‘O solo onde essa produção de grãos se dá é uma terra necrosada’, diz líder indígena Ailton Krenak
por Giovanna Galvani, em CartaCapital
O negócio bilionário cresceu aos olhos do governo assim que se concretizou diante do mundo. O acordo entre a União Europeia e o bloco que era tão criticado pelo presidente, o Mercosul, foi apresentado por Jair Bolsonaro como um dos “mais importantes de todos os tempos”, com “benefícios enormes” para a economia do País. O preço, porém, pode ser perverso. Líderes indígenas e entidades ambientalistas denunciam, ao outro bloco econômico signatário, o rastro de destruição deixado pelo agronegócio em terras invadidas, o vício em veneno por parte produtores brasileiros e o desprezo pelos povos em suas terras. “O que o povo indígena e seus aliados estão fazendo é exatamente alertar a Europa: vocês estão financiando o crime.”
Ailton Krenak, autor da fala acima, é uma das figuras mais importantes do movimento indígena no Brasil. Escritor e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, ficou ainda mais conhecido há 30 anos, quando pintou o rosto em uma fala história na Assembleia Constituinte de 1988.
“Um povo que habita casas cobertas de palha, que dorme em esteiras no chão, não deve ser identificado de jeito nenhum como o povo que é inimigo do Brasil, inimigo dos interesses da nação e que coloca em risco qualquer desenvolvimento”, disse Krenak à época. A Constituição incluiu os direitos dos índios em seu texto, mas a financeirização global parece ter outras prioridades – e o movimento sabe disso.
Em junho, antes do acordo UE-Mercosul, a coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e ex-candidata à vice-presidência pelo PSOL Sônia Guajajara, anunciou em coletiva de imprensa na Alemanha que as lideranças dos povos brasileiros irão visitar empresas de cinco países e tentar participar de reuniões no Parlamento Europeu para denunciar o que eles estão prestes a comprar às toneladas: índices históricos de desmatamento e de aprovação de agrotóxicos, além de cerceamento de instituições reguladoras, como o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e da própria Funai (Fundação Nacional do Índio).
Guajajara estava na cidade de Bonn participando da primeira semana de negociações da COP25, a Conferência de Mudanças Climáticas da ONU – que deveria ser no Brasil este ano se não fosse pela atuação bem sucedida de Bolsonaro em descreditar a importância da reunião e tirar o país da lista de concorrentes.
A pressão dos indígenas brasileiros não é solitária. Na Europa, ambientalistas classificaram o acordo como “inaceitável”. Políticos franceses assinaram uma carta na qual chamam o acordo de “um erro econômico e um horror ecológico”, e os líderes Emmanuel Macron, da França, e Angela Merkel, da Alemanha, também mostraram-se preocupados com os impactos ambientais de tal comércio expansivo, mas não é a primeira vez que eles são avisados.
“Começamos a alertar a Europa que eles estavam comprando madeira roubada das terras indígenas e unidades de conservação na Amazônia há 20 anos”, relatou Ailton Krenak. “Essa campanha obrigou um maior controle de certificação sobre a madeira que saia dos portos do Brasil, e, durante mais de uma década, se constituiu em um importante mecanismo de diminuir o desmatamento o o roubo de madeira nas terras indígenas”, analisou.
Em relatório inédito sobre como as relações entre empresas norte-americanas e europeias com negócios não sustentáveis se costuram nas florestas brasileiras, a Apib relatou dados importantes. Os autores do estudo analisaram as principais multas por desmatamento ilegal cometidas por 56 empresas brasileiras que foram autuadas pelo Ibama desde 2017, e identificaram as negociantes com tais partes, o que comprova que o amplo mercado da carne no Brasil, por exemplo, só é possível por conta da destruição de territórios do Cerrado e da Amazônia.
Cerca de 41% das importações de carne bovina da UE foram provenientes do Brasil em 2018, e os números poderiam refletir uma realidades diferente caso houvesse pressão econômica por parte dos importadores nos produtores nacionais. “Se não der prejuízo, não muda a tendência. Só vão parar de jogar veneno, comer floresta e comer terra se eles tiverem prejuízo”, critica Krenak.
No Brasil, o relatório da Apib destacou a importância de investidores e comerciantes de commodities globais, que analisam os riscos de negócios e influenciam aonde vai parar o capital no final das contas. O movimento indígena também luta por esta via: um dos advogados da Apib, Luiz Henrique Aloy, do povo Terena (MS), participou da reunião anual da Blackrock, a maior gestora de investimentos do mundo – que possui mais de 6 trilhões de dólares em ativos. Aloy pediu para que os executivos boicotassem commodities provenientes de invasões ilegais. Neste ano, a Blackrock ja reduziu ações da mineradora Vale após a tragédia de Brumadinho, um movimento claramente em direção aos negócios. Resta saber se há alguma sensibilidade em Wall Street com pressão por parte do mercado europeu.
Uma parceria entre a ONG WWF e a Fundação Getúlio Vargas também analisou, em 2017, as responsabilidades do mercado financeiro na cadeia de desmatamento nos solos nacionais. Um dos investidores entrevistados apontou que “riscos reputacionais” poderiam comprometer a capacidade das empresas em atuar em certos países, e destacou também o exemplo da multinacional IOI Group, que perdeu cerca de 20% do valor de mercado após descobertas relacionadas à extração de óleo de palma e desmatamento.
“Terra necrosada”
Em janeiro, uma operação da Policia Federal apreendeu mais de 40 contêineres de madeira ilegal no porto de Manaus – cerca de 50% do total seria destinado à Europa e aos Estados Unidos. “O material apreendido até o momento, se colocado de forma linear, cobriria um percurso de 1.500 quilômetros, o que equivaleria à distância entre Brasília e Belém, aproximadamente”, informou a PF em comunicado. Desde março de 2019, houve um aumento de 150% nas invasões ilegais em todo o País, de acordo com a APIB. A principal vítima é a Amazônia – e não há fiscalização.
Para além dos números distorcidos apresentados pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e pela ‘musa do veneno’ e chefe da pasta da Agricultura, Tereza Cristina, Ailton Krenak define a linha de aviso a quem se interesse em fazer negócios no Brasil. “O solo onde essa produção de grãos se dá é uma terra necrosada. E os europeus estão comendo essa necrose. Se eles quiserem continuar financiando o agronegócio, eles podem comprar o próprio veneno deles.”