“Future-se” e o aumento da desigualdade de gênero na carreira acadêmica

Entre os efeitos do Future-se, um tem passado quase despercebido: se o modelo proposto vingar, passaremos de um contexto de desigualdade de gênero um tanto atenuada na carreira acadêmica para um cenário em que essa desigualdade tenderá a se acirrar, dificultando ainda mais a trajetória das mulheres.

Por Marília Moschkovich, no Blog da Boitempo

A precarização da educação é, como preconizava Darcy Ribeiro, parte de um projeto. No caso do ensino superior, a precarização da educação é também a precarização da ciência. Para o Brasil, essa relação é ainda mais íntima, já que construímos historicamente um modelo (não cabe neste texto o debate sobre ser o melhor ou não) em que a chamada carreira acadêmica, ou seja, o trabalho de cientista e pesquisador, está atrelada ao trabalho como docente em instituições (sobretudo públicas) de ensino superior. Na esteira dos cortes orçamentários e perseguição ideológica nas universidades públicas no primeiro semestre de governo Bolsonaro, o Ministério da Educação de Abraham Weintraub lançou em julho o pacote Future-se, que acirra a transição para um modelo privatista e com pouca ou nenhuma autonomia científica e universitária (conforme expliquei em minha primeira coluna aqui no Blog da Boitempo).

Entre os efeitos do Future-se, um tem passado quase despercebido, talvez por não ser um dos objetivos explícitos e declarados do pacote de mudanças: o modelo proposto significa, para as mulheres pesquisadoras e cientistas, ainda mais desvantagens profissionais. Com o Future-se, passamos de um contexto de desigualdade de gênero um tanto atenuada na carreira acadêmica para um cenário em que essa desigualdade tenderá a se acirrar, dificultando ainda mais a trajetória das mulheres.

A desigualdade de gênero na carreira acadêmica brasileira hoje: estabilidade, rendimentos, gestão colegiada

Há mais de uma década no Brasil as mulheres são responsáveis por mais da metade das defesas de teses de doutorado todos os anos. Representam também perto da metade do professorado da educação superior pública. Entre 2010 e 2012, como mestranda na Faculdade de Educação da Unicamp, estudei justamente a desigualdade de gênero na carreira acadêmica brasileira (mestrado defendido em 2013, e disponível no repositório da universidade – um artigo com resultados também foi publicado, e uma reportagem na revista Pesquisa FAPESP tratou do trabalho). Antes, durante e depois da pesquisa, vi e sigo vendo que no Brasil, quando se trata desse tema, é comum que sejam importadas problemáticas estabelecidas em países do centro do capitalismo, como os Estados Unidos ou alguns países europeus. Numa abordagem sociológica rigorosa e materialista, porém, é preciso situar cada fenômeno, observando as condições sociais que os produzem, e refletir sobre como o trabalho de produzir conhecimento se localiza nas estruturas sociais de cada país. Foi assim que elaborei a hipótese central do meu mestrado. Afinal, se os problemas da carreira acadêmica na Europa e nos Estados Unidos são decorrentes da estrutura da carreira, que forma eles tomam (se é que existem) quando a estrutura é fundamentalmente diferente?

A especificidade, em relação a outros países, da carreira acadêmica brasileira no modelo que está sendo destruído com o Future-se pode ser apresentada em três pontos: a estabilidade (e a impessoalidade na contratação por concurso) como parte do funcionalismo público, a posição de classe e as relações entre classes no Brasil (que permitem contratar pessoas ou instituições/empresas para transferir para elas o trabalho doméstico e de cuidados, ou parte significativa dele) e a estrutura da universidade, gerida pelos próprios docentes e não por gestores externos. Isso tudo sem entrar no mérito de debater outros aspectos como o tipo de autonomia universitária possível nesse modelo.

Estabilidade e contratação por concursos

A estabilidade e os concursos (ou seja, o funcionalismo público) importam por dois motivos: a estabilidade permite que o emprego não esteja em risco quando, sobrecarregadas com o cuidado de filhos pequenos, as mulheres reduzam o ritmo de trabalho e/ou produção científica; os concursos, ainda que imperfeitos, estabelecem que qualquer pessoa que tenha certo cargo, terá o salário definido legalmente para aquele cargo, ou seja, o salário independente de negociação individual (e há estudos e mais estudos mostrando que, não apenas na carreira acadêmica, quando o salário depende de negociação individual as mulheres levam a pior).

Nos últimos dez anos, com um processo de precarização já correndo, a estabilidade, por exemplo, já vem sendo ameaçada – não apenas porque, para realizar pesquisas, os docentes precisam pedir financiamento a certos órgãos (e aí quem reduziu o ritmo de produção porque teve um bebê, por exemplo, pode ficar prejudicada), mas também porque os próprios cargos estáveis não representam boa parte dos trabalhadores da ciência. Mesmo se não contarmos mestrandos e doutorandos como pesquisadores stricto sensu na carreira acadêmica (pois não têm total autonomia, ainda, sobre seu trabalho), temos hoje a figura do pós-doc, um trabalhador que, enquanto espera um concurso, faz quase tudo o que um docente faz, em condições mais precárias, sem estabilidade, e com rendimento muitas vezes abaixo do salário do docente. O “quase” aqui é importante pois, já que não são funcionários concursados, os pós-doutorandos não podem assumir cargos de gestão nas universidades – e isso importa muito, como explico adiante.

Gestão colegiada

O sistema de gestão colegiada implica que os docentes façam também a gestão das instituições em que trabalham. Essa é apenas uma das estruturas que às vezes garantem, às vezes facilitam, que se mantenha a autonomia universitária. Mesmo órgãos de financiamento de pesquisa no Brasil, como CAPES, CNPq, FAPESP, etc. também usam modelos semelhantes na avaliação do trabalho científico. Os critérios para bolsa produtividade no CNPq, por exemplo, são definidos por área de atuação por um comitê de docentes da área; os projetos de pesquisa são avaliados por pareceristas ad-hoc de cada área; os critérios para avaliação de periódicos e classificação no sistema Qualis (A1, A2, B1, B2, B3, etc.) também são estabelecidos por grupos de docentes em cada área.

Embora esse tipo de estrutura não signifique exatamente uma democracia, já que em geral há uma distribuição de poder desigual entre instituições, regiões do país e outros subgrupos nesses processos, ela certamente torna a gestão mais próxima e acessível aos docentes. Em termos da desigualdade de gênero, isso permite que necessidades cotidianas sejam negociadas com mais proximidade e, às vezes, possivelmente com mais empatia também. Outras vezes, claro, essas negociações e decisões são permeadas de machismos, como contaram algumas das minhas entrevistadas da pesquisa de mestrado.

Renda e transferência de tarefas domésticas

Por fim, no contexto de extrema desigualdade social do Brasil, os rendimentos de bolsistas de pós-doc e docentes do ensino superior (mesmo os que se encontram nas posições de trabalho mais precárias do ensino superior) são substancialmente maiores do que aqueles obtidos pela maior parte da população. No caso das mulheres, historicamente responsabilizadas pelo trabalho reprodutivo de cuidado com a casa e com as pessoas, isso significa a possibilidade de repassar ao menos parte dessas tarefas para outras mulheres mais pobres, ou empresas/instituições privadas prestadoras de serviço. Isso permitiria às mulheres dessa fatia da classe trabalhadora dedicarem-se mais ao trabalho, ao menos potencialmente, mesmo que a divisão das tarefas domésticas no contexto de casamento homem-mulher não fosse igualitária.

É importante notar aqui algo que também está colocado na pesquisa realizada: todas essas estruturas não significam que haja igualdade de gênero na carreira acadêmica brasileira, mas sim que a desigualdade é atenuada quando comparada com países que usam outros modelos de carreira e gestão universitária e científica.

O que muda com o modelo Future-se?

Uma das proposições centrais do Future-se é a transferência da gestão das universidades para Organizações Sociais (OS). Essa mudança, sozinha, é capaz de destruir quase todos os aspectos positivos para a igualdade de gênero mencionados nos parágrafos anteriores. As OS não precisam de licitação para tomarem a gestão de uma universidade – o que significa que, no contexto atual, será legal e oficial transferir a gestão da universidade para um grupo amigo do governo, que compartilhe dos mesmos valores políticos e ideológicos, como o Instituto Ayrton Senna ou alguma OS criada por grupos de educação privada como a Kroton exclusivamente para este fim. A ausência de licitação também faz com que não haja regulamentação do Estado sobre essas organizações, não sendo impostos requerimentos mínimos, nem forçando qualquer tipo de accountability – pra ficar no dialeto empreendedor do abusivo pacote.

As OS, por sua vez, podem decidir contratar docentes em regimes contratuais precários – afinal, seriam trabalhadores da OS e não funcionários públicos – e com baixos salários. A gestão da OS teria prioridade na balança desequilibrada de poder entre diversas forças que povoam as disputas políticas e decisões nas universidades. Isso significa que os gestores da OS, sendo gestores da universidade, podem tomar decisões inclusive pedagógicas e ideológicas que combinem com os propósitos políticos e econômicos das empresas ligadas a eles e/ou de grupos políticos conluiados. Isso inclui contratar mulheres com valores mais baixos, sem licença-maternidade, criar parâmetros de avaliação alheios aos próprios docentes/pesquisadores, ou até mesmo extinguir cursos e áreas de pesquisa (como os estudos de gênero).

Não à toa, o modelo se aproxima (ainda que numa versão piorada, se é que isso é possível) do modelo estadunidense – um dos países em que as condições de trabalho das mulheres na carreira acadêmica são mais problemáticas. Uma prévia do que podemos enfrentar no Brasil se não formos às ruas no dia 13 e, sobretudo, se não nos articularmos organicamente para além das manifestações de rua, em sindicatos, na UNE, nos movimentos sociais e partidos políticos.

*Marília Moschkovich é socióloga, mestra e doutora em educação pela Unicamp, tendo trabalhado também no Museu de Antropologia da Universidad Nacional de Córdoba (UNC), na Argentina, e na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris.

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