Os assassinos e as crianças

Não está tudo normal

Fausto Salvadori, editor e repórter da Ponte Jornalismo

Os jornais gritam TUDO NORMAL, os aviões sobrevoam com faixas de NÃO HÁ NADA ACONTECENDO e as mensagens de TUDO MUITO NORMAL e ESTÁ TUDO BEM se espalham pelos outdoors de toda a cidade, em uma charge de André Dahmer que é um retrato dos dias que correm. Enquanto o Brasil avança em ritmo acelerado para se transformar em uma ditadura sutil (para usar a expressão do sociólogo espanhol Manuel Castells que deu título a um artigo desta semana do New York Times sobre o governo Bolsonaro), gente ligada ao dinheiro grosso prefere acreditar que está tudo bem.

Pegue o presidente do Itaú Unibanco, Candido Brecher. Ele afirmou à Folha de S.Paulo, com todas as letras que “a situação macroeconômica do Brasil” é a melhor que já viu em toda a sua carreira e se diz “otimista no curto e médio prazo”, mesmo porque o que ele chama de “turbulências políticas” não atrapalha “o avanço das reformas”.

Ideia parecida com a de Fernando Schüller, consultor de empresas e professor do Insper, que consegue ver no cenário atual “o ensaio de um país que deseja ser simultaneamente moderno, no terreno econômico, e laico, aberto e plural, no plano das instituições”, como escreveu na Folha. Para Schüller, as bravatas de Bolsonaro não passam de “conversa fiada” sem consequência prática, que só servem para esquerda e direita brincarem de “bate-boca em torno dos valores”, enquanto o mundo real se articula, no Congresso, em torno de reformas como a da Previdência e ou a minirreforma trabalhista trazida pela MP (Medida Provisória) da Liberdade Econômica. Segundo ele, não há chance real de Bolsonaro conseguir censurar o conteúdo dos filmes para adequá-los a “valores cristãos”, por exemplo. “Incentivos culturais são regidos por lei e a escolha de filmes (felizmente) independe da vontade presidencial”, garante.

Tudo muito normal!, gritam o banqueiro e o professor.

Pena que os fatos não parecem tão dispostos a concordar com o professor. Três dias antes de Schüller publicar seu artigo, a coluna de Ancelmo Gois, no Globo, já haviarevelado que um edital para seleção de filmes de ficção da BB DTVM, subsidiária do Banco do Brasil, perguntava se o filme proposto continha “cenas de nudez ou sexo explícito” e se a obra “faz referência a crimes, drogas, prostituição”. Não há outro nome para isso. É perseguição ideológica. É censura. É aparelhamento do Estado. É tudo, enfim, menos democrático.

E os exemplos não param por aí. Seguindo os exemplos de outros “ditadores sutis” que admira, como os da Polônia, Hungria, Rússia e Filipinas, Bolsonaro persegue jornalistas e estudantes e vem buscando eliminar da gestão pública todas as vozes que o incomodam, do fiscal do Ibama que o multou por pesca ilegal, antes de ser presidente, ao diretor do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Sociais) que ousou denunciar o desmatamento da Amazônia. Nos últimos meses, Bolsonaro interviu como pode nas nomeações dos reitores das universidades federais, esvaziou o Mecanismo de Combate à Tortura e a Comissão de Anistia, vem ensaiando aparelhar a Polícia Federal de um jeito inédito e já deixou claro que, ao contrário dos governos do PT, não tem intenção de respeitar a lista tríplice indicada pelos membros do Ministério Público Federal para o cargo de procurador-geral da República, preferindo nomear para a função um desconhecido com fama de “trevoso”.

Não, não está tudo normal. Mesmo que boa parte da elite brasileira pareça não se importar com a ocorrência de retrocessos democráticos, desde que haja avanço das reformas econômicas liberais, não está tudo normal. A não ser que o padrão almejado de normalidade seja algo como a experiência da ditadura chilena, assassina de vidas e liberdades, mas pioneira na aplicação das ideias neoliberais da Escola de Chicago, uma experiência que o ministro Paulo Guedes vivenciou de perto.

Mas não há exemplo melhor de avanço do autoritarismo do que o aumento nas mortes de jovens negros e pobres das periferias nas mãos da polícia. No Rio de Janeiro de Wilson Witzel (PSL), os policiais já são responsáveis por 38% dos assassinatos, o que significa “uma estatização dos homicídios” no estado. E, na São Paulo de João Doria (PSDB), a cada três pessoas mortas, uma foi vítima da polícia – para saber mais, aguarde uma reportagem que a Ponte publica nesta semana.

Diante de um cenário em que os governantes adultos se comportam como crianças – crianças malcriadas e cruéis, que espancam os coleguinhas menores enquanto comem ococô das próprias fraldas – é um alento que a melhor resposta contra a barbárie tenha vindo das crianças da favela da Maré, que a crueldade do Estado obriga a se posicionarem como adultas, escrevendo ao governo e pedindo que parem de matar a elas, aos seus vizinhos e à sua família.

“Eles esquecem que no meio dessas brigas deles existem moradores, trabalhadores, estudantes e muita tristeza. Você está andando e daqui a pouco está morto. É muita tristeza perder alguém”, escreveu uma das crianças da Maré, numa dessas cartas que são verdadeiros gritos.

Num mundo de adultos enlouquecidos, a única esperança possível de sanidade parece repousar nas crianças. 

Protesto contra cortes na educação, em São Paulo, em 13/8 | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

10 − nove =