Só a invenção política nos livrará de Bolsonaro

Barbaridades do presidente têm lógica: apelar à religião para adorar o deus-mercado e eliminar a dissidência. Cabe construir novos horizontes: descolonizar projetos, incentivar mandatos coletivos e participação para além das eleições

Por Uribam Xavier, em Outras Palavras

1 – Um candidato autoritário

Quando Bolsonaro fez campanha política declarando que estávamos em guerra e, portanto, que o seu governo iria metralhar ou eliminar fisicamente os seus adversários, ele praticou uma atitude totalitária na qual afirmou, claramente, a promessa de eliminação do outro e das diferenças. O silêncio das nossas instituições e a naturalização com que a sociedade vem aceitando declarações do tipo e, até mesmo, as réplicas produzidas pelo então Presidente da República em suas redes sociais, podem ser um indicativo de certo grau de autoritarismo social, uma aposta perigosa da intolerância que reflete a sedimentação de uma cultura autoritária.

Como presidente, em visita ao Piauí, no dia 15 de agosto de 2019, ao criticar gratuitamente as esquerdas, em discurso público, afirmou: “nós vamos acabar com o cocô no Brasil. O cocô é essa raça de corruptos e comunistas”. A cultura autoritária, da qual Bolsonaro é um catalizador neste momento político do nosso país, é de caráter sacerdotal e militar, uma vez que se fundamenta na crença de que existe uma verdade única e absoluta da qual eles são portadores e guardiões. Assim, se eles são os únicos portadores e guardiões da verdade, as diferenças e a visão de mundo dos outros só podem ser mentira danosa e, como mentira danosa, não podem existir, cabendo-lhes, como justiceiros, eliminar os mentirosos e fazer uma limpeza racial e cultural em nome da nação e de Deus, o qual, em última instância, são eles mesmos e os seus interesses.

Essa doutrina totalitária os cega a ponto de não perceberem que se eles e outros existem, e se suas existências são marcadas por diferenças, eles são os outros dos outros. Logo, por que os outros, ao olharem para eles, pelo princípio da igualdade, não teriam o direito de eliminá-los, já que eles serão percebidos, também, como diferentes? Por que o totalitarismo nega a possibilidade de ser tratado como igual pelo diferente? Uma mente totalitária não suporta que alguém – que ele considere inferior, diferente, tal como o negro, o índio, o pobre, a mulher, o judeu, o homossexual, a lésbica, o deficiente físico, entre outros – possa lhe dizer: “sou igual a você, sou diferente”. Por isso, acha que o outro é um subordinado, não pensa que possa ser tratado da mesma forma que trata o outro, ou seja, com violência. Diante desse fato, somos desafiados à busca de outros horizontes para o país.

Com a campanha política para a presidência da república em 2018, e a vitória do Bolsonaro, a vida política no país aponta para mudanças profundas: a eliminação da polarização entre o centro e o centro esquerda para uma polarização entre centro/esquerda e extrema-direita. No entanto, a maior mudança é a introdução de um governo teocrático em substituição a uma prática de governo fundamentada em valores do liberalismo político, mesmo que alguns considerassem a cultura política liberal no Brasil como uma ideia fora do lugar, e em práticas voltadas para inclusão social e para a distribuição de renda direta (por meio de uma política de valorização real dos salários) e indireta (por meio de programas de políticas públicas).

2 – Um governo teocrático

A visão teocrática de Bolsonaro já estava estampada no seu mote de campanha: “O país acima de tudo. Deus acima de todos”. Na sua primeira fala como presidente, já anunciou: “Faço de vocês minhas testemunhas de que esse governo será um defensor da Constituição, da democracia e da liberdade. Isto é uma promessa, não de um partido, não é uma palavra vã de um homem, é um juramento a Deus”. Portanto, aqui, Bolsonaro Messias não faz juramento algum ao seu eleitorado ou ao chamado povo brasileiro. Diz que o seu eleitorado é testemunha do juramento que ele faz a Deus.  Quando é na hora do “pega para capar”, ou seja, de falar sobre como administrar o país, ele disse: “Não sou o mais capacitado, mas Deus capacita os escolhidos”.

Bolsonaro é disseminador de um comportamento teocrático. Sua formação é sacerdotal (religiosa) e militar, ou seja, formado por culturas que são hierárquicas, autocráticas e avessas à democracia. Não existe exército e nem religião democráticas, todas são autocráticas. No exercício, a síntese do domínio é: “manda quem pode e obedece quem tem juízo”. A obediência e a violência são instrumentos para manter a ordem e a disciplina.  Na religião, o domínio acontece a partir da crença de que o saber é uma revelação para poucos, ao mesmo tempo em que o poder pertence aos escolhidos. Quando há um questionamento, há um saber, e sempre se atribui a quem pensa diferente que sua opinião é apenas uma interpretação, como se a visão predominante não fosse, também, uma interpretação e, assim, se desqualifica a interpretação diferente e se reestabelece a interpretação dominante.

Na política, a lógica do teocrático, militar-religioso, como a de Bolsonaro, significa a implantação de um governo que legitima a banalidade do mal: o estabelecimento de um comportamento de guerra. Na guerra se elimina o opositor, eliminam-se as diferenças. A guerra é um jogo de soma zero em que: ou se ganha tudo ou se perde tudo. É a licença autoritária para que se possa pedir aos alunos, por eles doutrinados, que denunciem, em um gesto tirânico, professores que preguem ideias diferentes da doutrina da “escola sem partido”, onde “guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força” (George Orwell). É o uso da violência e da corrupção como forma de eliminar a violência e a corrupção atribuída aos outros

O discurso de posse do Presidente foi vazio de propostas para o bem-estar e o futuro do país, mas, esclarecedor da sua ideologia política e da sua doutrina religiosa.  Bolsonaro inaugura um modelo de governo ideológico fundamentado numa doutrina de combate a um modelo de sociedade baseado na distribuição de renda e riqueza que, só na concepção dele e de seus ideólogos, teria como representante o Partido dos Trabalhadores (PT). O discurso do Bolsonaro é simplista, porém, tem se mostrado eficiente para manipular um conjunto de eleitores que não pensam a vida a partir da política, mas, a partir de suas necessidades, de suas consciências manufaturadas pela mídia e de seus medos: a crise econômica vivida pelo país é fruto exclusivo da corrupção praticada pelo PT; a violência na sociedade é fruto da incompetência dos governos de esquerdas e de sua política de Diretos Humanos a qual significa defender bandidos; a crise moral é alimentada pelos grupos feministas e  homossexuais que não valorizam a família cristã; pelos “sem teto” e “sem terra”, os quais não respeitam a propriedade privada; e pelos povos índios e quilombolas, que são preguiçosos e ocupam grandes quantidades de terras, mantendo-as improdutivas.

Para manter os seus seguidores, religiosos neopentecostais, os atravessados pelo medo da violência e os tocados de forma moralista pelo discurso da corrupção, Bolsonaro defende a sua doutrina totalitária com o nome de democracia e submeteu-se à vontade dos mercados: financeiro, agronegócio e dos meios de comunicação. Do mercado dos meios de comunicação ele tem o silêncio sobre os seus atos de corrupção envolvendo os seus familiares e assessores e sobre a sua visão fascista. São explícitos o apoio e a conivência dos comentaristas políticos das TVs, rádios e jornais impressos. Na TV Globo News, por exemplo, os comentaristas sempre que divulgam algo negativo praticado pela família de Bolsonaro, e dos seus indicados para ocupar cargos públicos, são macios nos comentários ou tratam como fatos irrelevantes argumentando que o PT também fez o mesmo quando estava no poder.

Apelando sempre para o nome de Deus, Bolsonaro esconde que na sociedade capitalista Deus é o mercado. Em Bolsonaro, estão incrustados dois deuses: um imaginário, sua doutrina teocrática e totalitária; e o outro, material, o mercado capitalista. O Deus Mercado não perdoa os que não sabem o que fazem, os que não têm condições de se virarem sozinhos, os que não se corrompem em um processo violento de competição na guerra de todos contra todos. O Deus Mercado é essa coisa voraz em que apenas 1% da população mundial acumula o montante de 99% de todas as riquezas produzidas socialmente no planeta e que condena, por meio de reformas trabalhistas, reformas da previdência, privatizações, redução de direitos, sucateamento das políticas públicas, trabalho escravo e o uso tecnológico aplicado à produção e ao estímulo de consumo supérfluo, levando 99% da população do planeta a viver com apenas 1% da riqueza produzida socialmente. Uma coisa é certa, Bolsonaro é homofóbico, misógino, racista e mentiroso, mas o mote da sua campanha e do seu governo é verdadeiro: “O país acima de tudo. Deus acima de todos”. O Deus Mercado sorri, mas não tem céu para oferecer, tampouco salvação ou recompensa para o país e nem para os 80% da população brasileira que ganha entre zero até três salários mínimos.

3 – O projeto “O Caminho da Prosperidade”

O Projeto O caminho da Prosperidade – Proposta de governo constitucional, eficiente e fraternodiz: “Propomos um governo decente, diferente de tudo aquilo que nos jogou em uma crise ética, moral e fiscal. Um governo sem toma lá-dá-cá, sem acordos espúrios. Um governo formado por pessoas que tenham compromisso com o Brasil e com os brasileiros. Que atenda aos anseios dos cidadãos e trabalhe pelo que realmente faz diferença na vida de todos. Um governo que defenda e resgate o bem mais precioso de qualquer cidadão: a liberdade. Um governo que devolva o país aos seus verdadeiros donos: os brasileiros”.

O Projeto O Caminho da Prosperidade, do governo de Bolsonaro, além de ser um continuador do Projeto Uma Ponte Para o Futuro, incorpora em sua agenda um projeto social conservador que reproduz uma visão teocrática do mundo que está enraizado nas elites, em parte das camadas da classe médias e populares. As principais premissas desse projeto social teocrático são as seguintes:

  • Nos últimos 30 anos o marxismo cultural e as suas derivações como o gramscismo se uniram às oligarquias corruptas para minarem os valores da Nação e da família brasileira. Precisamos nos libertar;
  • No Brasil a sociedade é intrinsecamente corrupta, todos os partidos e políticos são corruptos e os governos se sustentam por meio da corrupção e da compra de votos, por isso a necessidade de eleger pessoas que se declaram como não políticas e se colocam contra o sistema;
  • A maioria da população brasileira, devido as suas crenças econômicas e culturais, está sujeira a ser manipulada por indivíduos populistas, socialistas e comunistas, os quais fazem promessas irrealizáveis e que levam o país ao atraso;
  • Os direitos constitucionais e legais pelo Poder Judiciário para combater a corrupção (conduções coercitivas, prisões provisórias por longos períodos sem julgamentos, vazamentos seletivos de informações sem provas com objetivos políticos) são aceitos e justificados como necessários;
  • As investigações da Lava Jato teriam revelado que o partido que promoveu a corrupção no sistema político brasileiro foi o PT, sendo conduzida por Lula. Assim, impedir que Lula fosse candidato, iludindo o povo ingênuo, para se eleger e voltar a implementar os mecanismos de corrupções, seria um objetivo político e moral para todo homem de bem;
  • O abandono de valores tradicionais de família, moral, religioso e de comportamento é uma das causas da corrupção na sociedade, na economia e na política brasileira, daí a importância de um projeto político que coloque “a nação acima de todos e Deus acima de todos”.

O projeto conservador e teocrático de Bolsonaro Messias se materializa nas seguintes propostas a serem implantadas pelo seu governo:  Escola sem Partido;  Ensino a distância, não obrigatoriedade de ensino de Filosofia, História e Sociologia e o regresso da disciplina de Moral e Cívica;  fim da liberdade de cátedra; criminalização do aborto em qualquer circunstancias;  defesa do uso da violência policial extrema para combater a criminalidade, com premiação ao policial que matar o bandido; armamento geral da população civil; redução da idade mínima de responsabilidade penal para 16 e até 14 anos;  restauração do controle masculino sobre a família e a leniência na penalização da violência contra a mulher.

4 – Os desafios de um outro horizonte político

A democracia não elimina os conflitos, só uma cultura autoritária (hierárquica, autocrática, teocrática, militar) pretende anular os mesmos. Quando matamos os conflitos, matamos a política e implantamos o totalitarismo. Com a democracia, não resolvemos tudo, não eliminamos os antagonismos; numa democracia se negociam as diferenças e os antagonismos. Todavia, não eliminar os conflitos não é o mesmo que estabelecer um comportamento de guerra. Na guerra se elimina o outro, elimina-se a diferença, porque a lógica da guerra impõe um jogo de soma zero: ou se ganha tudo ou se perde tudo, ou se vive ou se morre. Portanto, não é democrático querer estabelecer a ordem eliminando os nossos adversários, pois estaremos provocando a negação da política, estaremos apostando na guerra de todos contra todos, já que não podemos eliminar os conflitos, tampouco os antagonismos inerentes à convivência social. No Brasil, a nossa cultura política (de direita, de extrema direita, centro e esquerda) é autoritária, embora o autoritarismo seja efetivado em graus diferentes e fundamentado em matrizes ideológicas diferentes de um mesmo padrão civilizador: o projeto burguês de modernidade.

A hegemonia da sociedade civil é diferente da hegemonia da sociedade política. A sociedade civil brasileira, situada no campo popular no Brasil, tem como desafio elaborar e praticar outra estética política que rompa com a prática política conservadora e conciliadora predominante na sociedade brasileira que permite a reprodução do capitalismo por meio da obediência e da ordem. Uma nova estética política significa uma desobediência civil da ordem, de seus valores e de seu sistema de conhecimento, ou seja, uma desobediência política, ética e epistemológica. Trata-se de uma nova estética política como prática criativa, alegre e eficiente na desestruturação das práticas e mecanismos institucionais que dão sustentação às políticas de concentração de renda, de reprodução do racismo, da homofobia, do machismo, da misoginia, da violação dos Direitos Humanos, que doa ódio aos pobres, negros, índios, moradores de rua, imigrantes, prostitutas, quilombolas e às empregadas domésticas, dentre outros grupos.

Entre a potência dos movimentos sociais, o que inclui a diversidade das formas de ativismos políticos individuais, e o poder do Estado deve haver uma tensão permanente em um regime democrático. É importante contar com o poder do Estado se queremos governar ou se opor ao sistema financeiro, pois um governo tanto pode ser usado para ajudar o sistema financeiro a se reproduzir como para regulamentá-lo. Um dos grandes desafios atuais, em que o Estado atua em função da tirania do mercado, é desenvolvermos dispositivos que permitam novas formas de funcionamento para instituições estatais e de melhoria qualitativa e quantitativa das ofertas de políticas públicas para o conjunto da sociedade.

Durante os ciclos de fluxo e refluxo das ações de parte da sociedade civil em torno da ampliação de direitos, e de um processo de democratização da sociedade, aprendemos que não podemos fazer oposição ao capitalismo apenas ocupando as ruas, por meio de manifestações de protesto e reivindicações, ou votando na esperança de que possamos eleger pessoas de partidos comprometidos com a política de inclusão social, políticas de distribuição de renda e com a implantação de mecanismos de participação popular nas instituições públicas no controle do orçamento e das políticas públicas. Opor-se ao capitalismo é enfrentar a hegemonia do modelo econômico de mercado (neoliberalismo) combinada com uma luta contra o sistema mundo moderno/colonial (Padrão Mundial de Poder), o que implica o ensaio de um novo padrão civilizatório como alternativa ao Projeto de Modernidade. Para tanto, é preciso manter um comportamento de tensão e desobediência ao Estado hegemonizado pelo capital, mesmo quando governado por forças alternativas à ditadura economicista financeira (mercado rentista/extrativista).

Uma ideia de força por meio da qual podemos enfrentar a hegemonia do modelo rentista/extrativista do capital é a de que não queremos viver em um mundo mercantilizado e mercantilizador e, sim, queremos viver em um mundo no qual a vida é mais importante do que as coisas, queremos viver em um mundo em que a economia é um saber técnico para produzir bens de uso que garantam a qualidade de vida das pessoas e a preservação do planeta, e não a produção de riqueza para ser acumulada nas mãos de poucas pessoas ou de pequenos grupos superpoderosos.

Devemos afirmar que não queremos viver em um mundo com medo, tampouco sem garantias para a diversidade racial, religiosa, sexual, política e artística. Queremos viver em um mundo no qual a nossa capacidade de existência seja garantida por meios que controlamos, e não por processos desenvolvimentistas predatórios. Devemos tornar claro para nós e para os nossos adversários que as nossas formas de intervenção política têm como objetivo imediato garantir que os conflitos de interesses e as diversas visões de mundo em seus conflitos e antagonismos não se tornem um elemento de inferiorização, subalternização e eliminação do outro.

É preciso denunciar e demonstrar que não temos um Estado de Direito, mas, um Estado financista de direito. É preciso afirmar que queremos um Estado limitado e renovado no seu poder coercitivo, menos militarizado e menos burocratizado, o que não queremos é o Estado mínimo. Não queremos um Estado Teocrático comandado por indivíduos que se dizem seguidores de Deus, mas que são corruptos, violentos, racistas, misóginos, homofóbicos, mentirosos, perversos com os pobres e que acham que os fins justificam os meios. Queremos, sim, um Estado que garanta direitos e liberdade, com a participação ampla, nas suas decisões, da diversidade de cidadãos que compõe o nosso país. Queremos um país laico que garanta a todos o direito de professar qualquer credo religioso que desejar, mas, que também coíba a violência de qualquer igreja ou seguidor de uma religião de desrespeitar as demais.

A sociedade civil, principalmente a que se articula a partir dos excluídos, dos subalternos e da democratização da sociedade, não pode ser absorvida pela agenda dos governos. É o governo que tem que ser absorvido pela agenda plural da sociedade civil. Em relação às prioridades do governo, cabe à sociedade pressionar para que o mesmo as inclua em sua agenda. Para isso, precisa se fortalecer em um processo de disputa de hegemonia cuja base material é a sua agenda e o seu projeto político.

É bom ter clareza que, no Estado financista de direito, os governos (de direita, extrema direita, centro e esquerda) são controlados e limitados pelo capital. Portanto, temos como desafio a criação de nossa agenda própria e o fortalecimento da nossa autonomia em relação aos partidos e ao governo, pois, mesmo os governos de esquerda que estão sempre presentes nas lutas populares, quando chegam ao governo, são seduzidos pelo poder e caem no “canto da sereia” de fazerem políticas de conciliação de classes, implantando políticas compensatórias, adotando políticas do receituário neoliberais, praticando esquemas de corrupção e, também, entram em conflito com os movimentos sociais. No Brasil, os governos petistas de Lula e Dilma são exemplos. Além disso, é imprescindível delimitarmos o campo de interesse entre a sociedade e o Estado, sabendo que a aquela não é um todo homogêneo, que nem sempre segue a lógica da luta de classes, e de que, no campo dos valores e do reconhecimento, não há diferença entre machista, homofóbico, misógino, racista, de centro, de esquerda, de direita, de extrema direita, rico ou pobre.     

O Estado brasileiro, atravessado por uma cultura patrimonial, atualmente é submisso ao mercado na sua modalidade rentista e extrativista. Já a cultura política de funcionamento do nosso presidencialismo é ancorada no mercado do voto por meio do “toma lá, dá cá”, na promiscuidade entre o público e o privado e na falta de mecanismos de controle da população sobre as instituições e o orçamento público.  O interesse do Mercado significa, para a maioria da população, a manutenção da exploração, da coisificação, da dominação por meio de mecanismos permanentes de empobrecimento e de práticas de inferiorização e subalternização em diversos graus e formatos.

A dominação econômica e política no Brasil, operada por meio do controle do Estado, é perversa e não tem permitido, até o momento, mudanças estruturais. A política no país tem sido sempre conservadora ou, no máximo, conciliadora, como nos Governos de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek (JK) e Lula. Na conjuntura na qual poderíamos ter uma política com algum nível de ruptura com o conservadorismo, e dado início com algumas reformas estruturais durante os governos petistas de Lula e Dilma, a sedução pelo poder fez com que o PT ficasse preso ao modelo tradicional de fazer política, rompendo com as suas origens históricas, o que o levou a cair no conto da ideologia do fim da história. E qual foi a herança pós governos petistas? Um país quebrado, o sistema financeiro rentista/extrativista mais rico, um golpe parlamentar e, ao invés de uma sociedade civil mais organizada e com um elevado senso crítico, uma extrema direita mobilizada nas redes sociais e com capacidade de se manifestar nas ruas, uma sociedade conservadora e violenta, ativa, que elegeu um protofascista para fazer um governo teocrático.

Construir uma nova estética política e viver a política de outro modo é ser desafiado a combinar, em um mesmo movimento, ações de resistência com um projeto de reconstrução de sentidos. Não se trata de resgatar projetos eurocêntricos derrotados, como o socialismo, mas de construir o sentido comum, porque, para além do estatal e do privado, há o comum que pode ser gerido e instituído de forma comum, gestado por interesses comuns. Assim, podemos contrapor ao direito privado o direito de uso comum, instituindo serviços públicos como direitos comuns que podem ser, ao mesmo tempo, local, nacional e internacional, permitindo, assim, que as pessoas possam fazer uso deles em qualquer parte do mundo sem serem tratadas como imigrantes ou refugiadas indesejadas e sem direitos.

Construir uma nova estética política é abandonar as terminologias eurocêntricas que fundamentam a velha política como centro, direita, extrema-direita e esquerda, criada pelo projeto burguês iluminista para estruturar a política do capitalismo. Trata-se de fazer ensaios de mandatos coletivos, criação de partidos e movimentos, da ampliação da participação política para além das eleições em ações setoriais permanentes, do ativismo político em torno de causas de interesses coletivos. Trata-se de alimentar novos horizontes políticos, culturais, econômicos e epistemológicos em torno de novos padrões de organização social.

URIBAM XAVIER – Graduado em Filosofia Política e doutor em Sociologia. Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC) e autor , entre outros, do livro “América Latina no Século XXI – As Resistências ao Padrão Mundial de Poder”.

Imagem: Jean Michel BasquiatObnoxious Liberals

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