Justiça responsabiliza Funai e União por violações contra povos Tenharim e Jiahui na ditadura militar

Sentença atende pedidos do MPF em ação civil pública; medidas incluem proteção aos locais sagrados, instalação de polo de saúde e pagamento de R$ 10 milhões por danos morais coletivos

Procuradoria da República no Amazonas

A Justiça Federal no Amazonas deu um importante passo em direção à reparação dos danos causados aos povos indígenas pelo Estado brasileiro durante a ditadura militar ao condenar, a pedido do Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a União pelas violações contra os povos Tenharim e Jiahui – que fazem parte do conjunto de povos que se autodenominam Kagwahiva – durante a abertura da BR-230 (rodovia Transamazônica), entre 1969 e 1974.

Além do pagamento de R$ 10 milhões por danos morais coletivos, a sentença obriga os órgãos a implementarem medidas de proteção aos locais sagrados a serem indicados pelos próprios indígenas e a promover campanha de conscientização quanto aos direitos indígenas junto aos municípios de Humaitá, Manicoré e Apuí, com produção de material didático e criação de Centro de Memória Permanente sobre a história e a cultura dos Tenharim e Jiahui, no prazo de seis meses. A ação também é acompanhada pelo Grupo de Trabalho (GT) Povos Indígenas e Regime Militar, da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF.

De acordo com a sentença, é fato confirmado que a construção da BR-230 ocorreu sem qualquer licenciamento ou estudo prévio de impacto ambiental. Nenhuma das partes do processo nega os danos causados aos povos indígenas, apenas se limitaram a dizer que a rodovia teria sido construída há 40 anos. A Justiça ressalta, no entanto, que todo dano ambiental é imprescritível – não deixa de ser passível de punição com o passar do tempo – e seus efeitos são permanentes, dando razão aos argumentos do MPF na ação apresentada em 2014.

A sentença considera a responsabilidade da Funai por omissão, já que deixou de agir diante da ameaça e até mesmo da consumação dos danos ambientais e morais coletivos provocados pela construção da rodovia aos indígenas. A União, por ser titular do domínio das terras indígenas, tem o papel de garantir o respeito aos direitos indígenas, principalmente em relação à integridade de sua propriedade, dos seus costumes, da sua ancestralidade e do seu modo de vida sociocultural, responsabilidade que igualmente deixou de ser cumprida no caso da Transamazônica. “Jamais o governo federal se preocupou com a preservação de locais sagrados, cemitérios e espaços territoriais imprescindíveis ao sentimento de pertencimento dos povos Tenharim e Jiahui”, afirma a Justiça.

Em razão de terem colaborado, por omissão, para o genocídio que quase dizimou os povos Kagwahiva, a Funai e a União também foram condenadas a promover, no prazo máximo de seis meses, a instalação definitiva de polo-base específico da saúde indígena nas terras dos Tenharim e Jiahui, como a lotação de equipe multidisciplinar e a destinação de medicamentos adequados, de acordo com o previsto pela Secretaria de Saúde Indígena (Sesai).

Há ainda determinação de realizar reforma das escolas das aldeias Coiari, Taboca e Mafuí e construção de novas unidades educacionais indígenas, no prazo de um ano, conforme indicação dos indígenas, com contratação permanente de professores e desenvolvimento de processos próprios de aprendizagem em todas as aldeias.

A ação tramita na 1º Vara Federal do Amazonas, sob o número 0000243-88.2014.4.01.3200. Há possibilidade de recurso em relação à sentença.

Segunda condenação – Esta é a segunda sentença da Justiça que reconhece os impactos negativos causados ao território e ao modo de vida tradicional desses povos por obras da rodovia Transamazônica (BR-230). Na primeira delas, proferida em março de 2017 contra o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), também houve condenação ao pagamento de indenização por danos morais coletivos no valor de R$ 10 milhões e obrigação de recuperar as áreas degradadas pelas obras da rodovia realizadas sobre as terras indígenas Tenharim Marmelo e Jiahui, em trecho próximo ao município de Apuí, além de outras medidas como a recomposição florestal na área de preservação permanente do igarapé que teve o curso alterado pelas obras e o reflorestamento com espécies nativas para compensar o desmatamento realizado no passado.

A atuação do MPF no caso começou em abril de 2013, após reunião com lideranças das etnias Tenharim e Jiahui. A partir dos relatos apresentados pelos indígenas, o MPF no Amazonas instaurou inquérito civil público para apurar a responsabilidade do Estado Brasileiro por possíveis violações de direitos humanos cometidas contra os povos indígenas durante a construção da Transamazônica, no período da ditadura militar.

Durante a segunda edição do projeto MPF na Comunidade, em junho daquele mesmo ano, representantes do MPF estiveram na terra indígena Tenharim Marmelo, quando constataram “in loco” os prejuízos e danos sofridos pelos povos Tenharim e Jiahui em decorrência da existência da rodovia em seus territórios e colheram relatos dos índios sobre o caso. Na ocasião, foi elaborado um laudo antropológico com o fim de subsidiar as ações a serem tomadas pela instituição.

Mortes e destruição de locais sagrados – Na ação julgada recentemente, o MPF reafirmou que a construção da estrada causou danos ambientais, danos socioculturais e dano moral coletivo, gerando prejuízo permanente aos povos indígenas que habitam a região. A falta de preocupação quanto à sustentabilidade gerou prejuízos quanto ao uso do solo para atividades agrícolas, poluição atmosférica, acúmulo de lixo, redução da fauna – implicando novas readaptações nas atividades de caça –, desmatamento e alteração dos cursos d’água.

No âmbito sociocultural, o período da construção da rodovia gerou um impacto de grandes dimensões, quando houve forte contato interétnico, causando mortes em decorrência de doenças levadas pelos operários. Além disso, o MPF aponta que a “pacificação” promovida pela Funai e o recrutamento para o trabalho nas obras causou forte desestruturação no grupo indígena, que, acuado por conta das atividades de tratores e aviões no local, deixou de promover maiores deslocamentos para não abandonar os seus territórios sagrados.

Os Tenharim não abandonaram a região, tendo se deslocado do Rio Marmelo para as margens da rodovia justamente para estarem próximos de seus territórios sagrados. Ainda assim, a promoção do desmatamento e elaboração do traçado da rodovia sobre locais sagrados para os indígenas representou nova violação de seus direitos. Já o povo Jiahui sofreu grande diminuição, chegando a contar, às vésperas da demarcação da terra indígena, com apenas 17 pessoas.

Foto: Raphael Cortezão – Ascom MPF/AM

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