Retomadas Guarani Kaiowá acumulam ataques recentes com destruição, feridos e morte

Na última semana, duas retomadas foram atacadas; em julho, um jovem indígena acabou morto após ataque. Indígenas pedem proteção

por Renato Santana, em Cimi

Um rato entrou, não sei de que buraco; 

Não silencioso, como é seu hábito,

Mas presunçoso, arrogante e bombástico. 

Um Rato, de Primo Levi (1983)

Capangas de proprietários rurais com terras incidentes sobre territórios tradicionais, contratados a partir de empresas de segurança, atacaram um grupo Guarani Kaiowá durante invasão ao tekoha – lugar onde se é – Ñu Vera, em Dourados (MS). Foram duas investidas a tiros contra a retomada: na última quarta-feira (11) e na madrugada de quinta-feira (12). Dois Guarani Kaiowá ficaram feridos a tiros de bala de borracha, um deles após ser alvejado pelas costas, na altura do ombro. Não houve mortos.  

Indígenas do Ñu Vera relatam momentos de desespero e agonia. “Começa sempre com muito tiro nos barracos e depois os jagunços vêm e destroem tudo”, conta uma liderança das cerca de oito retomadas que juntas com Ñu Vera ocupam áreas limítrofes às aldeias Bororo e Jaguapiru, na Reserva Indígena de Dourados. Algumas destas áreas pertencem à Reserva, mas foram invadidas e griladas por não indígenas. As identidades dos Guarani Kaiowá entrevistados serão preservadas por motivo de segurança. 

As armas utilizadas pelos capangas, que compõem milícias armadas sob a fachada de segurança privada, são de grosso calibre e de bala de borracha; as cápsulas recolhidas pelos Guarani Kaiowá, além das marcas dos tiros nos corpos dos indígenas atingidos, não deixam dúvidas. “Usam tratores e caminhonetes para realizar os ataques. A gente se defende, quando tem, com fogos de artifício”, conta uma indígena.

“Não podemos mais nos locomover que eles ameaçam. As crianças chegam a ficar uma semana sem ir à escola porque eles ameaçam no caminho”

No dia 23 de julho deste ano, os fogos de artifício afugentaram o bando durante invasão ao tekoha para mais uma noite de terror. Com caminhonetes e um trator modificado, “parecido com aqueles do Mad Max”, conforme um dos depoimentos, homens avançaram contra os Guarani Kaiowá. “Na noite seguinte, tornaram-se mais violentos atentando contra a vida dos membros da comunidade, que culminou com o evento aqui relatado”, conforme trecho de denúncia encaminhada em 5 de agosto à 6ª Câmara de Coordenação e Revisão da Procuradoria-Geral da República (PGR), em Brasília. 

De acordo com o documento enviado à PGR, no dia 24 de julho, um dia depois, o bando armado retornou com mais ferocidade. “Um menor indígena de 14 anos de idade, de nome Romildo Martins Ramires (pai Ventura Ramires, mãe Marciana Martins) foi atingido por 18 tiros de borracha e tiros de grosso calibre, sendo em seguida atirado vivo a uma fogueira pelos seguranças do ruralista (o nome consta na denúncia) onde permaneceu até o amanhecer, tendo 90% do corpo queimado” (SIC). 

Os Guarani Kaiowá relatam à PGR que enquanto o “menor ardia no fogo, não foi permitido a aproximação dos indígenas para socorrê-lo, o que só foi possível fazê-lo com a saída dos criminosos do local, quando então foi solicitado o comparecimento do Corpo de Bombeiros ao local dos delitos” (SIC). Romildo ficou internado no Hospital da Vida, em Dourados, mas não resistiu aos ferimentos e morreu no dia 29 de julho. 

Um trator adaptado, conforme a denúncia, “possui uma perfuração em uma das laterais, através da qual posicionam uma arma e uma pickup preta sem placa” (SIC). “Estes dois veículos se movimentam no interior da tekoha, atirando em todas as direções no acampamento dos indígenas, destruindo as suas tendas”, completa. No documento, está descrito o horário em que todas ações contra os Guarani Kaiowá ocorrem: entre 23 horas e 4 horas da manhã.

Ataques intermitentes

Em outro episódio descrito pelos Guarani Kaiowá à PGR, os jovens indígenas Josicleiton Eskaleiti, de 15 anos, e Alisson Maroni, de 14 anos, perderam parcialmente a visão a tiros de bala de borracha. Já no dia 1º de agosto, Mirna da Silva foi perseguida por pistoleiros. Vários tiros de bala de borracha foram efetuados contra a indígena, que precisou ser levada ao hospital.

Outro evento “envolveu uma senhora indígena de 75 anos, de nome Maria, que teve suas pernas prensadas e quebradas pelo trator utilizado pelos criminosos para destruir os barracos dos indígenas, evento que ocorreu às 5:00 da manhã. No mesmo dia, às 8:00 da manhã, os mesmos criminosos atiraram contra os indígenas, ferindo outra indígena, que foi levada ao hospital” (SIC), conforme trecho da denúncia levada à PGR. 

“De fato, estes criminosos vem praticando impunemente violências e homicídios há dez anos, utilizando-se da vulnerabilidade, da fraqueza e medo de alguns indígenas, em troca de bebida alcoolica e dinheiro, fazendo coação física e moral para obter informações privilegiadas sobre a própria comunidade” (SIC), diz a denúncia. Para os Guarani Kaiowá, os pistoleiros agem impunemente na região praticando todo tipo de atrocidade e covardia contra o povo.   

A violência registrada em Ñu Vera acontece também nas demais retomadas da região. No dia 5 de dezembro de 2017, uma decisão judicial de despejo foi cumprida pela Força Tática da Polícia Militar com tiros de bala de borracha e bombas contra dez famílias Guarani Kaiowá – incluindo crianças, idosos e mulheres. O alvo foi o tekoha Pindo Roky, com indígenas integrantes das reservas de Guapo’y e Jagua Piru, que ocupavam a área desde 2016.

A violência registrada em Ñu Vera acontece também nas demais retomadas da região

Quase nove meses após essa reintegração, a então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Carmén Lúcia, suspendeu todos os mandados de reintegração de posse de cinco sítios cujas áreas sobrepostas ao território tradicional estão retomadas pelos Guarani Kaiowá desde março de 2016. “O ciclo de invasões e retomadas somente terá fim com a correta delimitação e demarcação da reserva indígena de Dourados, providência aguardada pelos indígenas, segundo consta dos autos, há mais de trinta anos” (SIC), defendeu a ministra em sua decisão.

“Se de um lado há risco de prejuízos patrimoniais aos autores das demandas originárias, que fundamentam sua pretensão em alegado direito de propriedade, existe, de outro, ameaça à própria existência da comunidade indígena Yvú Verá, que, conforme indicado pela Funai, foi alijada de seu território e enfrenta situação de grande vulnerabilidade social e econômica”, argumentou a presidente do STF. 

No entanto, os ataques contra Ñu Vera não cessaram. Durante a visita da Alta Comissária Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA (Organização dos Estados Americanos), Antonia Urrejola Noguera, em 7 de novembro de 2018, que esteve em retomadas Guarani Kaiowá e na Reserva de Dourados, o tekoha Ñu Vera sofreu, entre 9h e 12h, ataque de fazendeiros locais, com tiros de bala de borracha. A Alta Comissária e o MPF enviaram representantes ao local que recolheram cápsulas deflagradas, registraram a destruição de barracos e indígenas feridos. 

“Depois desse dia passou a ser diário os tiros, rojões, destruição de barracos, ameaças, ofensas de todo tipo. Os seguranças falam das mulheres da aldeia pros homens, pros maridos delas. Provocam de todo jeito. Xingam. Se chegamos perto pra conversar, pedir pra eles não machucarem a gente, jogam rojões, dão tiros”, conta indígena Guarani Kaiowá que vive em uma dessas retomadas. 

Ataques a outras retomadas   

Ataque 28 de outubro de 2018: 15 feridos com balas de borracha e de gude

O ataque no dia 28 foi agressivo. Pistoleiros abordaram os indígenas Guarani Kaiowá com um tiroteio de balas de borracha e de gude. Segundo lideranças da comunidade, as agressões foram originadas por fazendeiros locais e não havia qualquer tipo de manifestação por parte do povo Guarani Kaiowá, no momento do ataque. Cerca de 15 indígenas ficaram feridos.

Ataque 31 de outubro de 2018: intimidação e barracos derrubados

O cenário de violência seguiu também no dia 31. De acordo com informações das lideranças indígenas, fazendeiros invadiram retomada e começaram a derrubar os barracos, sem qualquer abertura para diálogo. As lideranças indígenas levaram denúncia acerca da situação à Funai e ao MPF e aguardam providência junto aos respectivos órgãos. Felizmente, a comunidade conseguiu se proteger na mata e não houve feridos.

Nem as crianças são poupadas 

Uma liderança da retomada Avaeté, contígua ao tekoha Ñu Vera, afirma que na terça-feira (10) “derrubaram tudo os nossos barracos. Crianças, idosos, cachorros…não fizeram conta do que estava na frente (…) não podem ver um barraco de pé que derrubam”. Um dos capangas atirou e acertou um tiro de bala de borracha em outro Guarani Kaiowá. “Chegou a rasgar o braço. Foi fazer boletim de ocorrência e denúncia no MPF, mas tá sem resolver. Esses ataques não param. Pra eles virou rotina. Trator passa por cima. Esses tempos pegou até uma criança de nove anos, que também levou tiro de borracha. Chegou a desmaiar”, relata. 

Sobre a atuação da Funai, a indígena afirma que existe um apoio com cestas básicas, posto que não podem ao menos plantar nas retomadas. Lonas não são mais levadas aos indígenas. Para os Guarani Kaiowá, conta a fonte, não há muitas esperanças. “Fazemos boletim de ocorrência, denunciamos para o MPF. É o que podemos fazer”. Questionada se esperam algo do atual governo, a indígenas disse que “se eu for falar do Bolsonaro na aldeia o povo fica revoltado. Não se pode nem pronunciar. Ele tá acabando com os povos indígenas. Tá muito feio”.  

“Não podemos mais nos locomover que eles ameaçam. As crianças chegam a ficar uma semana sem ir à escola porque eles ameaçam no caminho. Usamos uma estrada para ir a Dourados e nela somos ameaçados, os seguranças tiram a arma e ameaçam, colocam na direção da cabeça”, denuncia. Para os Guarani Kaiowá não há outro caminho a não ser o das retomadas, enquanto a regularização fundiárias das terras do povo no estado do Mato Grosso do Sul segue sem solução.

Razões para essa espécie de intifada Guarani Kaiowá pelo território, numa região já chamada de a Faixa de Gaza brasileira, não faltam. “Motivos nós temos muito: a população indígena está crescendo. Se eu for ter filho, tenho neto e bisneto. A reserva tá cada vez mais pequena. A população (indígena) se revolta porque além da falta de terras a gente sofre preconceito e racismo na cidade. Como se a gente fosse invasor, mas na verdade é totalmente o contrário”, afirma. 

Confinamento e retomadas 

A Reserva Indígena de Dourados possui 3.475 hectares e cerca de 18 mil habitantes (Cimi, 2019) Guarani Kaiowá e Terena. Ostenta, portanto, alguns dos mais altos índices de violência e densidade demográfica em Terras Indígenas. Nenhum outra reserva criada pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), no começo do século XX, chegou a tamanho confinamento levando os indígenas, sobretudo os Guarani Kaiowá, a retomarem áreas tradicionais fora da reserva para poder garantir a reprodução física e cultural do povo com espaço para as moradias e agricultura. 

“O caso da Reserva de Dourados é antigo, mas de 2017 pra cá os ataques às retomadas do entorno da reserva tem sido constante deixando muitos feridos”, diz a missionária do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Mato Grosso do Sul, Lídia Farias. Há mais de uma década atuando no estado, a missionária explica que a situação de confinamento na reserva gera desde retomadas, cuja resposta é a formação de milícias contratadas, aos casos de violência interna. 

Marco temporal: “Essa tese aí de ruralista vagabundo é pra roubar o que é da gente, que a gente tá aqui desde muito antes deles”

São duas aldeias, Boro e Jaguapiru, “que contam com 18 mil indígenas vivendo em 3 mil hectares. Um caos. Por não suportar mais essa situação, a comunidade parte pra luta, buscando espaço em áreas encostadas à reserva. A questão é que estas áreas são de interesse da especulação imobiliária, além das propriedades. Uma das reintegrações (com tramitação entre 2017 e 2018) foi movida pela construtora Saad Lorenzini, com sede em Dourados”, explica Lídia. 

O marco temporal, tese que cria restrições ao direito constitucional dos indígenas à terra, é um dos argumentos presentes nas ações de reintegrações de posse contra as retomadas. Opositores à regularização fundiária dos territórios tradicionais defendem que o povo indígena só pode ser atendido com a demarcação caso comprove estar na terra pleiteada na data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. 

“Isso não é verdade. A Funai (Fundação Nacional do Índio) e o MPF (Ministério Público Federal) sabem que em Ñu Vera há dois cemitérios do nosso povo, antigos. Essa tese aí de ruralista vagabundo é pra roubar o que é da gente, que a gente tá aqui desde muito antes deles. O direito é originário”, diz indígena Guarani Kaiowá. A tese do marco temporal será apreciada pelo STF no caso do estado de Santa Catarina contra o povo Xokleng, alçado à esfera de Repercussão Geral, ou seja, o que a Corte Suprema decidir poderá servir como jurisprudência definitiva para todos os outros casos envolvendo marco temporal.

Indígena de Ñu Vera baleado pelas costas, na altura do ombro, na madrugada do dia 12 de setembro de 2019. Crédito da foto: Comunidade Ñu Vera

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