Governo usa ideologia para privatizar terras indígenas, diz MPF

Wanderley Preite Sobrinho, do UOL

As recentes tentativas do governo federal de entregar terras indígenas ao agronegócio não têm justificativa econômica, mas “ideológica”. A declaração é da procuradora Regional da República, Eliana Torelly, que, em entrevista ao UOL, comparou a movimentação do governo Jair Bolsonaro (PSL) aos tempos da ditadura militar, quando “acreditava-se que o indígena deveria ser integrado à sociedade branca para adquirir cidadania plena”.

“A Constituição de 1988 rompe definitivamente com isso”, diz Eliana em nome da Câmara do Povos Indígenas do MPF (Ministério Público Federal), para quem as investidas do governo podem acirrar os conflitos no campo, reeditando um passado que a sociedade conhece pouco: “Os indígenas foram as maiores vítimas do regime militar”, com 8.500 mortos e desaparecidos.

Em quase sete meses de governo, a Presidência tentou por duas vezes transferir a demarcação de terras indígenas ao Ministério da Agricultura e apoiou o desarquivamento de uma emenda constitucional (PEC 343/17) que permite o uso dessas terras por pecuaristas e agricultores, o que motivou o MPF a emitir uma nota técnica criticando seu conteúdo. Além de ameaçar “línguas, costumes e espécies vegetais”, as ações do governo federal podem significar “a privatização das terras indígenas”, diz a procuradora.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

UOL – Por que a Câmara do Povos Indígenas do MPF vê inconstitucionalidade na PEC 343?

Eliana Torelly – Antes da Constituição de 1988, acreditava-se que o indígena deveria ser integrado à sociedade branca para adquirir cidadania plena. A Constituição rompe definitivamente com isso ao valorizar as culturas indígenas como parte da cultura nacional. A ideia não era mais integrá-las, mas respeitar sua própria cultura. A Carta considera as terras indígenas como necessárias para a sobrevivência e reprodução cultural desses povos. Essa PEC sofre de graves inconstitucionalidades. Para começar, ela prevê uma parceria agrícola entre a Funai e produtores rurais. As terras indígenas pertencem à União, mas o usufruto é exclusivo dos indígenas. A Funai não tem que intervir nesse processo.

A PEC defende que sua intenção é de apenas permitir ao índio se adaptar à política nacional agropecuária. Por que isso é um problema?

Essa é uma visão antiquada de que os índios ainda estão sob tutela. Claro que existem casos específicos, mas não é o entendimento geral. O índio não é um incapaz. O contato do índio com a terra é diferente do nosso. Há uma relação de pertencimento étnico. Tem importância muito maior do que para uma pessoa que usa um pedaço de terra para plantar um pouco de soja e arroz. Para o MPF, isso desvirtua a feição constitucional das terras indígenas. Essa PEC tem tantos problemas que não teria nem como ser consertada porque sua concepção afronta a Constituição.

O governo devolveu ao Ministério da Agricultura a demarcação de terras indígenas, contrariando decisão recente do Congresso. O STF (Supremo Tribunal Federal) voltou a suspender essa decisão.

Isso mostra uma insistência incompreensível do governo. Ele trata o assunto como se os indígenas fossem responsáveis pelo atraso econômico do país. Uma falácia. É uma decisão ideológica muito mais do que econômica. É um precedente ruim, mas por outro lado mostra que a democracia está funcionando porque a essência da tripartição dos poderes é que eles sejam independentes e harmônicos, mas se eventualmente há excesso de um deles, o outro está ali para controlar.

O presidente diz que há uma “indústria de demarcação” no Brasil. Um dos argumentos é que os índios seriam beneficiados por uma possível entrada de recursos vindos da concessão de terras. A senhora não acha que a mudança pode torná-los mais independentes financeiramente?

Com toda a sinceridade não sei a que o presidente se refere como “indústria de demarcações”. O Brasil ainda não cumpriu a promessa prevista na Constituição de demarcar as terras indígenas em cinco anos. Atualmente, o MP tem mais de 50 ações exigindo demarcações. A Funai tem mais de 100 terras indígenas ainda em estudo. Desde o fim do governo [da ex-presidente] Dilma Rousseff [do PT, em 2016] não se demarcou nenhuma terra indígena. Nem Michel Temer [PMDB], tampouco o presidente Bolsonaro.

A oposição ao governo afirma que essa mudança violaria a cultura indígena de produção de alimentos. Isso teria reflexos sobre a cultura nacional como um todo?

O modo de produção de cada sociedade é parte importante da cultura. Muitos grupos indígenas são caçadores coletores, mal praticam agricultura. A gente vai perdendo coisas que não tinha dado conta de que existiam. A sociedade empobrece. São línguas, costumes e espécies vegetais que desaparecem. Não pretendemos que esses povos permaneçam em um estado utópico de como eles viviam quando chegou o colonizador. Isso é uma bobagem. Qualquer sociedade passa por evolução de costumes, e isso é ok, mas o que a gente defende é que isso ocorra de maneira que o próprio povo se autodetermine, que não venha de fora.

É possível mensurar as vantagens que a exploração das terras indígenas traria ao agronegócio?

Com que área agricultável eles passariam a contar? Só a motivação econômica é suficiente para compensar essa perda cultural? Tenho certeza que não.

Pessoas vivem lá há milhares de anos. Os conflitos por terra indígenas são graves principalmente no Sul do país. Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina e no Mato Grosso do Sul. A PEC pode acirrar esses conflitos porque ela não busca o bem-estar das populações indígenas, mas atender a uma demanda do setor agrícola.

Uma recente nota técnica do MPF cita uma antiga “política integracionista” que teria resultado em um “genocídio” de povos indígenas. O que diz o “Relatório Figueiredo”?

Relatório Figueiredo é um relatório feito por um procurador [em 1967]. Na época, o Ministério da Agricultura ficou encarregado de saber o que acontecia no serviço de proteção ao índio, e se deparou com um genocídio. Ele relatou tudo nesse documento, que ficou perdido durante 45 anos e foi encontrado em 2013. A Comissão da Verdade aponta que os indígenas foram as maiores vítimas do regime militar. Para se ter uma ideia, foram 434 mortos e desaparecidos políticos. Entre os indígenas, foram 8.500 pessoas. O povo Waimiri-Atroari, que somava 3.200 indivíduos, viu esse número cair para 300 durante a construção da Rodovia Transamazônica [inaugurada em 1972].

Parte da população indígena adota elementos como vestuário e eletrodomésticos, e isso é usado como argumento de que não são mais índios. O que é ser índio no Brasil hoje?

É um preconceito social tão arraigado que nós queremos dizer aos índios quem eles são. Não queremos permitir que eles se identifiquem da maneira que eles achem adequado. Nós deixamos de ser brasileiros porque não nos vestimos como há 200, 500 anos? A sociedade indígena também faz parte desse processo. E se for decisão deles não mudar seus costumes, bom para eles. Cada povo tem direito de se autodeterminar. O fato de o índio estar de calça jeans, dirigindo um carro e estudando em uma universidade não muda sua identidade. É uma grande injustiça que se comete contra eles.

Essas medidas não são tomadas pelo governo porque há apoio popular?

Como houve uma mudança radical de orientação política no governo, a gente temeu certas coisas no começo. Ficamos com temor em relação aos direitos indígenas, mas mesmo o Congresso, francamente favorável a propostas do presidente, impediu a mudança da Funai (Fundação Nacional do Índio) para a Agricultura. Este é um momento didático para a população, uma oportunidade de aprendizado. Pessoas que nunca haviam pensado nisso passaram a ter uma visão de mundo que inclui essa diversidade. Somos um dos poucos países no mundo que abriga tantas etnias. É uma riqueza que precisa ser conservada para as próximas gerações. Não apenas para a gente se orgulhar, mas porque elas têm o mesmo direito d de existir que nós temos.

Além da nota técnica, o MPF pretende tomar alguma providência jurídica?

Outras PECs já nos assustaram e felizmente não vingaram, mas eventualmente podemos tomar alguma providência jurídica. Teria de ser uma medida junto ao Supremo [Tribunal Federal] e seria exclusiva da procuradora-geral da República [Raquel Dodge]. A 6ª Câmara faria uma representação à Procuradoria-Geral, que recorreria ao STF. Mas ainda temos espaço para atuar no Congresso. Além disso, o movimento indígena é muito organizado.

Foto: Mídia Ninja / MNI

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