Criaram falsas simetrias em nome de um “paraíso ultraliberal”. Mentiram. Normalizaram o absurdo e ajudaram a catapultar um deputado medíocre à Presidência. Ameaçados pelo autoritarismo, barões da mídia fingem-se de paladinos da liberdade…
Por Almir Felitte, em Outras Palavras
Autocrítica é uma palavra que foi bastante repetida desde outubro de 2018. Geralmente usada para críticas ao petismo, a palavra acabou virando mantra na boca de quem assiste de camarote ao estrago que a direita liberal faz ao país e consegue ter o cinismo de escrever textos e mais textos sobre como a esquerda seria a grande culpada por isso. E é assim, com a culpa sempre sendo dos outros, que a classe jornalística brasileira que trabalha nas grandes mídias vai colocando o país cada dia mais perto do abismo autoritário bolsonarista.
Difícil não lembrar do “grande dilema” enfrentado pelo Estadão, por exemplo, que, às vésperas da eleição presidencial, julgou estar diante de “uma escolha muito difícil”. O Estadão, que lá pelos idos de 1964 defendeu um golpe por “apego à lei e à democracia”, em um editorial tosco, condenou o “truculento apologista da ditadura militar” Bolsonaro com a mesma veemência que criticou as “barbaridades” das propostas de Haddad: revogar a Reforma Trabalhista e o Teto de Gastos. Barbaridades?
Igualmente indignante é se deparar com a cara de pau de um veículo como a Veja, aquela revista que, durante a Ditadura Militar, serviu até como panfleto de “Procura-se” contra subversivos e que, nas últimas duas décadas, se dedicou exclusivamente a propagar mentiras e ódio contra a esquerda brasileira.
Já em janeiro, essa mesma Veja estampava na capa uma montagem que comparava Bolsonaro ao desastroso e curto Governo Jânio. Nada de errado, não fosse pela total falta de autocrítica em reconhecer que o bolsonarismo foi gestado, página por página, em seu próprio folhetim. Foi na Veja, aliás, que Reinaldo Azevedo, nosso Carlos Lacerda do século XXI, criou o termo “petralhas”, aqueles que Bolsonaro disse que fuzilaria no Acre.
Aliás, vale lembrar que uma das principais bases de sustentação do Governo Bolsonaro, o “lavajatismo”, foi o pilar do pseudo-jornalismo da Veja nos últimos 5 anos, numa relação entre Judiciário, MP e mídia que beirava a promiscuidade. O “lavajatismo midiático” foi tão forte na Veja que teve jornalista resolvendo até fazer carreira solo na canalhice, seja com veículo próprio de comunicação, seja com mandato na Câmara dos Deputados em Brasília. Não é mesmo, Mainardi e Joyce?
Agora, a mesma Veja estampa orgulhosa sua parceria com o Intercept para mostrar a verdadeira face autoritária e corrupta da Lava Jato, como se ela mesma não tivesse se esbaldado nesse poço de ilicitudes.
Porém, façamos justiça: o “lavajatismo” não pegou só a direita xucra como a Veja. O “isentismo jornalístico” também enveredou forte na República de Curitiba e alçou gente como Moro e Dallagnol ao posto de heróis nacionais, mesmo que praticamente toda a comunidade jurídica já falasse, há anos, sobre o autoritarismo e as graves ilicitudes cometidas pela equipe da Lava Jato. E tem quem continue: Celso Rocha de Barros, que, ainda em 2018, dizia que Moro poderia ser a esperança de um freio democrático ao impulso conservador de Bolsonaro, em pleno julho de 2019 segue dizendo que Moro é apenas um “coitado” sendo usado pelo Governo.
E se esse “lavajatismo midiático” tem sua parcela de culpa nos tempos tenebrosos que vivemos, não fica muito atrás o “jornalismo pseudo-econômico” que reza pela cartilha liberal como se adora um ídolo religioso. E não faltaram jornalistas liberais, com aura de ponderados e isentos, relevando atrocidades cometidas pela direita brasileira nos últimos anos.
Por puro terrorismo político-econômico contra a população, jornalões e jornalistas de todo o país afinaram o tom: “Talvez esteja em curso um golpe, mas o Teto de Gastos é tão necessário. A FUNAI está sendo destruída, mas a Reforma Trabalhista é o único jeito de gerar emprego. Prenderam o candidato que venceria as eleições, mas, sem a Reforma da Previdência, o país quebra. Esse Bolsonaro é um autoritário mesmo, lembra até a Ditadura do PT”.
Em nome de uma cartilha econômica pró-mercado cinicamente apresentada como salvação nacional, o jornalismo liberal usou e abusou de falsas simetrias pra normalizar o absurdo em que adentrava nosso país. Um tiro na caravana de Lula e vários tiros contra o acampamento que acompanhava a prisão do ex-Presidente em Curitiba viraram atos triviais pra uma imprensa que já fez escarcéu por uma bolinha de papel na cabeça de Serra.
Bom, em defesa desse jornalismo liberal, deve-se dizer que percepção de simetria nunca foi o forte deles. O que dizer de jornalistas que enxergam uma Ucrânia em Guerra Civil e tomada por neonazistas como um caso de interferências políticas externas que deu certo, não é Chacra[1]?
Há, ainda, os pseudo-arrependidos, como a economista-colunista Monica de Bolle, que consegue a proeza de, em um pequeno texto via Twitter[2], reconhecer seu erro em apoiar o impeachment de Dilma por achar que a “racionalidade econômica deveria imperar”, já que o Golpe acabou corroendo as instituições, pra chegar a “brilhante” conclusão de que era melhor o Golpe ter acontecido via cassação da chapa eleita no TSE. Ou seja, o arrependimento por subverter as regras democráticas foi zero. A justificativa: “a economia se estabilizou tenuemente”.
De Bolle, aliás, agora encontra-se em um difícil “dilema moral”, coitada. Entre aspas, assim, pois esse foi o título de seu artigo para a Época[3] em que ela expressa todo seu desconforto em estar mais ou menos feliz de ver a agenda liberal avançando em países com problemas autoritários como a Hungria e, vejam só, o Brasil.
Na visão da economista-colunista, a Hungria é um “estrondoso sucesso econômico”, pouco importando se protestos contra uma Reforma Trabalhista carinhosamente conhecida como “Lei da Escravidão” foram massacrados pela polícia de Orbán, ou se cerca de meio milhão de húngaros deixaram o país nos últimos anos porque as condições de trabalho por lá não são nada boas.
E ela também está igualmente feliz com os rumos econômico brasileiros, ainda que a cartilha liberal, implantada como um trator no país nos últimos 5 anos, tenha gerado dois anos de recessão, dois anos de PIBinhos, o risco de uma nova recessão esse ano e um desemprego recorde. Nem mesmo o Banco Central está tão otimista quanto de Bolle que, em seu dilema, não sabe se a escalada autoritária deve lhe causar tantos sentimentos ruins assim. No fim das contas, Monica de Bolle já pode deixar seu dilema de lado: o Brasil caminha pra ficar sem democracia e, também, sem economia.
Mas, entre falsos arrependidos e abertamente autoritários, a lista de jornalistas que normalizaram o absurdo e criaram condições para chegarmos à beira do abismo ditatorial é bem extensa e certamente não para por aí. O grupo Globo, aliás, talvez abrigue a maior parte deles. Emblemática, nesse ponto, a postura da emissora ante as ameaças e a perseguição violenta a sua jornalista Miriam Leitão, quando o Jornal Nacional leu nota em que comparava os atuais ataques e ameaças aos “xingamentos” de “liberal” e “direitista” sofridos por ela nos tempos petistas. Bom, aí dou razão à emissora: eu também me sentiria profundamente ofendido se me chamassem de liberal.
E foi assim, criando falsas simetrias e relevando atrocidades da direita em nome de um bem econômico maior, ainda que esse bem nunca tenha chegado, que o jornalismo brasileiro foi criando uma cultura de normalização do absurdo. Foi assim que um sujeito medíocre, que passou longas 3 décadas na Câmara sem fazer absolutamente, um apologista de torturadores abertamente antidemocrático e violento, conseguiu chegar ao poder.
Mas o cinismo da grande mídia brasileira não tem limites. Agora, com o ovo da serpente já chocado, jornalistas diretamente responsáveis pelo que vivemos fingem nada ter a ver com isso, bradando aos quatro ventos como são verdadeiros paladinos da liberdade de imprensa. Posam de vítimas para esquecermos que, antes de tudo, já foram nossos algozes.
Ora, se são tão defensores da liberdade, deveriam começar pela própria casa. Vivemos em um país onde 5 famílias extremamente milionárias são “donas” de mais da metade das informações que circulam pelo país. Quando a imprensa de um país se encontra nesse nível de concentração, então pode-se dizer que vivemos o pior tipo de censura que pode existir: a autocensura. E foi assim que Marinhos, Frias, Mesquitas, Saads, Macedos e seus “capangas” jornalistas gestaram, por anos, a nova Ditadura que está por vir. Não aceitaremos outras desculpas 50 anos depois.
[1] https://twitter.com/gugachacra/status/1089933425354641408
[2] https://twitter.com/bollemdb/status/982738927395196928
[3] https://epoca.globo.com/dilema-moral-23799117
–
Imagem: Laerte