Comunidades kalungas vizinhas a Vão de Almas recusaram projeto de Alex Atala para baunilha do Cerrado

Grupo se sente à parte das decisões tomadas e não vê vantagem na exploração da baunilha; para os quilombolas, a procura da especiaria, sem manejo adequado, tende a enfraquecer as plantações

Por Sara Almeida Campos, em De Olho nos Ruralistas

Comandado pelo premiado chef paulistano Alex Atala, o Instituto Atá visitou, em setembro, a comunidade quilombola kalunga Engenho II, no município de Cavalcante (GO).  O objetivo da visita: buscar mais informações sobre a baunilha do Cerrado, ingrediente cobiçado entre cozinheiros e gastrônomos muito além das fronteiras brasileiras.

À época, o projeto Baunilha do Cerrado, do instituto, já estava sendo desenvolvido no Vão de Almas, comunidade que fica a 80 quilômetros do Engenho II, considerada uma das mais isoladas do Território do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga. O projeto é alvo de controvérsias entre quilombolas e o Atá, que, sem o consentimento dos kalungas, formalizou cinco pedidos de registro de marca junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi): “Alex Atala registra marcas da baunilha do Cerrado, alimento tradicional dos quilombolas“.

“O Alex Atala e o Luiz Camargo [representante do instituto no bioma Cerrado] vieram aqui em setembro, época que a baunilha tava florescendo”, relembra Joseli dos Santos Rosa, um dos primeiros guias de turismo kalunga do Engenho II. A área é conhecida por abrigar um dos principais atrativos naturais da região: a imponente cachoeira Santa Bárbara. “Eles fizeram uma filmagem e a gente ficou esperando pra ver se ela se desenvolvia – saímos às 8 horas e voltamos de lá umas 17 horas”.

Segundo Joseli, eles percorreram um total de seis quilômetros de trilha durante a primeira visita, em busca de brejos que abrigam as orquídeas do gênero Vanilla, cujas favas dão origem à cobiçada baunilha do Cerrado. “A baunilha precisa de terra úmida para crescer”, afirma Joseli. “Aqui é um dos lugares onde tem mais baunilha dentro do território kalunga”, garante o guia, que os levou até o local conhecido como Chapadinha, dentro da comunidade.

Atala e Camargo retornaram ao lugar mais duas vezes: voltaram a Chapadinha para acompanhar o desenvolvimento das favas de baunilha e, na última vez, visitaram o Córrego de Laje, nos arredores da cachoeira Santa Bárbara. “Acompanhei eles aqui dentro três vezes em um intervalo de mais ou menos três meses”, diz Joseli. “Eles ficaram de voltar para ver um outro lugar, Maquiné, a 2 quilômetros de onde saem os passeios para as cachoeiras, mas até agora não voltaram”.

Na avaliação do guia, a grande procura do público pela baunilha do Cerrado causou uma extração desenfreada do ingrediente. “Esse ano a produção de baunilha deu uma caída”, afirma ele, que vive na comunidade desde o nascimento, há 54 anos. “Muita gente tá extraindo de forma errada, as árvores ficaram mais enfraquecidas”.

MORADORA DESCONFIOU DAS VISITAS 

A frequência das visitas de membros do Instituto Atá á comunidade Engenho II incomodou a kalunga Dalila Martins. “Vi que o Joseli começou a andar com eles mostrando a espécie de baunilha que temos aqui”, conta Dalila. “Percebi alguma coisa estranha e avisei o Vilmar”.

Vilmar Costa é o presidente da Associação Quilombo Kalunga (AQK), instituição que representa o território quilombola e parceira local de Atala na execução do projeto. Ao questionar o guia Joseli, Vilmar descobriu que ele havia sido contratado por Atala para mostrar todos os lugares com baunilha. “Acho que ele não tinha atentado para esse outro lado, de mostrar detalhes do território sem autorização da associação”, comenta Dalila. “Já eu sou uma pessoa bem desconfiada e achei tudo muito esquisito”.

Após o episódio, Dalila afirmou que a AQK procurou Atala e Camargo para uma conversa: “Eles não apresentaram o projeto quando chegaram, só depois que o Vilmar os abordou”. Segundo Dalila, o líder da associação foi bem direto, dizendo que o projeto só existiria se a AQK estivesse envolvida:

 Aqui no Engenho II a gente barrou esse projeto. Temos uma moita enorme de baunilha, que é onde o Joseli queria levar eles para conhecerem, mas nós não aceitamos. Vamos criar nosso regimento interno e uma das cláusulas vai falar exatamente sobre a extração de produtos naturais e minerais do quilombo. Todos precisam ter conhecimento do que sai daqui. Também é necessário saber a forma sustentável de coleta e as regras para se trabalhar com isso.

“PASSARAM POR CIMA DE TUDO”, DIZ LÍDER

Depois de reuniões com membros do Instituto Atá, da Fundação Banco do Brasil e da comunidade Vão de Almas, Vilmar conta, que além da produção de baunilha do Cerrado em estufa, a ideia inicial do projeto era multiplicar os viveiros da planta em quintais da comunidade:

– Nós da associação fizemos um termo de anuência para o projeto ser executado. Formamos uma comissão composta por moradores, professores e alunos da comunidade para acompanharem a execução. Nosso objetivo era que quando o projeto terminasse, seria continuidade da comunidade. A gente sabia que era um projeto promissor, mas o Luiz Camargo passou por cima de tudo. Não respeitou nossa comissão e fez tudo do jeito que ele quis.

Ao ser questionado se Camargo sabia da existência da comissão e se conhecia pessoalmente os integrantes, Vilmar afirma que “não apenas conhecia todos eles como nunca chamou a comissão para participar de reuniões e tomar decisões”.

Após problemas de entendimento com o representante do Atá, o presidente da AQK chegou a enviar um e-mail a eles querendo proibir a ida do instituto ao território kalunga. Ele desabafa:

– Disse que não queria ver eles mais no território por causa desse desrespeito. Depois disso, o Alex Atala foi lá na comunidade, se reuniu com a gente e pediu desculpas. Falou que era um mal-entendido. Ele até fez uma boa proposta de fazer horta nas escolas e até chegou a fazer uma no Vão de Almas. Mesmo com essa boa intenção, achei que o projeto ficou muito solto. Não teve vantagem pra nós.

O projeto também previa a compra de ingredientes da biodiversidade encontrados nos quilombos. Um deles, a pimenta-de-macaco, é um condimento muito utilizado entre as comunidades tradicionais . “Eles estavam pagando entre R$ 100 e R$ 200 no quilo da pimenta-de-macaco”, conta Vilmar. Segundo ele, muita gente saiu no mato, com facão, cortando as pimentas  que via pela frente. “Foi um descontrole, não promoveram educação ambiental e nem chamaram a associação para dar apoio”.

A AQK não foi comunicada sobre o fim do projeto, encerrado em 20 de dezembro de 2018. “Quero ver quando eles vão fazer essa entrega formal do projeto pra gente”, cobra Vilmar. “Nunca entregaram nada pra gente e não fizeram uma reunião final”.

Em resposta, o Instituto Atá afirma que a devolutiva foi enviada por e-mails, “com os passos finais e sua conclusão prevista para o encerramento do projeto”. Confira aqui a íntegra das respostas do Instituto.

Segundo os quilombolas entrevistados pela reportagem, a maior visibilidade da baunilha do Cerrado não resultou em algo positivo para a comunidade. Apesar do esforço coletivo, não existe controle de manejo e nem logística para dar conta da demanda. “Não estávamos preparados e nem tivemos uma formação para atender tanta procura”, diz o líder. “Não queríamos ser vistos só pela baunilha, e sim pela questão cultural que mantemos de geração em geração, isso é mais importante pra nós”.

COMISSÃO FOI IMPORTANTE PARA O GRUPO

As falhas de articulação interna identificadas após experiências com o instituto tiveram seu lado positivo. A AQK criou uma comissão fixa para acompanhamento de projetos e pesquisas e pretende formar grupos temáticos dentro da associação, sobre a produção agrícola e extrativismo, além de questões culturais e educativas.

Falta de diálogo, censura de protagonismo e comportamentos vistos como invasivos são situações corriqueiras no contato de entidades com comunidades tradicionais. Essas experiências geram desconfiança coletiva de grupos historicamente marcados pela opressão. “Esse tipo de situação ocorre em muitas comunidades quilombolas e também em grupos indígenas”, esclarece o professor Carlos Alexandre Plínio dos Santos, do departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB). “Isso acaba fazendo com que eles não queiram que pesquisas e projetos sejam realizados em suas áreas”.

Para ele, a falta de habilidade na abordagem às comunidades tradicionais “mina ONGs, institutos e pesquisadores que desejam desempenhar trabalhos sérios, respeitando as características culturais e hierárquicas destes povos”.

O professor integrou a coordenação do censo Brasil Quilombola em 2004, que teve como objetivo a realização de um diagnóstico socioeconômico das comunidades. As informações coletadas na pesquisa – entre 2004 e 2005 – serviram para implementar ações afirmativas direcionadas à população remanescente dos quilombos, alcançando cinquenta comunidades em todo país.

O primeiro passo da pesquisa foi o contato com os líderes para autorizarem a aplicação dos questionários. As equipes responsáveis fizeram reuniões com as comunidades e percorreram os territórios. “Em algumas localidades, por causa da extensão do território, foram realizados cursos de capacitação para que os próprios quilombolas aplicassem esses questionários”, relembra Carlos Alexandre.

Ao ser indagado sobre abordagens individuais por parte de instituições em comunidades tradicionais, o professor é categórico:

– Quando as instituições procuram indivíduos formam rachas na comunidade. Não existe um respeito às normas que eles mesmos construíram. As instituições deveriam procurar quem representa todo o território e respeitar a cadeia de comando das associações. É uma questão ética.

Na visão do especialista, a criação da Associação Quilombo Kalunga foi um importante passo rumo à unificação de um dos maiores quilombos do Brasil. “Existem mais de trinta núcleos populacionais em território kalunga, é muito difícil organizar todos esses núcleos”, diz. Mesmo com essa vitória coletiva, certas práticas continuam. Antes da formação das associações é importante lembrar que esses povos já eram organizados, segundo Carlos Alexandre. “Sempre houve uma forte hierarquia entre grupos familiares”.

Foto: Sara Almeida Campos/De Olho nos Ruralistas

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