STF diz sim aos voos de envenenamento

Ineficaz contra os mosquitos, perigosíssima para a saúde humana e defendida por poderoso lobby, pulverização aérea de cidades tem aval do Supremo. Leia também: suicídio entre indígenas é o triplo da média nacional e mais

Por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde

O STF E O INSETICIDA QUE VEM DO CÉU

Em 2016, quando os casos de microcefalia assustavam o mundo e a epidemia de zika se tornava uma das maiores emergências de saúde pública já enfrentadas no Brasil, a então presidente Dilma Rousseff enviou ao Congresso Nacional uma medida provisória que listava uma série de medidas que poderiam ser tomadas pelas autoridades públicas quando fosse verificada uma “situação de iminente perigo” pela presença do mosquito Aedes aegypti. Durante a tramitação da MP, o deputado federal Valdir Colato (MDB-SC) apresentou uma emenda para incluir na lista a permissão da pulverização aérea de inseticidas para o controle do inseto. Colato, hoje à frente do Serviço Florestal Brasileiro, é autor do projeto que revoga a lei de crimes ambientais e libera a caça.

Pois bem: essa emenda foi aprovada e sancionada já no governo Temer, se transformando em uma das “medidas fundamentais para a contenção de doenças” descritas na lei 13.301, ao lado da pesquisa científica e da universalização do saneamento. Mas, obviamente, sair despejando inseticidas dos céus para matar um mosquito que se adaptou muito bem aos domicílios e voa baixinho é uma ideia que precisa ser sustentada por base científica.

Na época, pesquisadores reunidos na Associação Brasileira de Saúde Coletiva alertaram que a pulverização apresentava um potencial ainda maior de causar danos à saúde, pois os agrotóxicos usados seriam despejados em creches, lagos que abastecem cidades, hospitais… Eles destacaram que a proposta de Colato vinha, na verdade, do lobby do Sindicato Nacional das Empresas de Aviação Agrícola e contrastavam argumentos da entidade: “A proposta de pulverização aérea do SINDAG prevê a aplicação de fenitrotiona, malation, nalede e lambda-cialotrina, que apresentam elevado risco sobre a saúde. A fenitrotiona e o nalede não possuem autorização para uso na Comunidade Europeia. Vale destacar ainda que a lambda cialotrina é um dos componentes da formulação do produto pulverizado por avião sobre uma escola municipal em Rio Verde intoxicando quase 100 pessoas, entre elas crianças e adolescentes; e o malation foi considerado pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC), da Organização Mundial da Saúde, como provável cancerígeno humano”.

Atenta a tudo isso, a Procuradoria-Geral da República entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo para questionar o trecho da lei que prevê a dispersão de inseticidas por aeronaves. Ontem, finalmente, a ADI foi julgada pelo plenário do STF, que decidiu pela pulverização aérea. Foi uma votação dividida. A relatora da ADI, ministra Carmem Lúcia, era a favor da inconstitucionalidade desse trecho da lei. “Tem-se quadro de insegurança jurídica e potencial risco de dano ao meio ambiente e à saúde humana pela previsão normativa de controle do mosquito Aedes aegypti pela dispersão de produtos químicos por aeronaves”, escreveu. Votaram com ela Ricardo Lewandowski e Celso de Mello. Já Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Luiz Fux e Alexandre de Moraes consideraram a medida constitucional. Prevaleceu um meio termo, defendido por Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Rosa Weber e Dias Toffoli, de que a pulverização só poderá acontecer mediante autorização prévia dos órgãos sanitário e órgão ambiental competentes. Em sua justificativa, Toffoli mencionou a epidemia de dengue: “Conforme noticiado na data de hoje, a incidência da dengue no Brasil aumentou 600% em um ano”.

Acontece que desde que a dengue voltou a gerar epidemias no país, lá nos anos 1980, a estratégia tem sido a mesma. Sem sucesso. “Esse modelo centrado exclusivamente no combate ao mosquito não impediu a dispersão do Aedes no território nacional. Não impediu que a dengue se tornasse endêmica no Brasil. E não impediu que uma doença que a Organização Mundial da Saúde considerava benigna alcançasse o grau de mortalidade que vemos hoje”, resumiu Lia Giraldo, professora da Faculdade de Ciências Médicas da UFPE em 2016. Na mesma reportagem, a especialista em insetos da Fiocruz, Lêda Regis, explicou: “Há diversos estudos que mostram que o inseticida aplicado nas ruas não tem nenhum impacto sobre a população de mosquitos. Vai matar alguns que estejam voando naquela ocasião, naquela área. E pronto”. Isso porque, segundo a entomologista, não adianta atingir 10%, 20% ou mesmo 50% dos mosquitos. “A população tem uma estratégia baseada no crescimento extenso e se repõe rapidamente.”

FALANDO EM DENGUE…

Levantamento divulgado pelo Ministério da Saúde ontem aponta que, entre 30 de dezembro de 2018 e 24 de agosto, foram registrados 1.439.471 casos de dengue no país. A média é 6.074 casos por dia e representa um aumento de 599%, na comparação com o mesmo período do ano passado, quando houve 205.791 notificações. Foram registradas 591 mortes. O estado mais afetado é Minas, com um índice de 2,2 mil casos para cada 100 mil habitantes.

SARAMPO CONTINUA EM ALTA

E ontem a secretaria estadual da Saúde de São Paulo divulgou novos números do sarampo. Os casos cresceram 20% em uma semana, somando 3.519 notificações entre janeiro e setembro deste ano. No balanço anterior, divulgado no dia 2 de setembro, o estado tinha registrado 2.982 casos. A capital paulista concentra 60% do total, com 2.179 registros. Dos 645 municípios do estado, 134 já foram afetados pela doença.

TUDO O QUE ELES QUEREM

Esta é para ler com calma. O professor de Saúde Coletiva da UFRGS Alcides Miranda deu uma longa entrevista ao IHU-Online em que fala sobre o mercado de planos privados da saúde, explicando como surgiu, cresceu e se consolidou a saúde suplementar no Brasil e como, para ela, a grande intenção é que o SUS seja complementar ao setor privado – e não o contrário, como reza a Constituição. Nesse sentido, um “mercado especializado em doenças” configura a grande ameaça na medida em que até se interessa pela continuidade do SUS, mas para o sistema público arcar com despesas de alto custo que gerariam eventuais prejuízos financeiros. Em outras palavras: pagando pelo que o setor privado não quer pagar, como tratamentos e remédios caros.

O professor ainda critica duramente a regulação estatal das operadoras, que considera “quase uma piada de mau gosto”. Isso por conta de uma opção política, feita ainda nos anos FHC, de que a regulação aconteça “sem controle público, sob governança intercorporativa e sob a tutela dos oligopólios concorrentes ou parasitários das políticas públicas”. Ele cita textualmente os “fatos inequívocos de escolhas burlescas de altos dirigentes para a ANS. Dirigentes com biografias e ‘folhas corridas’ de serviços prestados para operadoras de planos de saúde, intermediários da tutela deste oligopólio sobre tal instância de regulação agenciada”.

De modo que a pressão dos planos para garantir autorregulação “chega a ser irônico”: “lembra um dito popular: ‘Se ficar melhor, estraga…’. Para este oligopólio, a atual tutela sobre ANS tem a vantagem de disfarçar os termos de direcionalidade das dinâmicas regulatórias do setor e ensaiar, de vez em quando, algumas medidas simbólicas de controle e punibilidade com apelo popular”.

TRÊS VEZES MAIS

No Brasil, a taxa de suicídio de indígenas é mais que o triplo da média na população em geral: 21,8 mortes para cada 100 mil pessoas (contra 6,1 da média). O Nexo ressalta o caso dos guarani-kaiowá, na Reserva Indígena Dourados, no Mato Grosso do Sul. É onde há a maior concentração de indígenas do país e os conflitos são constantes: só em junho deste ano, foi registrado, em média, um assassinato a cada dois dias e meio.

Em julho, jovens guarani-kaiowá fizeram um encontro em Bela Vista e daí saiu, justamente, uma carta final abordando o que chamam de “epidemia de suicídio”. Nela, eles afirmam que vivem confinados em reservas ou aldeias superlotadas ou acampando na margem de rodovias, em “desespero permanente e sem esperança em viver bem nas nossas terras”. São taxados como “bugre incapaz”, e ouvem falas como “índio nem deveria mais viver”: “A soma de todos esses fatores preconceituosos e humilhantes sofridos afeta diretamente a nossa psicologia e influenciam os nossos comportamentos”, escrevem.

Entre as sugestões para lidar com isso estão apoio para ter grupos de jovens e para estudar, além da demarcação de novas terras. Sendo que a promessa de Jair Bolsonaro é não demarcar mais nenhuma…

A reportagem ainda menciona que a alta taxa de suicídio entre indígenas não é algo restrito ao Brasil. Nos EUA, por exemplo, ela é 82% maior do que no resto da população; em algumas regiões do Canadá, o suicídio entre jovens indígenas é 800 vezes maior que a média nacional; e taxas mais altas também são encontradas em povos na Noruega, Finlândia e Rússia.

UMA PROMESSA

Enquanto isso… O secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura Nabhan Garcia organizou uma audiência pública em Miracatu, pequena cidade no interior de São Paulo onde fazendeiros se opõe à demarcação. No salão repleto de empresários, posseiros e proprietários rurais estavam 40 indígenas guarani mbya – que não haviam sido convidados. “Foram chamados de ‘paraguaios’ pelo advogado do sindicato rural, e escutaram o presidente da Funai [Marcelo Xavier da Silva] prometer aos produtores que vai reavaliar as terras indígenas. Saíram de lá com a certeza de que os processos de demarcação estão ameaçados”, descreve Diego Junqueira, na Repórter Brasil. Quem convidou Nabhan para conhecer os “problemas de Miracatu” foi o presidente do sindicato rural, conhecido como Tico Bala. Que é aliado de Renato Bolsonaro – irmão de Jair.

CABEÇA QUENTE

Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos e no Quênia investigou como altas temperaturas afetam o comportamento das pessoas. Cerca de dois mil voluntários participaram do estudo que, ao longo de seis meses, analisou a qualidade das suas decisões, nível de concentração, cooperação, felicidade dentre outros. Para isso, 12 participantes precisavam resolver problemas e jogos enquanto eram observados, mas metade ficava em uma sala mantida a 22ºC, enquanto o restante em uma onde o termômetro marcava 30ºC. A conclusão é que a maior parte das decisões não foi afetada pela temperatura, mas o calor, claramente, afetou de maneira negativa as pessoas, como uma maior propensão à violência. Reportagem do El País conta que esses resultados estão alinhados com estudos anteriores que apontaram que altas temperaturas afetavam as emoções negativas e desencadeavam um efeito fisiológico que gerava agressividade. Também foi sugerido que os crimes violentos e os conflitos em grupos são mais prováveis quando o termômetro sobe. Uma meta-análise de 60 desses estudos chegou à seguinte conclusão: para cada aumento de um grau na temperatura do planeta, a frequência da violência entre indivíduos aumentará 4% e a das disputas entre grupos 14%.

AGENDA

O relatório do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) favorável ao uso medicinal da cannabis deve ser votado hoje [omtem] na na Comissão de Direitos Humanos da Casa.

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