Brasil, um país que arde em chamas de cinismo, ódio e perversidade

Jorge Eremites de Oliveira*

Para quem vivenciou e buscou compreender momentos recentes da história nacional, desde ao menos o processo de (re) redemocratização, com o fim do Regime Militar (1964-1985) e a eleição indireta de Tancredo Neves, até as eleições presidenciais de 2018, é com uma mistura de sentimentos e incertezas sobre o futuro que observo vários problemas se avolumarem e afligirem o Brasil no tempo presente: proliferação de notícias falsas no contexto de uma espécie de guerra híbrida; crescimento do desemprego e subemprego; destruição do meio ambiente; violação de direitos dos povos e comunidades tradicionais e de outras “minorias”; retrocessos impostos à educação superior, ciência, tecnologia e inovação; polarização política e ideológica; proliferação de movimentos da extrema direita e ascensão de forças ultraconservadoras ao poder central; privatização de setores estratégicos; ausência de um projeto nacional de desenvolvimento implementado pelo governo federal; escândalos de corrupção e nepotismo; insegurança jurídica; reformas trabalhista e da Previdência que comprometem o futuro de gerações; perseguição a servidores públicos; vingança contra desafetos e vozes discordantes; acusações levianas contra ONGs; balbúrdias a respeito da dinâmica política de outros países; liberação do uso de agroquímicos banidos em outras partes do mundo; formas anacrônicas de justiçamento; desdenho a estudos científicos sérios e apurados; tentativas de censura à imprensa e represálias a jornalistas; etc.

O mundo testemunha a uma espécie de contrarrevolução da imbecilidade e a elevação de idiotas pseudonacionalistas a postos de governantes, ideólogos, parlamentares e influenciadores no Brasil. Não se trata de tragédia ou farsa, mas de cinismo com ares de perversidade e condutas desrespeitosas e incompatíveis com nossa tradição diplomática. Enquanto isso, o país passa por acelerado processo de desindustrialização, diminuição de direitos sociais e de postos de trabalho, além de tentativas grotescas de estrangular instituições federais de ensino superior e agências de fomento à pesquisa, dentre outras ações de lesa-pátria. Nada disso ocorre ao acaso, verdade, tampouco faz parte de um projeto de nação, pelo contrário. Está ligado a um projeto de poder defendido por setores das elites apátridas, estúpidas, ecocidas, genocidas, parasitárias e subservientes ao colonialismo global. São os mesmos setores que nunca aceitaram as mudanças estruturantes protagonizadas a partir da Revolução de 1930 e seus desdobramentos na história republicana. Em um cenário desse tipo, não se pode descartar a hipótese do Brasil estar novamente à beira de mais uma situação histórica de exceção. Mesmo assim, o pulso ainda pulsa, como diz a canção dos Titãs.

No caso da destruição de florestas na Amazônia, assunto que chama à atenção da opinião pública internacional, importa dizer que este é um bioma importantíssimo para o desenvolvimento sustentável do Brasil e à própria existência da humanidade. Ocorre que as florestas tropicais e outras tantas existentes alhures influenciam no clima do planeta, minimizando, por exemplo, os efeitos do aquecimento global. A continuar dessa maneira, a própria produção de alimentos e a exportação de grãos, carnes e outras commodities sofrerão reveses. Definitivamente, não vivemos sozinhos na Terra, e as desastrosas e inconsequentes ações aqui executadas reverberam internamente e mundo afora.

A respeito do bioma amazônico, vale lembrar que a região abrange mais de 5 milhões de km2 na América do Sul e grande parte das áreas preservadas está situada no território nacional do Brasil. Em termos econômicos, suas florestas são mais importantes, valiosas e lucrativas em pé do que derrubadas. Seus solos jovens e sensíveis à degradação não podem mais ser descobertos ou desflorestados para mais dar espaço a pastagens de bovinos, monoculturas de soja, milho etc., minerações clandestinas e outras atividades nocivas ao meio ambiente e a diferentes modos de vida humana. A bem da verdade, a Amazônia e outras regiões não podem mais ser objeto da cobiça de grileiros, os quais buscam transformá-las, ao arrepio da lei, em propriedade privada da terra, incluindo áreas tradicionalmente ocupadas por comunidades indígenas.

Ao contrário do que muitos possam imaginar, biomas sul-americanos, como a Amazônia, o Pantanal, o Cerrado e outros existentes no país, a exemplo da Mata Atlântica, não são meras dádivas da natureza. Também resultam da presença milenar, superior a 12 mil anos, de diversas populações ameríndias. Ao longo de centenas de gerações, povos originários promoveram complexas formas de modificação das paisagens, como, por exemplo, manejos agroflorestais (palmeirais, pequizeiros, matas de araucária etc.) e intervenções nos terrenos para a formação de solos férteis (terras pretas amazônicas, aterros ou montículos de terra no Pantanal e outros). Estabeleceram, pois, relações equilibradas, sustentáveis e sagradas para com os recursos ambientais, e promoveram sofisticados processos de semidomesticação e domesticação de plantas (açaís, mandiocas, frutíferas etc.), dentre outras ações. Significa dizer que a biodiversidade aqui existente também faz parte de um extraordinário legado dos povos indígenas às sociedades nacionais contemporâneas. Vistas no conjunto ou em partes, as florestas são herança cultural associada às trajetórias dos americanos nativos, muitos dos quais também contribuíram, ao longo das guerras verificadas desde tempos coloniais e imperiais, com a definição dos limites do atual território nacional do Brasil.

Diante da realidade suscintamente apresentada, nota-se que o país arde em chamas de cinismo, ódio e perversidade. Neste contexto, torna-se oportuno reconfortar as pessoas parafraseando Mario Quintana, no memorável Poeminha do Contra: Eles passarão… Nós passarinhos! A essas palavras somam a utopia civilizatória defendida por Darcy Ribeiro, em O Povo Brasileiro, que inspira a muitos de nós: “Estamos nos construindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra”.

Oxalá que tudo isso passe rápido e possamos dar as mãos e (re) encontrarmos o caminho para um Brasil próspero, justo, solidário, soberano, sustentável, inclusivo e menos assimétrico.

* Doutor em História/Arqueologia pela PUCRS – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e docente da UFPel – Universidade Federal de Pelotas.

Imagem: Bolsonaro e o incêndio na floresta amazônica. Montagem Revista Fórum

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