Instituto criado pelo chef paulista transforma a especiaria em marcas exclusivas e obtém financiamento de R$ 424 mil para pesquisa; kalungas recebem menos de 10% do valor e afirmam que são excluídos das decisões sobre o produto
Por Caio de Freitas Paes, em De Olho nos Ruralistas
No Território do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, maior quilombo do Brasil, que engloba os municípios goianos de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás, existem especiarias e alimentos únicos, cultivados há gerações pelas comunidades quilombolas. São preciosidades como o arroz de pilão, o gergelim e a pimenta-de-macaco, típicas da Chapada dos Veadeiros, que encantam os visitantes e fortalecem a agricultura familiar e agroecológica na região.
Desde o último dia 13 de abril, parte desses produtos está à venda para um público mais amplo, graças ao lançamento da linha Ecossocial Kalunga no Mercado de Pinheiros, em São Paulo. A chegada à capital paulista se deu pelo renomado chef Alex Atala, reconhecido pelo uso de ingredientes de diferentes biomas brasileiros em pratos de alta gastronomia. Ele é o criador do projeto Baunilha do Cerrado, conduzido por sua organização – o Instituto Atá – no território quilombola entre 2016 e 2018.
O que não veio a público é que o projeto foi marcado por manobras jurídicas e entreveros entre a equipe do chef e os kalungas. A Associação Quilombo Kalunga (AQK), parceira local de Atala na execução das atividades, não foi convidada para o lançamento: no evento estiveram presentes apenas dois moradores da comunidade Vão de Almas, local onde o projeto foi desenvolvido – os contatos com eles foram feitos sem conhecimento dos representantes oficiais do quilombo.
“Só fiquei sabendo depois que eles foram apresentar esses produtos em São Paulo”, diz o presidente da AQK, Vilmar Souza Costa. “Eles [Instituto Atá] abordam as pessoas isoladamente, não sei se pagaram por essas participações, e o território é um só”.
O fio que desvela a intrincada história por trás dos desentendimentos é, afinal, a baunilha – especiaria à qual Atala teve acesso anos antes, durante uma viagem ao nordeste de Goiás; dali em diante, seu interesse por ela só aumentou. A baunilha agroecológica possui essência marcante e é usada em receitas de confeitaria e na aromatização de pratos de alta gastronomia. Extraído das favas de orquídeas do gênero Vanilla, o ingrediente é bem cobiçado no Brasil e no exterior.
A aproximação do chef com quilombo culminou em um projeto de R$ 424 mil, criado para “ajudar os quilombolas a formar uma cadeia produtiva da espécie”. A Fundação Banco do Brasil, parceira na empreitada, garantiu pouco mais de R$ 382 mil dessa verba, que deveria ser usada em melhorias e capacitações para os kalungas. Concluído o projeto, os quilombolas estão descontentes com o que lhes restou.
Com a parceria, a equipe de Atala lidou com amostras e mudas nativas, teve acesso às plantações e pesquisou as propriedades botânicas da espécie. Enquanto isso, nos bastidores moveu esforços para tornar a baunilha do Cerrado uma marca exclusiva, sem partilha ou acordo prévio com os kalungas.
MANOBRAS JURÍDICAS E DUAS MARCAS REGISTRADAS
Foi em 2014 que Alex Atala descobriu que o quilombo goiano possui a tão desejada baunilha e que pequenos agricultores kalungas a vendiam por preços irrisórios. Preciosa, ela não é mais cara que o ouro, mas vale mais que a prata no mercado internacional: o preço do quilo pode ultrapassar US$ 600.
Em média, a dupla de favas custa entre R$ 10 e R$ 20 em feiras agroecológicas como a de Alto Paraíso de Goiás, a cem quilômetros da comunidade do Vão de Almas. O território Kalunga possui pelo menos três espécies crioulas de baunilha: Vanilla bahiana, Vanilla pompona e Vanillaguaianensis, de onde as favas são extraídas. Acredita-se que menos de 1% da essência de baunilha vendida em todo o mundo seja derivado de favas livres de agrotóxicos, como as encontradas por lá.
Enquanto desenvolvia atividades no Vão de Almas, o instituto de Alex Atala tomou medidas legais em relação à planta sem avisar os kalungas, dando início a uma série de tentativas para tornar a “Baunilha do Cerrado” uma marca comercial. Em 2019, com o projeto já terminado, o Atá obteve o registro do nome popular da iguaria em dois dos cinco pedidos que formalizou junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi). Outros dois pedidos foram parcialmente indeferidos – o que significa que ainda cabem recursos para a concessão – e apenas um foi totalmente negado, no dia 26 de fevereiro.
As marcas são agora propriedade exclusiva do instituto pelos próximos dez anos.
As atividades com os quilombolas ainda estavam em andamento quando os pedidos foram protocolados. Os kalungas – que se reúnem com frequência para tomar decisões coletivas sobre o território e seu uso – foram pegos de surpresa, pois não havia nada combinado sobre registros ou criação de marcas comerciais no acordo com Atala. “A ideia do projeto era boa, mas da parte deles não houve respeito com a comunidade”, diz Vilmar. “Teve muita falta de comunicação, principalmente com a associação”.
Desde 8 de maio de 2019, o Instituto Atá detém o uso exclusivo da marca “Baunilha do Cerrado” para serviços de beneficiamento de alimentos e de assessoria, consultoria e concessão de informações sobre pesquisas no campo de agricultura. No entanto, o INPI não autorizou o ATÁ a usar a marca “Baunilha do Cerrado” no comércio de alimentos produzidos pela agricultura familiar, povos e comunidades tradicionais, na divulgação e publicação de textos publicitários e na organização de eventos para fins publicitários e/ou comerciais. A proibição não evitou o lançamento da linha Ecossocial Kalunga, em abril.
O instituto ligado a Atala arranjou uma saída jurídica para a questão: sua equipe desenvolveu outra logomarca, caracterizada por uma reprodução em desenho da espécie com o nome “Projeto Baunilha do Cerrado”, em grafia estilizada. À época do evento em São Paulo, o Atá ainda não havia entrado com o pedido no 917283783 para registrar essa marca. Novamente, os quilombolas ficaram de fora.
Andrea Gonçalves, advogada da associação, afirma que o recurso do instituto desagradou a comunidade:
– Caiu muito mal na comunidade a notícia do lançamento, de ter visto os produtos com uma identidade visual que ela não ajudou a elaborar, mas que carrega seu nome, quando oficinas e outras promessas não aconteceram como tinha sido combinado.
Em nota enviada ao De Olho nos Ruralistas, Alex Atala afirma:
– Fizemos esses pedidos com o objetivo de exclusivamente preservar o projeto, proteger a baunilha de uma possível super exploração em estado selvagem e cumprir com o convênio com a Fundação Banco do Brasil.
Questionada, a fundação esclarece que “não houve previsão para registro da marca”. Do lado quilombola, a assessoria jurídica garante que não foi consultada e sequer informada sobre os registros junto ao Inpi. O chef disse que os kalungas estão liberados para usar as marcas. A assessoria do quilombo não confirma, dizendo que não recebeu documentos que comprovem essa autorização.
RElAÇÕES CONTURBADAS ENTRE CHEF E KALUNGAS
As tentativas de tornar a baunilha do Cerrado e suas derivações em marca são importantes para entender os problemas em torno do projeto. Tais atitudes trincaram a imagem positiva que o Atá atribui à iniciativa e, por consequência, abalaram sua relação com os kalungas.
No relatório final do convênio com a Fundação Banco do Brasil fica claro que as diferenças tornaram-se um problema conforme as ações eram executadas, criando assim um clima conturbado entre a equipe de Atala e os kalungas. No documento, o Atá faz uma avaliação:
– Uma das grandes dificuldades deste projeto, devido ao modo de organização social, devido também às diferenças culturais e de entendimento que muitas vezes dificultam a comunicação de nossa equipe, é a coleta de assinatura para atividades pertinentes ao projeto. Muitos não querem ou não se sentem nada confortáveis ao assinar documentos, mesmo com toda a explicação de nossa equipe de campo.
Do outro lado, a principal reclamação dos kalungas é que sua participação no projeto foi limitada desde o início. Eles questionam o saldo das palestras e das oficinas para produção, organização e comercialização de alimentos – compromissos firmados para, de fato, ajudá-los a fortalecer seu modo de cultivo e subsistência. Os quilombolas imaginavam que, terminado o projeto, teriam condições de explorar economicamente sua produção agrícola sem intermediários, com autonomia.
A realização das atividades está comprovada em fotos e vídeos mas, ao que parece, não se transformou em ganhos reais à comunidade. A consolidação de uma cadeia produtiva da baunilha do Cerrado e de outras especiarias cultivadas ali ainda não vingou. Os quilombolas acreditam que, na prática, serviram apenas para garantir o acesso da equipe de Atala à baunilha.
O kalunga Romes Santos foi um dos jovens líderes do Vão de Almas que participou das atividades. “Criamos um grupo para manter a transparência junto ao pessoal do Vão de Almas e do quilombo: qualquer medida que fosse tomada, a gente participaria e a comunidade estaria de olho”. Mas, segundo ele, a partir do momento em que entrou dinheiro, o Atá parou de prestar esclarecimentos. “Não davam explicação pra mais ninguém, faziam as coisas do jeito que eles queriam”, afirma.
Do outro lado, o instituto se pronuncia:
– Trabalhamos em parceria com a comunidade Kalunga para que ela fortaleça seus sistemas de produção, se torne independente e possa se empoderar financeiramente.
MENOS DE 10% DO ORÇAMENTO FOI PARA A COMUNIDADE
O projeto Baunilha do Cerrado teve R$ 424 mil à disposição. A maior parte dos recursos veio da Fundação Banco do Brasil, mas houve outros aportes – como o da principal agência das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, a FAO, que investiu R$ 25 mil, e o próprio Instituto Atá, que bancou em torno de R$ 40 mil.
Encerrado oficialmente em 20 de dezembro de 2018, o convênio determinava que 9,85% da verba total – pouco mais de R$ 41 mil – fossem investidos na compra de produtos ou serviços para os kalungas, tidos como uma contrapartida do projeto. Diretamente, apenas R$ 8,7 mil foram gastos na comunidade até agora; o valor não chega nem a 3% do orçamento.
O valor foi usado na aquisição de arroz, farinha de mandioca, gergelim, mesocarpo de babaçu e pimenta-de-macaco, produtos que compõem a linha Ecossocial Kalunga. Segundo o Instituto Atá, “as aquisições foram intermediadas pela cooperativa Central do Cerrado, que selecionou quais produtos seriam adquiridos, beneficiou e os embalou para a comercialização”; a cooperativa recebeu R$ 35 mil pelos serviços.
Para fechar a conta e completar os 9,85% da verba total, o instituto considera produtos e entregas que não foram de fato usados pelos kalungas até agora. Entram na equação o desenvolvimento de um site oficial, por R$ 18 mil, e a criação da logomarca do projeto, hoje registrada, por R$ 5 mil. Os kalungas reclamam da eficácia das palestras e oficinas voltadas à comunidade que, na prestação de contas, custaram R$ 10 mil. Romes diz que a comunidade não os quer mais na região:
– Disseram que iam ensinar a gente a fazer o plantio de mudas, ensinar receitas e jeitos de cozinhar usando a baunilha, mas nada disso prestou, tá tudo igual como era antes, e a comunidade não quer mais eles aqui.
À reportagem, Alex Atala diz que sua equipe não foi ao Vão de Almas para encerrar oficialmente as atividades – apenas comunicou o fim do projeto à associação do quilombo via e-mails.
AO LADO DA EMBRAPA, ATÁ MIRA PRODUÇÃO NACIONAL
Por dois anos, voluntários e profissionais contratados por meio do projeto Baunilha do Cerrado tiveram amplo acesso às terras e aos saberes kalungas, enquanto os quilombolas sentiam-se, gradativamente, deixados de lado. Ao longo do processo, a equipe de Atala pode conhecer práticas tradicionais de extração e partes do território onde a especiaria é cultivada.
A imersão rendeu frutos. Foram realizadas pelo menos três pesquisas botânicas sobre as baunilhas: especialistas franceses, mexicanos e brasileiros fizeram a coleta de amostras. Segundo o Instituto Atá, os pesquisadores atuaram apenas como voluntários na iniciativa. Há versões conflitantes em relação às amostras: moradores das comunidades do Engenho II, por onde a equipe de Atala também transitou, e do Vão de Almas alegam que mudas de baunilha foram levadas sem qualquer aviso à associação do quilombo. À reportagem, Alex Atala nega.
Hoje, os kalungas estão receosos quanto ao uso das informações concedidas sobre a baunilha. O presidente da associação afirma:
– No projeto, mostramos algumas áreas nativas de onde extraímos a baunilha aqui, além de apresentar técnicas tradicionais nossas, de manejo, para a equipe [do Instituto Atá]. Estamos preocupados com detalhes legais: vai que esse povo consegue registrar e patentear o uso? Ou o modo que plantamos nossa baunilha?
A atual legislação os resguarda, mesmo que minimamente, diante da possibilidade. No Brasil não é permitido o registro de patente e marca sobre “o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza”.
Fato é que o Atá tem novos planos em relação às baunilhas. Em parceria firmada com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) pouco após a imersão no quilombo goiano, onde teve amplo acesso a amostras e saberes tradicionais, o instituto vai participar da criação de um estoque de sementes nativas das espécies brasileiras. Durante o projeto, a equipe do chef visitou os kalungas mais de quarenta vezes, filmando e registrando parte dessas visitas.
Em novembro de 2018, o instituto assinou um termo de cooperação para criar uma cadeia de produção nacional da especiaria. Segundo a Embrapa, o convênio vale por quatro anos e engloba “ações de pesquisa, desenvolvimento e inovação relacionadas às espécies brasileiras”. Estão previstas atividades de prospecção, coleta e criação de um estoque de sementes sem modificação genética. O órgão acrescenta que, “caso os resultados alcançados sejam objeto de patentes futuras”, novos acordos terão de ser feitos.
Na nota, Alex Atala informa que “nem o Atá nem a Embrapa possuem mudas de baunilha do Cerrado advindas do território quilombola. Não retemos em nenhum momento do projeto informações georreferenciadas e as técnicas quilombolas de seu cultivo”.
CIFRAS EXPLICAM DISPUTAS E INTERESSES
A baunilha do Cerrado mal entrou no mercado e já se destaca. As favas cultivadas pelos quilombolas goianos crescem e pesam muito além das encontradas no resto do mundo, superando outras variedades, como a tradicional baunilha mexicana, que pesa, em média, 0,02 g.
Em Madagascar, ilha no leste da África responsável por 65% da produção mundial de baunilha, a procura pelo “ouro negro” tem gerado conflitos que vão do roubo de colheitas à expulsão de camponeses por grupos armados. Depois da passagem do ciclone Ava, em janeiro, o preço do quilo disparou. De algo como US$ 20, o valor pulou para a casa dos US$ 600, inflamando os confrontos no campo, com a formação de milícias rurais para proteção das colheitas.
Segundo o Banco de Dados Estatísticos de Comércio de Produtos das Nações Unidas, o Comtrade, a exportação de baunilhas de Madagascar atingiu US$ 894 milhões em 2017. Os Estados Unidos são o principal comprador no mercado mundial, concentrando US$ 575 milhões em importações nesse mesmo ano.
Esse contexto global tem aumentado a cautela dos kalungas, que temem que o cultivo intensifique os conflitos, somando-se a outras ameaças que os cercam – como projetos de hidrelétricas, garimpos ilegais e a expansão da soja no entorno. Os quilombolas ainda batalham pela posse definitiva de ao menos 118 mil hectares do seu território.
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Foto: Fartura Brasil