Romance gráfico ‘Vingadores, a cruzada das crianças’ mostra beijo entre dois personagens masculinos. Prefeitura ameaçou cassar licença da Bienal e enviou fiscais da Prefeitura ao local. Bienal recorreu à Justiça.
Por G1
Depois de o prefeito do Rio, Marcelo Crivella, ter dito nesta quinta-feira (5) que iria pedir para recolher da Bienal do Livro exemplares de um livro com a imagem de um beijo entre dois personagens masculinos, a Prefeitura divulgou uma nota dizendo que histórias com cenas desse tipo devem ter “lacre” e “advertência do respectivo conteúdo”.
Segundo Crivella, o romance gráfico “Vingadores, a cruzada das crianças” (Salvat) oferece “conteúdo impróprio” para menores.
Além disso, o comunicado da Prefeitura cita o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que não faz menção a homossexualidade. O documento diz que as obras “deverão respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família”.
Também nesta sexta, fiscais da Secretaria de Ordem Pública da Prefeitura (Seop) do Rio fizeram uma inspeção na Bienal para lacrar livros “impróprios”. Nenhuma outra obra dos 150 estandes da feira estava em desconformidade com as normas, segundo a Seop, que deslocou 12 agentes para fazer o trabalho.
Em nota, a Bienal Internacional do Livro Rio disse que “dá voz a todos os públicos, sem distinção, como uma democracia deve ser”. A história, de autoria de Allan Heinberg e Jim Cheng, aborda a equipe dos Jovens Vingadores. Os personagens Wiccano e Hulkling, que são namorados. A Bienal recorreu à Justiça.
“Quero saber desde quando um beijo passou a ser uma cena de sexo explícito”, comentou a advogada Silvana do Monte Moreira, presidente da Comissão de Direitos da Criança e do Adolescente da OAB-RJ (Ordem dos Advogados do Brasil).
Para ela, aparentemente a Secretaria de Ordem Pública da Prefeitura do Rio “não tem acompanhado as mudanças que tem ocorrido”. “Desde 2011, a família homoafetiva é reconhecida. Sabemos disso, foi amplamente divulgado e em 2019 a homofobia tornou-se crime, equiparado ao racismo.”
O advogado Guilherme Peña, especialista em direito constitucional, defende que cabe ao Judiciário discutir a questão.
“A Constituição assevera total liberdade de opinião, pensamento e crítico. Esse caso me parece que sejam duas grandes questões que devam ser discutidas até em tese: primeiro, se o município tem competência para discutir assuntos como essa, até porque me parece que a questão transcende o limite municipal; segundo, se não é necessário que o poder necessário conheça disso; e se o poder executivo tem poder para impor uma restrição como essa”.
O que diz a Prefeitura do Rio
“A PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, através desta Secretaria de Ordem Pública, no exercício de suas atribuições institucionais, do poder de polícia de feiras e exposições em geral e com fundamento no princípio da prevenção indicativa de que tratam os artigos 74 e 80 do Estatuto da Criança e do Adolescente, NOTIFICA essa feira BIENAL DO LIVRO, que, na forma, em especial, do artigo 78, caput, daquele diploma legal, qualquer publicação que envolva cenas impróprias a crianças e adolescentes devem ser COMERCIALIZADAS EM EMBALAGEM LACRADA, COM ADVERTÊNCIA DE SEU CONTEÚDO, na linha seguida pela política pública de classificação indicativa adotada para obras audiovisuais, acrescida das especificidades da legislação local.
Obras dedicadas ao público infantil e adolescente que contenham histórias ou cenas de homotransexualismo [SIC], quando aparentemente veiculadoras de histórias que tradicionalmente não contenham esse tipo de abordagem, como as de heróis, induzem a erro o leitor e seus responsáveis, faltando com o dever de lealdade a quem tem o livre direito de expressão e, neste sentido, de opção sobre suas leituras ou a de seus filhos, de modo que, além do lacre, deverão advertir do respectivo conteúdo.
Longe de recriminar a conduta transexual ou homossexual de qualquer ser humano, o que configuraria odioso crime de racismo, a legislação e o exercício do poder de polícia de Postura Municipal no sentido de que sua retratação artística deva ser objeto de EMBALO DA RESPECTIVA OBRA COM LACRE E ADVERTÊNCIA PREVIA NO CASO DE PUBLICO INFANTIL E ADOLESCENTE.
Neste sentido, serve esta para notificar a entidade responsável por essa BIENAL DO LIVRO que, na forma da legislação federal e municipal, deverão ser recolhidas as obras que tratem do tema do homotransexualismo de maneira desavisada para a público jovem e infantil ou seja, QUE NÃO ESTEJAM SENDO COMERCIALIZADAS EM EMBALAGEM LACRADA, COM ADVERTÊNCIA DE SEU CONTEÚDO, sob pena de apreensão dos livros e cassação de licença para a feira e demais que sejam cabíveis.”
O que diz o Estatuto da Criança e do Adolescente
“As revistas e publicações contendo material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes deverão ser comercializadas em embalagem lacrada, com a advertência de seu conteúdo.
Parágrafo único. As editoras cuidarão para que as capas que contenham mensagens pornográficas ou obscenas sejam protegidas com embalagem opaca.
ART. 79. As revistas e publicações destinadas ao público infanto-juvenil não poderão conter ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas, tabaco, armas e munições, e deverão respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família.”
O que diz a Bienal Internacional do Livro
“A Bienal Internacional do Livro Rio, consagrada como o maior evento literário do país, dá voz a todos os públicos, sem distinção, como uma democracia deve ser. Este é um festival plural, onde todos são bem-vindos e estão representados. Inclusive, no próximo fim de semana, a Bienal do Livro terá três painéis para debater a literatura Trans e LGBTQA+.
A direção do festival entende que, caso um visitante adquira uma obra que não o agrade, ele tem todo o direito de solicitar a troca do produto, como prevê o Código de Defesa do Consumidor.”
O que diz a OAB
A Ordem dos Advogados do Brasil no Rio informou que a Prefeitura não tem poder para recolher os exemplares e que essa atribuição é da Justiça, se houver desrespeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente.
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Imagem capturada de vídeo.