mauá na pauta dos movimentos de reivindicação dos usos da cidade é um ato especificamente territorial. Foram décadas de lutas e de resistência ao projeto oficial de intervenção, denominado de revitalização (cujo intento é modificar a atividade anteriormente no lugar a ser modificado), das quais se resultou em duas situações distintas e paradoxais: a) o projeto oficial, inacessível ao debate público e impregnado de irregularidades administrativas sob a perspectiva urbanística, nunca foi concretizado; b) o certame licitatório que conferia uma aparência de legalidade ao projeto foi, finalmente, cancelado pelo recém eleito governador do estado, Eduardo Leite, criando, assim, uma lacuna a ser preenchida pelos setores mais diversos da sociedade, diferentemente do que ocorrera no processo anterior de licitação.

A persistência da luta do Cais Mauá de Todos demonstra que o território é capaz de imunizar espaços necessários à concretização de reivindicações que não podem ser privatizadas, mas que devem ser incorporadas às lutas urbanas por uma cidade mais democrática e inclusiva. A contestação e a resistência operadas pelos movimentos defensores do Cais Mauá podem ser vistas como um desdobramento em enfrentamentos à lógica colonial da produção da cidade em torno do poder do capital. Historicamente, outras conjunturas demonstram a eficácia da luta territorial em Porto Alegre: a existência de quilombos urbanos na cidade, a existência de movimentos comunitários de resistência e defesa de seus territórios na cidade (como é o caso da comunidade remanescente da Ilhota) e a existência de uma memória coletiva ligada aos tempos democráticos da Frente Popular, do  Orçamento Participativo e do Fórum Social Mundial.

Enquanto o discurso hegemônico de progresso e uma cidade para todos, de endividamento público como justificativa para contratações privadas dissociadas da lei e da sociedade, os movimentos e coletivos desafiam esta ordem do discurso apresentando propostas alternativas e reivindicando sua participação nos processos de modificação da cidade. Nesse espaço de disputas, os movimentos que defendem a cidade e o direito ao seu uso democrático, plural, includente e equilibrado agem em uma lógica de pluralidade na ocupação do espaço, de pertencimento coletivo e de valorização da memória coletiva que, por si, representam grandes  conquistas anti-hegemônicas e anticapitalistas.

IHU On-Line – Como compreender os avanços e os retrocessos nesse processo de recuperação do Cais Mauá? Quais as questões de fundo? O que está em jogo?

Karina Fernandes – O processo de intervenção sobre o Cais Mauá está inserido em um contexto de anos de afastamento do interesse público com a memória e o patrimônio histórico da cidade, sobretudo pela falta de investimentos que incentivem o melhor uso da cidade. Esse afastamento levou a uma alienação da população em relação ao cais do porto, um de seus cartões postais e que conecta a cidade ao seu bem natural mais caro: o  rio Guaíba.

O afastamento da população do patrimônio público e da memória histórica, somado ao descaso do poder público, cria um cenário de urgência que serve aos interesses privados, propiciando tomadas de decisões obscuras, não raro negligenciadas da esfera pública e, por isso, levadas a efeito de maneira arbitrária. Nessa perspectiva, a participação popular é relegada a segundo plano, relativizando-se, assim, a legitimidade de qualquer projeto em que se pretenda modificar formas de uso da cidade.

Em 2010, o governo estadual, na gestão de Yeda Crusius, abriu licitação para uma parceria público-privada para remodelar o Cais Mauá, sem que houvesse ocorrido qualquer tipo de consulta à população. O certame exigia uma garantia financeira de 400 milhões de reais às empresas interessadas e possibilitava uma série de intervenções ambientais de alto impacto na  paisagem urbana de Porto Alegre, de maneira que o consórcio vencedor da licitação (autodenominado Cais Mauá do Brasil S.A.) passava a ter o poder de decidir, de acordo com seus interesses, quais seriam as diretrizes de uso do espaço. Ao longo dos anos, as garantias financeiras não foram regularmente demonstradas, os licenciamentos ambientais ocorreram apenas oito anos depois da licitação e o projeto detalhado nunca foi apresentado.

Entretanto, um esboço do projeto que seria o vencedor da licitação apresentava a ocupação do espaço com um shopping center, 4.000 vagas de estacionamento, torres de mais de 100 metros de altura (alterando o regime urbanístico previsto pelo Plano Diretor para altura máxima de construções na região, de 55 metros), a derrubada do Armazém A7, único não protegido pelos órgãos públicos de defesa e proteção do patrimônio público, além da construção de um túnel viário que deveria desafogar o trânsito na região, mas que foi proposto desacompanhado de qualquer estudo sério sobre o impacto desse tipo de construção no anel viário de uma região altamente movimentada como a área que engloba o espaço central da Rodoviária, do Mercado Público e do Gasômetro de Porto Alegre.

Operação Gatekeepers

Ao longo do processo, diversas irregularidades foram descobertas pela  Polícia Federal em operações financeiras ligadas ao processo de  remodelação do Cais Mauá: em abril de 2018, a empresa Cais Mauá do Brasil esteve envolvida com uma investigação realizada pela Polícia Federal sobre fraudes em fundos de investimento. Denominada Operação Gatekeepers, a investigação teve por objeto a averiguação de um esquema de um fundo de investimentos com representações em Porto Alegre e no  Rio de Janeiro, segundo o qual teriam aplicados valores em obras públicas sem que estas fossem efetivamente executadas, o que teria ocasionado o desvio dos investimentos em benefício dos próprios administradores do fundo (FLECK, 2018a; GOMES; FLECK, 2018). Em abril de 2018, o delegado responsável pela operação, Eduardo Bollis, informou em coletiva de imprensa que administradores do fundo investigado tinham ligação com o consórcio Cais Mauá do Brasil S.A. e que a operação não investigava as [inexistentes] obras do Cais Mauá, sem que isso, no entanto, fosse descartado, diante da multiplicidade de pessoas físicas e jurídicas envolvidas e dos elevados valores correspondentes (FLECK, 2018a).

Em nota oficial, divulgada em 19 de abril de 2018, a Cais Mauá do Brasil  informou que os fatos investigados pela Operação Gatekeepers são anteriores ao período em que a REAG Investimentos assumiu a administração e gestão da empresa Cais Mauá e do Fundo de Investimento em Participações Cais Mauá do Brasil Infraestrutura  [entidade responsável pela captação de recursos para a garantia das obras] e que, por isso, não têm nenhuma relação com a atual gestão do fundo. A mesma reportagem questionou a Cais Mauá do Brasil sobre o montante atualizado de recursos já captados naquela ocasião, assim como acerca da ocorrência de alguma modificação cadastral, ao que o consórcio silenciou. Em que pese o silêncio oficial, o site da Comissão de Valores Imobiliários – CVM apresenta quadro de informações que demonstra que o Fundo de Investimento em Participações Cais Mauá do Brasil Infraestrutura, registrado no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica – CNPJ pelo nº. 17.213.821/0001-09, esteve sob a administração da empresa LAD Capital Gestora de Recursos Ltda., CNPJ nº. 28.376.231/0001-13, e direção executiva de André Luis de Souza Fernandes no período compreendido entre janeiro e setembro de 2018. A empresa REAG Investimentos está inscrita no CNPJ nº. 10.452.416/0001-02, distinto ao da empresa LAD, o que indica haver uma coparticipação na gestão do consórcio que não é aberta à sociedade. O patrimônio líquido do fundo foi declarado nas quantias milionárias de R$ 191.246.449,64, resultado da soma das 18.129,50765264 cotas integralizadas ao valor unitário de R$ 10.548,90476400 [janeiro-março de 2018], R$ 190.462.496,84, correspondente a 18.129,50765264 cotas integralizadas no valor unitário de R$ 10.505,66294955 [abril-junho de 2018], e R$ 189.825.178,29, correspondente a 18.129,50765264 cotas integralizadas no valor unitário de R$ 10.470,50928944 [3].

Todas essas circunstâncias levam a crer que o que estava em jogo eram os interesses financeiros e de circulação do capital especulativo. A realização do processo a despeito da participação popular e sem a precedência de estudos qualificados sobre os impactos da intervenção no Cais Mauá à cidade de Porto Alegre gerou um contexto em que os movimentos populares contestadores do projeto oficial eram mais do que necessários e, neste momento de cancelamento da licitação, têm sua função reavivada na esfera política da cidade.

IHU On-Line – Que relações podemos estabelecer entre os projetos de recuperação do Cais Mauá, em Porto Alegre, e do Cais Estelita, em Recife?

Karina Fernandes – O discurso contestador do Ocupa Cais Mauá se fez mediante a realização de palestras, protestos, escrachos, blocos de carnaval, intervenções artísticas, difusão de vídeos, panfletos, cartazes, abaixo-assinados, assim como atuou em uma frente institucional de impugnações judiciais, requerimentos de informações oficiais e tentativa de diálogo com as forças institucionais. Naquele momento, o Ocupa Cais Mauá estabeleceu um diálogo profícuo com outros movimentos e coletivos de Porto Alegre, o que ganhou força com a articulação estabelecida com o movimento Ocupe Estelita, que se opunha ao Projeto Novo Recife [4], em mobilizações muito próximas às realizadas em Porto Alegre quanto ao chamamento da população para a ocupação do Cais Mauá e, assim, para a reflexão sobre o processo de revitalização que, tal qual em Recife, ocorria a portas fechadas e sem possibilidade de participação popular.

Em 2014, o embrionário movimento Ocupa Cais Mauá se transformou no coletivo Cais Mauá de Todos, especialmente em decorrência do fechamento dos acessos ao Cais pelo consórcio, impedindo novas ações de ocupações. Sem a possibilidade de ocupar a área, o movimento, que prezava, sobretudo, pelo debate pacífico, criou-se o Cais Mauá de Todos, com os fundamentos, insurgências e integrantes anteriores, mas acrescido de novos atores, instituições e estratégias: a frente institucional passava a ser considerada uma nova e mais nítida possibilidade de ação, que se inseria nas três esferas principais: comunicação, política e jurídica.

Inspirado no Ocupe Estelita e na sua abordagem institucional, o Cais Mauá de Todos via no Estado um agente construtor de políticas públicas e, por isso, um agente positivo nas formas de resistência ao empreendimento. O manifesto de criação do movimento, a carta aberta à população, emitida pelo Cais Mauá para Todos por meio da mídia e das redes sociais do coletivo, declarava à população de Porto Alegre o desejo de ver o Cais reintegrado à cidade, apresentando suas contestações ao empreendimento oficial e sinalizando o tom das atividades do grupo na defesa da imediata rescisão de contrato do Consórcio Cais Mauá S.A., assim como da participação popular e ouvida da sociedade civil, a abertura de concurso público de projetos e a realização de nova licitação de concessão.

O movimento seguiu a convocar a população para atos de ocupação de espaços públicos para encontros artísticos de caráter, na linha do que já ocorria quando do Ocupa Cais Mauá, transformando o uso daquele espaço com atividades alternativas de cultura e lazer. As trajetórias dos processos do Cais Mauá e do Cais José Estelita se conectam nos movimentos contestadores de ambos os processos, cuja base urbanística possibilita o aprofundamento da compreensão da dimensão do político diante da crise da democracia brasileira.

Notas:

[1] Na grafia sugerida por Marcelo Lopes de Souza (2016) e que emprega o sentido da materialidade das duas palavras que estão contraídas: o social, como o conjunto de relações sociais que forma a sociedade, e o ambiental, como o meio ambiente a ser preservado em qualquer espaço. (Nota da entrevistada)

[2] No livro “O Enigma do Capital” (2011), David Harvey explica que o Relatório de Desenvolvimento do Banco Mundial de 2009 colocou a produção total de bens e serviços na economia mundial em 56,2 trilhões de dólares, U$ 15,2 trilhões a mais do que em 2003, U$ 40,2 trilhões a mais do que em 1973, U$ 50,9 trilhões a mais do que em 1950 e U$ 53,5 trilhões a mais do que em 1913, e que, ao longo da história do capitalismo, a taxa composta de crescimento real foi cerca de 2,25% ao ano. Entretanto, o consenso atual entre os economistas é que uma taxa “saudável” de crescimento representa 3% de expansão anual. Menos do que isso significa um crescimento econômico lento e abaixo de 1% significa recessão e crise. (Nota da entrevistada)

[3] Informações disponíveis aqui. Acesso em: 6 jan. 2019. (Nota da entrevistada)

[4] Formado por advogados, arquitetos, sociólogos, artistas, professores, engenheiros, estudantes, médicos, administradores, publicitários, jornalistas, designers e antropólogos, entre outros, o movimento Ocupe Estelita foi criado em 2012, na luta contra a destruição do Cais José Estelita, área de aproximadamente 101,7 mil metros quadrados, com pátio ferroviário e uma série de armazéns de açúcar abandonados pelo Poder Público, mas que representa um dos principais cartões postais de Recife. O Consórcio Novo Recife, formado pelas construtoras Moura Dubeux, Queiroz Galvão, Ara Empreendimentos e GL Empreendimentos, em 2008, comprou em leilão a área da antiga Rede Ferroviária Federal (RFFSA) por R$ 55 milhões, e apresentou projeto de “revitalização” à população, que objetivava construir mais de 12 torres residenciais e comerciais de alto padrão com até 40 andares e unidades edilícias que seriam vendidas entre R$ 400 mil e R$ 1 milhão, além de estacionamentos para cerca de cinco mil veículos.

O plano causou indignação em grande parte da população, que começou a se mobilizar para acompanhar as reuniões do Conselho de Desenvolvimento Urbano (CDU) da prefeitura de Recife, reivindicando mais diálogo e participação popular no andamento do projeto. O movimento questiona uma série de irregularidades ou pontos equivocados no projeto Novo Recife [que vão desde o procedimento de leilão da área até os desdobramentos que o sucederam, contemplando a integralidade do projeto apresentado, que privilegia determinados setores da população e fecha este importante espaço do uso pleno e irrestrito da população de Recife], e o faz reivindicando o exercício da cidadania na ocupação do cais nos limites da lei, além da inclusão popular no desenho das oportunidades para a área, do respeito ao meio ambiente e do investimento imobiliário responsável.

Após uma série de eventos que obtiveram grande adesão da população, interessada no estabelecimento de um debate amplo sobre o projeto, a construtora Moura Dubeux deu início à demolição do cais, na madrugada do dia 21 de junho de 2014, em operação que foi interrompida pela pressão popular (PINTO, 2014), que montou acampamento no local durante 58 dias e teve grande repercussão nacional. Diante disso, houve a paralisação do processo de demolição, além de ações culturais e artísticas que chamaram mais atenção para o caso.

Em 2015, após uma operação da Polícia Federal para apurar fraudes no leilão que permitiu a compra do terreno do Cais José Estelita, foram ajuizadas ações na Justiça Estadual e na Justiça Federal, que questionam o projeto, o leilão e o Plano Urbanístico municipal que legaliza o Projeto Novo Recife. Dessas ações, a Justiça Federal teve sentença que determinou a anulação do leilão, mas que foi revogada pelo TRF-5, em 2017, e fez a construtora Moura Dubeux divulgar a data de março de 2019 como marco do início das obras das torres residenciais do projeto, denominadas Mirante do Cais. No site da construtora há o anúncio de apartamentos do empreendimento por valores iniciais de R$ 1.799.000,00, na torre norte, e R$ 1.550.000,00, na torre sul. Independentemente do curso do processo de privatização do Cais José Estelita, as atividades do movimento Ocupe Estelita inspiraram mobilizações em outras áreas da cidade do Recife, além de também ter contribuído determinantemente para o percurso de luta do Cais Mauá, com o contato estabelecido entre integrantes do Ocupa Cais Mauá e do Ocupe Estelita, em 2014, ensejando a elaboração de estratégias e atividades de fundamental importância na luta por um Cais Mauá de todos. (Nota da entrevistada)

Karina Fernandes (Foto: Arquivo pessoal)

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