Uma democracia sem memória é como um Titanic desgovernado. Lei da Anistia, 40 anos depois, sofre riscos de retrocessos. Entrevista especial com José Carlos Moreira da Silva Filho

Por: Ricardo Machado, em IHU On-Line

Há exatos 40 anos, no dia 28 de agosto de 1979, o presidente João Batista Figueiredo promulgou a controversa Lei da Anistia, que concedeu perdão a todos que cometeram crimes políticoscrimes conexos e crimes eleitorais entre os dias dois de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. A  anistia foi estendida ainda aos que tiveram seus direitos políticos  suspensos, aos servidores públicos ligados à administração estatal, aos  militares e aos dirigentes e representantes sindicais punidos pelos Atos Institucionais e Complementares durante a ditadura militar.

Controversa desde a sua promulgação, a Lei da Anistia é “ambígua”, na avaliação de José Carlos Moreira da Silva Filho, professor na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Se, de um lado, ela foi fundamental no processo de redemocratização do país, de outro, foi seletiva nas punições dos crimes políticos cometidos durante o regime militar. “De modo geral dá para dizer que a lei de 1979 foi, ao mesmo tempo, um marco político do início da redemocratização, foi uma conquista, trouxe também uma ideia de reparação, de reposição, ao estabelecer que as pessoas perseguidas no âmbito das carreiras públicas poderiam retornar aos seus postos de trabalho, mas, ao mesmo tempo, significou um tratamento discriminatório em relação aos perseguidos políticos, ou seja, reverberou a seletividade da perseguição política e também impediu e trouxe um bloqueio para que se pudesse investigar os  crimes praticados pela ditadura e para que eles pudessem ser responsabilizados”, afirma.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Moreira da Silva Filho resgata a história da Lei da Anistia e reflete sobre a sua atualidade depois do trabalho feito pela Comissão Nacional da Verdade – CNV. “Ela tem uma atualidade nessas direções ambíguas que mencionei e continua tendo. (…) Penso que o debate em torno da Lei da Anistia é extremamente atual e necessário, porque ela é uma espécie de símbolo e de referência do próprio debate sobre a qualidade da característica da democracia que o Brasil construiu nesses 30 anos”, diz. E reitera: “Me coloco entre aqueles que veem na rememoração da anistia brasileira e na discussão dela não um tema do passado, mas um tema atual, adiado por muito tempo, e que está sofrendo riscos de retrocessos no cenário que vivemos”. 

José Carlos Moreira da Silva Filho é doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Também é mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. Atua como professor na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS (Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais – Mestrado e Doutorado – e Graduação em Direito). É coordenador do Grupo de Estudos CNPq Direito à Verdade e à Memória e Justiça de Transição e membro-fundador do Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição – IDEJUST, além de membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é a Lei da Anistia?

José Carlos Moreira da Silva Filho — Não podemos esquecer que nós não temos apenas uma Lei da Anistia. A Lei da Anistia à qual se faz referência nesta semana, no marco do dia 28 de agosto, é uma lei que foi promulgada em 1979 durante a ditadura militar. Essa lei trouxe alguns aspectos interessantes. Em primeiro lugar, ela significou, politicamente, um marco que acredito ter sido fundamental sob o ponto de vista institucional para o início do processo de redemocratização no país. Ela significou a definição institucional de uma abertura política que viria a desembocar na  Constituição de 1988. Então, teve esse significado político que vai além do marco institucional, que vem também como resultado de um processo de mobilização social, um dos mais abrangentes que podemos descrever na história do país, porque envolveu a mobilização de setores bastante distintos da sociedade brasileira, desde os trabalhadores nas fábricas, passando pelos trabalhadores no campo, pela intelectualidade, os artistas e estudiosos, por movimentos de mulheres, movimentos estudantis e outros que existiam no período.

bandeira da anistia unificou todos os movimentos sociais brasileiros e, portanto, a questão da anistia teve uma conotação positiva na história brasileira, porque trouxe a ideia ou o significado de fim das perseguições políticas, de início de uma abertura. Essa abertura vinha sendo solicitada através de uma organização que acabou se multiplicando, principalmente a partir dos anos 1970, um dos anos mais intensos. A partir de 1975, foram formados Brasil afora comitês brasileiros de anistia. Esses comitês estiveram em vários estados do Brasil, inclusive no Rio Grande do Sul. Lideranças femininas se destacaram em grande parte porque a pauta da  redemocratização do país, do fim das perseguições políticas, envolveu a atuação de esposas e mães de homens que tinham sido torturados, desaparecidos ou mortos pela ditadura. É interessante que uma das principais lideranças desse movimento foi a senhora Therezinha Zerbini, esposa de um militar perseguido, que mobilizou um grupo de mulheres trazendo essa pauta no Ano Internacional da Mulher. Para muitas das mulheres que participaram dessa mobilização, a ideia do feminismo era vista de maneira pejorativa, como questionamento de costumes, como algo que não era bem a pauta que essas mulheres perseguiam, mas acabou misturando um pouco as coisas.

Lei da Anistia de 1979 foi, ao mesmo tempo, uma reação do governo em relação a essa intensa mobilização nacional, que também vinha conectada a uma mudança do ponto de vista internacional de haver uma menor tolerância a regimes totalitários. Mesmo no campo político de influência dos Estados Unidos, com a presidência de Jimmy Carter e outros políticos, a questão dos direitos humanos passou a ser trabalhada com maior intensidade, e a própria crise econômica dos regimes de segurança nacional também influenciou esse movimento. Tem todo esse contexto que explica uma espécie de reação de abertura, que não era unanimidade: havia a chamada linha dura, havia tentativas de continuidade do endurecimento do regime para evitar essa abertura. Então, foi sempre um equilíbrio delicado que não foi 100% unânime, o que também significou um plano de transição política com maior nível de controle por parte das forças autoritárias.

Ambiguidade da Lei da Anistia de 1979

Sempre que falo da anistia, gosto de destacar sua ambiguidade, principalmente quando pensamos na Lei de 1979, porque ela teve dois ingredientes presentes dentro dela. Por um lado, significou a interrupção da perseguição política em larga escala com a capilaridade que vinha tendo através do sistema nacional de informações, significou o retorno dos exilados e a libertação dos presos políticos, com a diferença de que os  presos que estavam condenados pelos chamados “crimes de sangue” — como se falava à época —, ou seja, os condenados por terem tomado parte na luta armada, não estavam incluídos e ficaram de fora do texto final da  Lei da Anistia. Ao mesmo tempo, aqueles agentes públicos que praticaram crimes contra a humanidade, torturaram, mataram e, portanto, também praticaram “crimes de sangue”, não viriam a ser investigados e, consequentemente, não viriam a sofrer responsabilizações sob o ponto de vista criminal. Então, a seletividade que essa lei estabeleceu era prejudicial àqueles que foram perseguidos políticos, porque ela trazia uma exceção do alcance da Anistia para os casos de pessoas condenadas. Óbvio que as pessoas que estavam condenadas por terem cometido “crimes de sangue” não eram agentes da ditadura, eram apenas os perseguidos políticos. Isso trouxe uma demonstração de controle por parte da ditadura. A sociedade organizada, nos Comitês Brasileiros de Anistia, queria a responsabilização dos torturadores, no entanto, a forma como o governo controlou esse processo impediu que isso viesse a ser incluído na Lei da Anistia de 1979.

De modo geral, dá para dizer que a lei de 1979 foi, ao mesmo tempo, um  marco político do início da redemocratização, foi uma conquista. Trouxe também uma ideia de reparação, de reposição, ao estabelecer que as pessoas perseguidas no âmbito das carreiras públicas poderiam retornar aos seus postos de trabalho, mas, ao mesmo tempo, significou um  tratamento discriminatório em relação aos perseguidos políticos, ou seja, reverberou a seletividade da perseguição política e também impediu e trouxe um bloqueio para que se pudesse investigar os crimes praticados pela ditadura e para que eles pudessem ser responsabilizados; houve essa ambiguidade.

IHU On-Line – Hoje, no dia que se celebram os 40 anos da Lei da Anistia, qual sua atualidade?

José Carlos Moreira da Silva Filho — Ela tem uma atualidade nessas direções ambíguas que mencionei e continua tendo. Por um lado, ela significou um “pressuposto necessário” para a construção de toda uma política de justiça de transição brasileira, semelhante a outras políticas em vários outros países que passaram por regimes autoritários. Ou seja, a Lei da Anistia de 1979 já traz consigo um ingrediente de reposição do período de perseguição política e, inclusive, ela é repetida, em muitos dos seus artigos, na Emenda Constitucional – EC 26/1985, que foi a que chamou a  Assembleia Nacional Constituinte. Ela chama a Assembleia Nacional Constituinte e, ao mesmo tempo, repete os termos da Lei da Anistia de 1979 com apenas uma única mudança: a lei de 1979, quando vai definir que também estariam anistiados os crimes conexos, dá uma definição do que seriam esses crimes conexos. Essa definição é muito pouco precisa e fez com que – até o presente julgamento do Supremo Tribunal Federal – STF  da constitucionalidade dessa lei, em 2010 – o STF ressuscitasse essa interpretação, no mínimo heterodoxa, do conceito de crime conexo, dizendo que conexão criminal seria tudo o que se relacionaria a crime político, de qualquer natureza.

Qual foi a interpretação que a ditadura construiu para a ideia de crime conexo? Que um eventual “crime” que o agente público teria cometido para perseguir quem praticava o crime político ou o crime que é conexo ao político, também seria considerado crime conexo. Isso é algo que não é sustentável em nenhum livro de direito penal ou reflexão acadêmica, teórica ou técnica, do direito penal. Portanto, criou-se um conceito sem, inclusive, dizer, com todas as letras, o alcance que ele teria. Foi um estratagema utilizado para anistiar os crimes dos agentes da ditadura sem assumi-los, sem dizer com todas as letras que estariam anistiados os crimes de tortura, de assassinato, entre outros crimes praticados, inclusive, por agentes públicos.

Essa foi a interpretação que na época da ditadura predominou e que, recentemente, em 2010, o Supremo Tribunal Federal ressuscitou dizendo que é isso mesmo. Ou seja, o STF, em 2010, quando foi julgar uma ação proposta pelo Conselho Federal da OAB, uma arguição de descumprimento fundamental – a 153 – repetiu a mesma interpretação da ditadura. Então, a EC 26/1985 convocou a constituinte e repetiu a Lei da Anistia, mas não apresentou, de novo, a definição de crime conexo e reafirmou que a Lei da Anistia de 1979 foi criada para alcançar os crimes que teriam sido praticados até 1979, não depois.

Caso Riocentro

O caso Riocentro está prestes a ser reaberto. Na época do atentado à bomba que foi praticado por agentes da chamada “linha dura da ditadura”, foi impedido de se avançar na investigação e na responsabilização desse caso, com a desculpa da Lei da Anistia, porque a Lei não valia para frente, mas, sim, só do dia em que foi promulgada — 28 de agosto de 1979 — para trás; e o Riocentro foi em 1981.

interpretação da Anistia de 1979 alcançou uma elasticidade impressionante, inclusive do ponto de vista temporal: ela vale para trás e para frente, vale de maneira muito aberta e generalizada, como uma forma de impedir que as investigações pudessem ir para frente. Esse fato favoreceu muito um ambiente de “deixa para lá”, “já passou”, “águas passadas não movem moinhos”, “vamos colocar uma pedra no assunto”, “vamos virar a página”, “não vamos remexer as feridas”. São muitas as frases de efeito que existem no senso comum para dizer que não vale a pena conhecermos melhor nosso passado porque isso “está no passado”.

Acredito que uma das questões atuais da Lei da Anistia de 1979 está presente, sem dúvida alguma, nessa barreira de esquecimento e de silêncio que se impôs a partir da lei, com a desculpa e a referência institucional dela. Talvez esse seja um dos aspectos atuais mais evidentes dessa herança gerada na Lei da Anistia, bem como as limitações da nossa redemocratização.

Redemocratização

redemocratização também foi ambígua: alterou alguns aspectos, mas outros não foram alterados. Isso é muito coerente com a própria sorte da  Lei da Anistia e da sua ideia. Como uma boa parte da nossa democracia, desse período que chamamos de República Nova, se estabeleceu com a crença de que estávamos num processo ascendente de fortalecimento democrático, as deficiências e os problemas mal resolvidos da lei foram sendo colocados para baixo do tapete, sem o devido enfrentamento. Mas agora nós vivemos um processo social no qual essas questões não conseguem mais ficar onde estavam, estão vindo acumuladas, estão surgindo sem que possamos continuar mantendo-as embaixo do tapete, revelando os desafios que foram postergados, as questões que não foram enfrentadas como desafios atuais.

Penso que o debate em torno da Lei da Anistia é extremamente atual e necessário, porque ela é uma espécie de símbolo e de referência do próprio debate sobre a qualidade da característica da democracia que o  Brasil  construiu nesses 30 anos.

IHU On-Line – Como os trabalhos realizados pela Comissão Nacional da Verdade jogam novas questões sobre a Lei da Anistia?

José Carlos Moreira da Silva Filho — É importante que se diga que a  Comissão Nacional da Verdade – CNV não foi um fenômeno que se deu a partir de si mesmo, um fenômeno isolado. Antes da CNV, tivemos coisas que foram extremamente importantes do ponto de vista social e institucional para criar um ambiente e uma base sobre a qual a Comissão Nacional da Verdade trabalhou. Muito do que a CNV fez não foi descobrir coisas que não se sabia. Normalmente, uma Comissão da Verdade é concebida, imaginada e criada para buscar informações, fatos, narrativas e construções que ainda não estão acessíveis, claras. Isso aconteceu em alguma medida na CNV, mas foi pontual. Ou seja, a CNV não foi uma revelação de pontos que não eram conhecidos. Na época em que saiu o  Relatório da Comissão Nacional da Verdade, em dezembro de 2014, publiquei um artigo na Carta Maior no qual digo que a CNV foi mais uma comissão de sistematização do que uma comissão que tenha trazido novas informações. Mas, ao sistematizar as informações produzidas anteriormente e reuni-las em um relatório com toda a visibilidade política e social que foi gerada à época, contribuiu, sem dúvida alguma, para reforçar a visibilidade dessas informações que muitos sabiam e que já estavam mapeadas.

Antes da CNV, tivemos três grandes momentos de construção, de revelação e informação de documentos da ditadura em termos de violações de direitos humanos. Primeiro, o projeto Brasil Nunca Mais, que veio acompanhado de um esforço de familiares de mortos e desaparecidos para ampliar as análises e as denúncias de torturas. O projeto Brasil Nunca Mais foi construído a partir de cópias, feitas clandestinamente, de processos de perseguição política, principalmente no eixo Rio-São Paulo, e que foram feitas com a proteção do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, com a liderança do Dom Paulo Evaristo Arns. Em 1985 foi publicado um livro sobre isso, o qual teve um impacto imenso. Diria que foi o primeiro grande documento construído e que revelou as violações praticadas pela ditadura com base documental.

Mas este material não é institucional, ou seja, não foi o Estado brasileiro quem constituiu isso, mas os movimentos sociais. Contudo, sem dúvida, esse material foi aproveitado depois quando surgiram as duas grandes comissões de reparação: é interessante perceber que esse processo de enfrentamento do passado autoritário e violento recente no Brasil, que é o processo de justiça de transição, se deu pelo signo da reparação e se confunde no Brasil com a ideia de anistia.

Constituição de 1988, quando fala em Anistia, fala em Anistia no sentido de reparação. O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias no artigo 8º diz: “Estão anistiados os perseguidos políticos”. Se diz ainda que “eles devem ser reparados” e se estabelecem alguns critérios genéricos para isso, os quais ficaram esperando ainda alguns anos para poderem ser detalhados em uma legislação federal, que é a nossa atual Lei da Anistia, a  Lei 2.559/2002, que regulamentou a anistia como reparação, que é o que está na Constituição de 1988.

Antes de surgir essa lei, que é a Lei da Anistia de acordo com a  Constituição de 1988, em 1995, menos de dez anos depois da nova Constituição, surgiu a Lei 9.140, que é a lei dos mortos e desaparecidos políticos. Essa lei também tem um enfoque de reparação. O enfoque dessa lei é reparar as famílias dos mortos e desaparecidos. Já a Lei da Anistia traz a ideia de reparar as pessoas que foram diretamente atingidas por perseguições políticas, não só aquelas que foram presas, torturadas, exiladas ou até mesmo mortas, como também pessoas que foram demitidas e impedidas de conseguir um novo emprego por conta de um tipo de perseguição política – talvez essa tenha sido a mais numerosa e a mais praticada no Brasil. Por isso, a modalidade de reparação implícita nessa lei implica em uma recomposição do trabalho que a pessoa tinha. O trabalho é o critério para a indenização.

Duas comissões

Essas duas leis geraram duas comissões: em 1995 criou-se a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, ligada à Presidência da República, e a Comissão de Anistia. Nenhuma dessas comissões foi criada com prazo para terminar, entre outras razões, por conta de toda a complexidade do processo de acesso à informação pública no Brasil, e porque dentro da disputa de narrativas políticas não se favorecia muito a visibilidade desses crimes e de tudo o que foi praticado. Mas essas duas comissões contribuíram muito para a busca de documentos.

Comissão de Mortos, para poder reparar a família, tinha que delimitar a ocorrência do dano e comprovar que houve a morte ou desaparecimento praticado pelo Estado, de acordo com o que estava estabelecido na Lei 9.140 de 1995. O resultado desse trabalho foi o Relatório Final da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos publicado em 2007. Esse relatório foi a primeira publicação oficial do Estado brasileiro a reconhecer as violências e o contexto violento e violador de direitos fundamentais que a ditadura representou. Entretanto, esse relatório não está fechado porque a cada instante surgem hipóteses e situações que não foram tratadas pela Comissão à época. Então, os trabalhos da Comissão ficam em aberto. Algo que está em aberto até hoje é saber onde estão os desaparecidos e a identificação de ossadas que foram recolhidas, mas que ainda não foram identificadas. Antes de a antiga presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos, Eugênia Gonzaga, ter sido exonerada pelo atual presidente da República [Jair Bolsonaro], ela conseguiu recuperar a informação e resolver o caso do desaparecimento de um ex-perseguido político, através da análise laboratorial e da perícia de ossadas as quais se suspeitava serem de desaparecidos políticos e que foram encontradas na Vala de Perus, em São Paulo. A Comissão Nacional da Verdade também conseguiu fazer isso em alguns poucos casos e trouxe novas informações.

De outro lado, a Comissão de Anistia foi produzindo, em cada um dos processos e através de publicações sobre o seu trabalho, um acúmulo de informações que foram aproveitadas pela CNV, a qual faz menção a isso logo no início do seu relatório: “Nosso trabalho se apoia sobre o trabalho de mais de dez anos executado pelas Comissões de Mortos e Desaparecidos Políticos e de Anistia”.

Então, quando falamos nessas revelações e relatórios, é sempre bom situarmos o relatório da CNV dentro desse contexto de trabalho que já vinha sendo feito por essas outras duas comissões. O impacto da Comissão Nacional da Verdade foi muito grande por causa de um amadurecimento que já estava sendo construído anteriormente. Poderia contar ainda outros fatos paralelos que foram surgindo no mesmo período, que não são da CNV, mas contribuíram para dar visibilidade a ela, como, por exemplo, a condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso da Guerrilha do Araguaia, que ocorreu na mesma época, período em que também o Supremo julgou a constitucionalidade da Lei 6.683 de 1979.

IHU On-Line – O Ministério Público Federal – MPF pediu esclarecimentos à ministra Damares em relação aos membros nomeados pelo presidente Bolsonaro para a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, cujas trajetórias seriam incompatíveis com o cargo. O que esse episódio ilustra sobre a forma como o atual governo trata do tema?

José Carlos Moreira da Silva Filho — Esse episódio ilustra algo que está muito claro antes mesmo de o presidente Bolsonaro ser eleito.  Bolsonaro  nunca escondeu de ninguém que é um defensor da ditadura e da tortura. Nunca escondeu o repúdio dele ao processo constitucional brasileiro, inclusive quando era deputado federal. Dois episódios ilustram isso. Um deles é contado pelo Marcelo Rubens Paiva na inauguração do busto em homenagem ao seu pai, desaparecido até hoje, o deputado Rubens Paiva. Durante a solenidade em que se fazia a inauguração do busto, o deputado  Bolsonaro veio xingando a memória de Rubens Paiva e deu uma cusparada no busto. A outra ocasião eu mesmo vi quando estava num debate na  Câmara dos Deputados sobre a questão do direito à verdade  da  Comissão Nacional da Verdade, que ainda não tinha sido objeto da lei.  Bolsonaro entrou no debate, pegou o microfone e ridicularizou um dos debatedores.

O que estamos vivendo hoje no Brasil é um retrocesso no campo da justiça de transição. Este exemplo que você menciona, a lei e todo o espírito que ela segue em acordo com o que diz a Constituição, que reconhece a ditadura e a necessidade de reparar todos os que foram perseguidos políticos e que considera a tortura insuscetível de graça ou anistia, diz claramente que essas comissões são comissões de reparação e que, evidentemente, é incompatível com a finalidade da comissão a nomeação de membros que sejam contrários à missão que essas comissões assumem do ponto de vista legal e constitucional. Então, não há justificativa para se colocar na Comissão de Mortos e Desaparecidos, especialmente na sua presidência, uma pessoa que faz apologia da ditadura, uma pessoa que questiona o que já foi produzido pela comissão que ela mesmo quer presidir, uma pessoa que quer descartar todo o trabalho feito ao longo de dez anos e que quer estabelecer uma nova direção, a qual é incompatível com a finalidade, o espírito e a letra da legislação que criou essas comissões.

Como é possível colocar na Comissão de Anistia pessoas que defendem as agressões e violações feitas como algo que foi necessário ou defensável? Entre os comissionados na Comissão de Anistia tem um militar, o Luiz Paiva, que é prefaciador do livro do Ustra. Isso revela algo que foi muito bem percebido pelo MP e pela Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos, que está tentando fazer um trabalho isolado no âmbito do MPF, de se contrapor a esses retrocessos. No caso da Comissão de Anistia, inclusive, o MP chegou a judicializar, a ingressar com uma ação no âmbito da justiça federal, pedindo que o juiz desse uma liminar, uma decisão urgente de caráter provisório, para evitar que os novos membros da  Comissão de Anistia pudessem ser empossados.

O juiz que analisou o pedido, de maneira cínica, argumentou que em princípio não haveria problemas em ter militares na Comissão de Anistia, que não deveria haver preconceito pelo fato de eles serem militares. Até certo ponto dá para concordar com esse argumento porque os militares sempre participaram da Comissão de Anistia. O que o juiz não incluiu na sua fundamentação é que os militares em questão, os que foram empossados recentemente na Comissão de Anistia, são militares que defendem a ditadura.

O problema não é ser militar, mas defender a ditadura, relativizar as violações praticadas e, em muitos casos, indeferir os pedidos que estão bem fundamentados no sentido de danos que foram causados às pessoas por ações políticas do Estado. Essa decisão, infelizmente, segue a mesma linha de leitura que o atual governo faz, de retrocesso nas políticas de justiça de transição. O atual presidente chegou, inclusive, a comemorar a data do golpe militar. É essa direção que está colocada neste momento histórico do país.

IHU On-Line – Ainda hoje há pessoas que cometeram crime de tortura durante a ditadura que poderiam ser responsabilizadas? Como seria essa responsabilização?

José Carlos Moreira da Silva Filho — Sim, existem, e a responsabilização pode se dar em diferentes esferas: criminal, civil e administrativa. Nenhuma das pessoas que se envolveu nesses delitos que, por definição, são crimes imprescritíveis, foi responsabilizada. Cada país tem um processo de transição diferente do outro e um dos elementos que é inerente ao processo de justiça de transição é o da responsabilização.

Portugal, depois da ditadura de Salazar, focou na responsabilidade administrativa e fez uma depuração dos funcionários públicos que teriam tomado parte nas ações da ditadura. Esses funcionários foram expurgados e não continuaram trabalhando no serviço público. Esse tipo de ação não aconteceu no Brasil. Existe apenas um caso pontual que aconteceu no governo Sarney, quando a Bete Mendes foi numa solenidade no Uruguai e se deparou com o seu torturador, o coronel Ustra, que tinha um cargo diplomático no governo Sarney. O que aconteceu em razão do escândalo que se seguiu por conta da denúncia que ela fez por estar diante do seu torturador? Ele foi retirado do seu cargo. Esse foi um caso pontual, mas de modo generalizado, políticos, policiais e delegados que defenderam e se envolveram com a ditadura, continuaram exatamente onde estavam. Então, não houve responsabilização administrativa.

Também não houve responsabilização civil dessas pessoas. O máximo a que conseguimos chegar foi numa decisão judicial concluída nas três instâncias do Judiciário, de uma ação declarativa, uma ação que pedia que o Estado declarasse a existência de uma relação jurídica, mas sem consequências indenizatórias ou punitivas de qualquer ordem. Foi a única forma que acabou se encontrando, e isso ocorreu numa ação específica movida pela  família Teles para dizer que alguém foi torturado na ditadura, antes que viesse a Comissão da Verdade e dissesse isso com todas as letras. Foi o que aconteceu no caso do Carlos Alberto Ustra também.

Em 2008, uma ação de primeira instância declarou Ustra torturador da  Leila Teles. O Tribunal Regional Federal confirmou a decisão de primeiro grau e o Superior Tribunal de Justiça, que quase fez perder essa decisão, por fim, a confirmou. Logo em seguida, Ustra faleceu e foi o único torturador reconhecido pelas instâncias brasileiras, mas sem nenhuma responsabilização reconhecida. A indenização foi assumida pelo Estado brasileiro, porque quando um agente público pratica um dano no desempenho da sua função, não é só o agente que é o responsável, mas o Estado. Depois que o Estado indeniza a pessoa que sofreu o dano, ele pode entrar com uma ação de regresso pedindo a responsabilização daqueles agentes, o que implica uma indenização pecuniária, econômica, aos cofres públicos, e que implica na perda das suas funções públicas administrativas. O MPF tentou fazer isso no caso do Ustra e no caso do Maciel também, no entanto, quando foi pautado o debate sobre a lei de anistia no Supremo, essa ação ficou suspensa e depois que o Supremo decidiu pela  constitucionalidade da Lei da Anistia de 1979, o juiz responsável pela causa extinguiu a ação, o que, tecnicamente, não era muito adequado, porque a discussão no Supremo envolvia o âmbito penal e não o civil.

É importante sempre lembrar esse caso porque quando surgem no noticiário os valores que o Estado brasileiro tem desembolsado para pagar indenizações para pessoas que foram perseguidas políticas, sempre se estigmatiza esse gasto, dizendo que o Estado está gastando muito dinheiro, que esse gasto é desnecessário. Mas o que se esquece de dizer é que quem deu causa a esses danos, os agentes, esses não foram responsabilizados em nada. Além de não terem sido responsabilizados, continuaram recebendo salários e pensões. Os valores pagos para esses agentes superam os valores pagos a título de indenizações para as pessoas que eles perseguiram.

Ausência de responsabilização

A ausência da responsabilização é muito nociva para o país em vários sentidos. As pessoas esquecem que só há reparação porque alguém violou a lei, mas esses não aparecem. Essa responsabilização é uma demanda, é algo que está pendente no nosso processo. Há muitas pessoas que praticaram crimes e que têm idades bem inferiores à do ex-presidente Lula, que está preso. Esse argumento de dizer que a pessoa tem uma idade avançada também não pode convencer a sociedade, porque a depender de quem seja a pessoa, ou do que ela tenha feito na opinião de alguns, se defende a sua responsabilização ou não.

Conseguimos recentemente furar esse bloqueio – o poder Judiciário tem bloqueado sistematicamente essas possibilidades – no caso da Inês Etienne Romeu, que foi a única sobrevivente da Casa da Morte, em Petrópolis. As inúmeras ações que o MPF detém, ações que são respaldadas na Corte Interamericana de Direitos Humanos, estão sendo bloqueadas pelo  Judiciário através de vários instrumentos jurídicos. Conseguimos agora uma primeira ação, na qual o Tribunal Regional Federal aceitou a denúncia feita pelo MP. Essa decisão foi reformada no TRF, que autorizou a continuidade do processo de responsabilização de um ex-militar que era caseiro da casa de Petrópolis e que é acusado de ter cometido seguidos estupros da Inês Etienne Romeu.

Respondendo a tua pergunta, tem, sim, muitas pessoas que poderiam ser responsabilizadas e juridicamente há fundamentos, há decisões internacionais, há atuação do MP nesse sentido, há decisões do Judiciário brasileiro favoráveis a isso. Esses crimes diferem dos crimes comuns: são crimes internacionais e imprescritíveis e não podem ser concebidos e pensados da mesma maneira que um crime comum, porque por trás dos agentes que cometeram crimes há uma estrutura institucional de uma ditadura, de um Estado instrumentalizado para aquela prática, o qual continua existindo para impedir o reconhecimento daquele fato e a sua apuração. Por isso, o time de reconhecimento desses crimes e a responsabilização deles não pode ser o mesmo time do crime comum.

Como poderíamos esperar que o Estado, nos primeiros anos da República Nova, iria investigar os crimes cometidos na ditadura, se os agentes que fariam as investigações seriam os mesmos que estavam envolvidos naquelas práticas? Como não mexeram nos lugares de poder, obviamente seria muito difícil mover qualquer processo na época, porque houve anos de bloqueio, o qual começou a ser minimamente rompido no campo institucional no início do século XXI. Cada sociedade tem um tempo para começar a fazer isso, mas o Brasil foi um dos últimos a fazer isso no Cone Sul. Além disso, também temos os problemas gerados por essa demora.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

José Carlos Moreira da Silva Filho — Apenas reafirmo a ideia de que uma  democracia sem memória é como um Titanic desgovernado. Precisamos lutar contra essa tendência, que é própria da modernidade, de querer pensar sempre para frente, no sentido de esquecer o que veio antes e de achar que o progresso é inevitável e linear; não é. Se formos pensar numa sociedade mais justa e menos violenta, vamos olhar para trás e ver que não houve muito progresso. Então, temos que nos preocupar com isso que sempre volta. E se é algo que sempre volta, é porque não foi devidamente enfrentado e reconhecido. Só podemos lidar com isso olhando para trás, para o passado, reconhecendo os avanços, mas também reconhecendo o que não avançou.

Para podermos chegar nos pontos cegos da nossa sociedade, temos que ter esse compromisso de conversar com o passado e de saber que a interpretação que temos do passado é determinante para o nosso presente e para o nosso futuro. Se não fizermos isso, andamos às cegas. Um país violento como o Brasil clama por essa atitude. Nesse sentido, me coloco entre aqueles que veem na rememoração da anistia brasileira e na discussão dela não um tema do passado, mas um tema atual, adiado por muito tempo, e que está sofrendo riscos de retrocessos no cenário que vivemos.

Famílias de mortos e desaparecidos pedem anistia para presos políticos / Arquivo

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