Carta a Madame Macron: os Xikrin e as almas sebosas. Por José Ribamar Bessa Freire

No Taqui Pra Ti

“Você não presta, ninguém é seu amigo / A solidão vai ser o seu castigo” (Johnny Hooker – Alma sebosa)

Rio de Janeiro, 01 de setembro de 2019

Chère Madame Brigitte Macron

Saudações

Peço desculpas pelas ofensas do presidente do meu país, o capitão de artilharia e paraquedista Jair Bolsonaro, à primeira dama da França, professora de literatura, diplomada em letras clássicas, mãe e avó de três filhos e sete netos. Ele debochou no facebook de sua idade, inteligência e beleza, o que doeu nas profundezas do meu útero coletivo compartilhado com mãe, nove irmãs, três netas, companheira, filha, primas, sobrinhas, alunas, amigas, colegas de trabalho e leitoras. Em nome de todas nós, aqui fica essa singela homenagem.

Almas sebosas, machões obtusos e até feminicidas existem no Brasil e na França, mas nenhum deles, falando em nome do nosso país, arrotou tanta vulgaridade ao assumir a governança. Desde Tomé de Sousa, em 1549, todos sempre respeitaram a liturgia do cargo, até mesmo Dom João VI caricaturado por sua falta de higiene e pelos flatos à mesa de jantar. Hoje a pátria mãe gentil é presidida por um xexelento Trump de igarapé, sem compostura, despreparado, misógino, que como parlamentar já havia agredido publicamente várias brasileiras. A senhora, acredite, está em boa companhia. Quer ver?

Ele chamou de “vagabunda” a deputada Maria do Rosário, desrespeitou a senadora Marta Suplicy, ofendeu a deputada Benedita da Silva, insultou a advogada Joênia Wapichana, discriminou a cantora Preta Gil, injuriou a ministra Eleonora Menicucci, sugeriu que a presidente Dilma era “sapatona” e desacatou a senadora Marinor Brito, tudo isso publicamente. Especializou-se em agredir mulheres. Diz-me quem ofendes e eu dir-te-ei quem és: alma sebosa.

Mesmo depois disso foi eleito com votos inclusive de mulheres: envenenou com fake news e sequestrou mentalmente 57 milhões de eleitores, muitos hoje arrependidos pagando caro pelo erro. Investido do poder, exporta agora suas agressões, mediocridade e falta de decoro. Zombou do chanceler da França com sua “urgência capilar” e investiu contra a primeira dama. Cada vez mais a diplomacia brasileira se isola do mundo e vira capacho do Trump.  

Bibi e Bobo

Madame Macron, aqui no Brasil pouco sabemos de suas atividades. Procurei me informar. Li que apoia mulheres e crianças vítimas de agressão sexual e violência doméstica, que é presidente da Fundação Hospitais de Paris, que tem se pronunciado contra o aquecimento global, que está engajada na inclusão dos deficientes físicos e que criou duas escolas para adultos sem diplomas, onde vai ensinar francês e literatura. Ciente de seu “currículo Lattes”, tomo a liberdade de tratá-la pelo apelido carinhoso de Bibi, usado no seu círculo familiar e de amigos.

Pois é, Bibi, me diz, menina, o que esperar de um governante que publica no twitter o vídeo em que uma pessoa urina sobre a outra exaltando o golden shower? Qual o equilibro emocional e o nível intelectual e moral de quem acha que mulher que considera feia “não merece ser estuprada”, que debocha da luta ambientalista recomendando que se faça cocô um dia sim, outro não? Aliás, ele próprio não segue tal recomendação, pois fala um dia sim e o outro também. O humor dele fede. Sei, Bibi, que você está vagando e andando para as ofensas do Bobo, mas nós não.

Bobo é um trapaceiro: transforma verdade em mentira e mentira em verdade. Foi assim com a jornalista Miriam Leitão e Fernando Santa Cruz, torturados na ditadura. Chamou a primeira de mentirosa e jurou que o segundo foi morto por seus próprios companheiros. Um escárnio. Desmontou a fiscalização do IBAMA e rejeitou as denúncias do ICMbio e depois culpou as Ongs pelos incêndios na Amazônia, com ambientalistas pedalando bicicletas na floresta portando baldes de gasolina. Negou os dados registrados por satélite e acusou de mentirosos e antipatrióticos pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), cujo diretor exonerou. Espalha mentiras nas redes sociais. Atribui aos outros os seus próprios pecados: para explorar o nacionalismo dos ingênuos, acusa os índios de quererem vender suas terras aos americanos, quando os índios não possuem título de propriedade sobre elas.

Ele jura que luta contra a corrupção, mas intervém em órgãos federais para impedir que investiguem o filho Flávio e o desaparecido Queiroz, além de manter no cargo o ministro do Turismo implicado no laranjal do PSL. Ele mente, mente, impune-mente. Rejeita a realidade, execra a ciência, conspurca a política, sataniza seus adversários e com isso bloqueia o debate sobre o destino do país. Nesta questão, Bibi, teu marido Macron tem razão: O Bobo é um mentiroso, um tremendo cara-de-pau.  

Os Xikrin

Chamo tua atenção, Bibi, para as inverdades sobre os índios que reclamam solidariedade. Pressionado por manifestações dentro e fora do Brasil, Bolsonaro reuniu com os governadores da Amazônia nesta terça (27) para tratar das queimadas, quando incriminou os índios por ocuparem terras que ele quer ver exploradas pelo agronegócio e por mineradoras americanas: “Índio não fala nossa língua e consegue ter 14% do território do Brasil” – disse, criticando governos anteriores que cumpriram a Constituição e demarcaram as terras indígenas.

Desinformado, só diz besteira. Quem não fala “nossa língua” é ele. O Censo do IBGE de 2010 mostra que 76.9% dos índios falam o português, a maioria como bilíngues com competência em uma das 274 línguas indígenas que fazem parte do patrimônio cultural do país e da humanidade. Suas terras foram usurpadas e o pouco que sobrou pertence à União, cabendo-lhes o usufruto permanente garantido pela Constituição. Os índios são comprovadamente os maiores defensores da floresta.

Nesse sentido, é exemplar a ação recente registrada na Folha de SP (27/08), executada pelos Xikrin – um povo de língua Jê, com mais de mil pessoas que vivem em aldeias localizadas às margens do rio Bacajá, no sul do Pará. Suas terras legalmente demarcadas foram invadidas por grileiros que estavam desmatando a área para plantar pasto estimulados pelo discurso de Bolsonaro, conforme revelaram ao líder Bekàrã. Denúncias foram feitas, mas o poder público se omitiu de proteger a floresta e os índios. Eles, então, no sábado (23) confiscaram espingardas e motosserras e expulsaram os invasores.

Para que saiba quem são os Xikrin do Bacajá, te recomendo, Bibi, ler a tese defendida na semana passada por Camila Boldrin Beltrame na Universidade Federal de São Carlos (SP). A leitura te fará erguer a voz em defesa dos povos indígenas. E embora – me desculpa – teu marido não seja politicamente flor que se cheire, pode ser convencido a defender os povos da floresta. É que quando Bolsonaro chama de esquerdista alguém de direita – e por isso torna-se motivo de galhofa – o dito cujo, no caso Macron, deve pertencer pelo menos a uma “direita civilizada”.

Quanto às ofensas a você e a outras mulheres, só nos resta usar a linguagem apropriada do Charlie Hebdo:  Bolsonaro é um ‘con dégueulasse”, não representa a alma brasileira, que não é sebenta. É pequeno e mesquinho demais para o cargo. Ele devia aprender a tratar as pessoas, especialmente as mulheres, como Berto, o refinado motorista que mudou a rota do ônibus em Salvador para levar a turista francesa Marie Françoise à Baixa do Sapateiro. Se tiver tempo, leia essa história sobre a alma brasileira contada em 2016. (AQUI).  

É isso aí.

Veuillez agréer, Madame Bibi, l’expression de mon profond respect.   

Amos. Atos. Obros.

Taquiprati.

Ah, já ia me esquecendo: Pour toi, Bibi, je suis Babá. É assim como sou conhecido no bairro de Aparecida, em Manaus. Pode me chamar, Bibi, de Babá.

P.S. 1 Camila Boldrin Beltrame: “Sobre a pele, papéis e paredes: a escrita entre os Xikrin do Bacajá”. Tese de doutorado em Antropologia Social defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos em 21/08/2019. Banca: Felipe Ferreira Vander Velden (orientador), Artionka Capiberibe, Geraldo Andrello, Edmundo Peggion e José R. Bessa.

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