9 de Julho, trama oligárquica e revolta popular

Elite paulista comemora contrarrevolução de 1932. Mas o dia marca, também, o momento culminante da Greve Geral de 1917 em SP. Assassinato do sapateiro José Martinez pela polícia desencadeou enorme revolta e forçou empresários a recuo

por Thiago Trindade de Aguiar, em Outras Mídias

Em 2017, comemorou-se o centenário da grande greve de 1917 em São Paulo. José Luiz Del Roio recupera a história desse conflito muitas vezes esquecido pelas novas gerações de trabalhadores. O autor foi militante do PCB e companheiro de Marighella na luta contra a ditadura militar. No exílio, como lembra Gilberto Maringoni em prefácio, Del Roio foi responsável por salvar da repressão e organizar na Itália os arquivos de Astrojildo Pereira, fundador do PCB, nos quais se encontra boa parte da documentação do período (hoje depositada no Cedem-Unesp) que ele traz à luz em seu curto, mas vibrante livro.

A obra nos leva a São Paulo num momento fundamental da consolidação das relações capitalistas de produção no Brasil. A cidade saltara de 65 mil habitantes em 1890 para 375 mil em 1917. A expansão das exportações de café gerou um acúmulo de capitais investidos nas primeiras fábricas da cidade – manufaturas de bens de consumo destinados a um mercado interno que crescia rapidamente. Além dos senhores de terra convertidos em industriais, capitalistas europeus instalavam-se no Brasil e havia larga presença de capitais externos, sobretudo ingleses, nos setores de infraestrutura.

Del Roio reconstrói as conexões entre as necessidades da acumulação capitalista, o fim da escravidão negra e a introdução do trabalho assalariado, a importação de mão de obra imigrante – justificada pela ideologia reacionária do “embranquecimento” do Brasil –, o crescimento das exportações de café e do mercado interno na gênese da industrialização e da formação da classe operária paulistana, majoritariamente composta por trabalhadores europeus. A necessidade de mão de obra qualificada para as fábricas também trouxe a São Paulo milhares de operários com experiência sindical e política, acostumados a fazer greves na Europa.

O autor não busca realizar uma reflexão teórica mais detida sobre a industrialização e a formação da classe operária no Brasil. Tendo esses processos como pano de fundo, seu objetivo é reproduzir os acontecimentos de junho a julho de 1917 na capital paulista e seus principais agentes.

Numa época em que não havia direitos trabalhistas, a classe operária se desdobrava em jornadas de doze horas, com larga utilização de trabalho feminino e infantil, inclusive nos períodos noturnos. O acesso à moradia era precário, os aluguéis consumiam boa parte dos salários, a organização coletiva se dava em associações de apoio mútuo e incipientes uniões e ligas operárias autônomas e dispersas. Nelas, fazia-se sentir a presença dominante dos anarquistas, cuja ação sindical é chamada pelo autor de sindicalismo revolucionário, também conhecido como anarcossindicalismo, que privilegiava a luta direta contra o patronato, as sabotagens e o conflito aberto, com o objetivo de criar uma greve geral insurrecional contra a classe burguesa e seu Estado. Os operários e publicistas anarquistas, com sua imprensa ativa e sua militância, eram alvo da repressão da Força Pública (predecessora da Polícia Militar), de demissões e de deportações.

Após anos de conflitos parciais, há um elemento externo determinante para a dimensão e a radicalidade da greve de 1917: a Primeira Guerra Mundial trouxe grandes consequências para a economia brasileira. Com o conflito, as importações foram reduzidas e a produção local de manufaturados estimulada, ao mesmo tempo que decresceram as exportações de café e aumentou a exportação de alimentos e insumos básicos para a Europa. Como resultado, houve alta da inflação, pressionando o nível de vida da classe operária, sobre a qual também recaía a pressão pelo aumento das jornadas e da produtividade. Do ponto de vista subjetivo, o exemplo da Revolução Russa de fevereiro de 1917 marcou a experiência daqueles trabalhadores.

Não suportando mais a carestia, as jornadas extenuantes e continuamente alargadas, a classe operária foi à luta. A greve teve início no importante Cotonifício Crespi, da Mooca, que empregava 2 mil operários e funcionava 24 horas por dia. Após terem suas reivindicações ignoradas, os operários iniciam a greve em 10 de junho. As semanas seguintes foram marcadas por passeatas duramente reprimidas pela Força Pública, pela adesão à greve de novas fábricas, como a Cia. Antarctica Paulista e as Indústrias Matarazzo, e por sua expansão a outras cidades.

Em 9 de julho, ocorreu um acontecimento capital: numa manifestação, a cavalaria e os soldados armados feriram dezenas de operários e mataram o sapateiro espanhol José Martinez, de apenas 21 anos. Seu funeral, em 12 de julho, transformou-se numa marcha multitudinária que percorreu a Mooca, o Brás e o centro da cidade, até chegar ao Cemitério do Araçá. Para Del Roio, “se fosse possível determinar o momento em que o proletariado paulista deixou de ser ‘em si e se tornou para si’, criando consciência de classe, podemos dizer que foi aquele” (p.68).

A adesão dos condutores dos bondes e da Light à greve paralisou a cidade. Levantaram-se barricadas e tiroteios tomaram as noites dos bairros operários. As Forças Armadas entraram em prontidão e o governo dissolveu as organizações operárias. Nesse momento crítico do conflito, os operários criam um novo instrumento: o Comitê de Defesa Proletária (CDP), em que se destaca a figura de Edgard Leuenroth, anarquista e editor do jornal A Plebe. Além dele, outros quatro anarquistas e um socialista, três dos quais italianos, compuseram o comitê. O autor recupera a biografia de cada um desses lutadores.

O CDP formulou um programa de reivindicações, exigindo a libertação dos presos, que nenhuma demissão acontecesse, jornada de oito horas, aumentos salariais, restrições ao trabalho infantil, abolição da presença de mulheres e crianças nos expedientes noturnos, além de medidas contra a carestia. No entanto, o comitê, seguindo sua orientação anarquista, se recusou a negociar com patrões e governo. O impasse foi mediado por uma comissão de editores de jornais da capital. Na iminência da perda de controle da cidade, a burguesia cedeu e se comprometeu a aumentar salários em 20%, dar liberdade aos presos, não demitir lideranças, aceitar a liberdade de organização, eliminar o trabalho infantil e feminino à noite. Assembleias reuniram milhares no Brás, na Lapa e no Ipiranga e aprovaram o acordo com vitórias importantes sob o canto da Internacional. Em diversas línguas, com distintas origens, “naquele momento se amalgamaram as células-base do proletariado brasileiro” (p.82).

Para Del Roio, a greve de 1917 marca o ápice e o início do declínio do sindicalismo revolucionário por conta da repressão, de sua formação insuficiente e das limitações políticas do anarcossindicalismo, que se restringiam às reivindicações econômicas, ignorando a luta política e a organização partidária. 

Os anos seguintes marcariam a cisão entre as lideranças anarquistas e o surgimento, em seu interior, dos primeiros núcleos que fundarão o PCB em 1922. Para o autor, essa é a prova do valor dessa corrente de pensamento e ação. Do ponto de vista organizativo, a fragmentação logo daria lugar a sindicatos de tipo moderno, por categoria industrial, capazes de dar permanência ao enfrentamento entre as classes. A obra finaliza com a denúncia das mortes promovidas pelo Estado oligárquico brasileiro durante essa greve. Os números oficiais dão conta de três vítimas fatais, enquanto levantamentos da imprensa à época chegam a mencionar cem mortes de operários sem direito a sepultamento digno.

Del Roio resgata a memória de nossa classe operária, recuperando os primórdios da luta e elementos úteis para investigações teóricas futuras sobre a greve, a história da classe trabalhadora e do movimento sindical no Brasil. Por tudo isso, o livro merece ser conhecido pelos pesquisadores e militantes da área.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Isabel Carmi Trajber.

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