Crônica em tempos de espera

Por que o Brasil dos sem-teto está tão distante do país dos operários do ABC, embora alguns personagens pareçam se confundir? Como manter a esperança e dialogar com os invisíveis, em meio à maré baixa?

Por Felipe Calabrez, em Outras Palavras

Quando Guilherme subiu para discursar naquele caminhão numa noite fria, com sua voz rouca, não pude não lembrar de Lula no ABC do início dos anos 80. Começava o apagar das luzes da ditadura militar e o processo de industrialização forçada com anos de crescimento econômico que ultrapassaram a casa dos 10% do PIB ao ano haviam formado, ao redor da maior cidade do país, a clássica classe operária. Naquele momento, a convergência entre intelectuais marxistas, entusiasmados em ver a materialização de sua categoria analítica central, e operários sindicalizados, que não precisaram ler Marx para sentir na pele os anos de arrocho salarial e a corrosão de seu poder de compra diante da inflação, formou o que se tornaria o maior partido de esquerda da História do país, o Partido dos Trabalhadores

Não pude não lembrar também que Lula estava encarcerado em Curitiba, e que o processo que o levou à prisão foi descaradamente forjado por um sistema de justiça que teve seu modus operandi recentemente revelado, não restando dúvida sobre suas intenções. Mas lembrei também de empreiteiras como OAS e Odebrecht, e de figuras como Palocci, aquele que fez a ponte entre os donos do dinheiro e o governo que se iniciaria em 2003. OAS e Odebrecht, vale lembrar, foram as maiores beneficiadas pelo crescimento econômico da ditadura e sempre mantiveram relações próximas com o poder político.

Mas a História é implacável, e parece que eles acabaram usando black tie.

Naquela noite fria, ao ouvir a voz rouca de Guilherme, não pude não notar a composição social daqueles que o ouviam. Além de jovens estudantes e advogados da OAB, o que havia em peso era a periferia. Não aquela classe operária clássica e organizada do ABC, dissolvida pela “reestruturação produtiva” e por outros fatores, mas pelos trabalhadores dos “serviços”, um amálgama composto por empregadas domésticas, faxineiras, “ajudantes” de algo, motoboys, vendedores ambulantes, desempregados, e muitas outras coisas. Em suma, aqueles a quem a vida impõe um sacrifício diário pela manutenção da existência, objeto de controvérsias entre sociólogos (ralé, subproletariado, como quiserem)

Seja como for, o materialismo histórico impõe uma verdade: A luta pela existência material precede qualquer conceito. E Guilherme percebeu isso

Noto que perdi muito tempo achando que deveria convencer aqueles que possuem um ou dois pequenos apartamentos a achar justo que uma família (que de outro modo dormiria com a cara no concreto ou em um barraco de madeira), que essa família ocupe um prédio vazio, em geral herdado por alguém que possui dívidas milionárias de IPTU e o mantém fechado esperando a “valorização” da região para vendê-lo ou lançar algum empreendimento. A afronta à propriedade privada sempre chocou as camadas médias, que acham que o assunto é com elas. Impossível dissuadi-las, é preciso se livrar dessa covardia pequeno-burguesa.

Ninguém vai fazer nada por ninguém. E Guilherme notou isso. Por isso a luta dos movimentos por moradia é imprescindível. Não é Boulos, ou outra liderança, quem faz algo por alguém. São as próprias pessoas, que notam sua situação e lutam coletivamente, o que requer organização, sacrifícios individuais e, sim, lideranças e direção

O Brasil não é mais o mesmo do início dos anos 80. Mas continua sendo um país terrivelmente desigual, onde a distribuição de renda é uma tragédia e a luta material pela existência digna se impõe diariamente a parcela expressiva da população. A luta por moradia digna é apenas uma pauta. Mas é essencial para aqueles que não a tem. E a experiência coletiva da Frente Povo sem Medo parece revelar que se aqueles que lutam pelo direito de ter onde morar notarem que essa é uma luta política, não deixarão mais de fazer política.

Invadir propriedade é comunismo, poderão dizer os incautos. Penso que é questão de dignidade humana. Ademais, chamem como quiserem. Afinal, comunismo não foi o nome dado a um projeto em construção que prometia garantir a dignidade humana que não foi entregue pela modernidade e pelo progresso?

Aos mais pessimistas vale pedir calma. Como disse Erundina com invejável energia em seus mais de 80 anos, o tempo do mundo não é o tempo da vida. E uma semente foi plantada.

Foto: Mídia Ninja

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