Refletindo sobre o combate ao trabalho escravo na atual conjuntura do Brasil


Tempos sombrios e olhos abertos: o combate ao trabalho escravo

Por Ricardo Rezende Figueira

Os tempos são turvos, o presidente desqualifica servidores públicos envolvidos na fiscalização e a própria lei abolicionista expressa no artigo 149 do CPB, mas as fiscalizações prosseguem. O primeiro balanço do novo tempo pós governo do Partido dos Trabalhadores, lembra que com Temer a legislação sofreu alterações trabalhistas cruciais, e no período Bolsonaro é necessário manter os olhos bem abertos.

Começamos 2019 apreensivos com a posse de Jair Bolsonaro como Presidente da República. Entre as medidas do novo presidente, que suscitaram apreensão para pessoas e instituições dedicadas ao combate ao trabalho escravo e a observância das leis trabalhistas, houve a extinção do Ministério do Trabalho e, a seguir, o setor de fiscalização do trabalho foi transferido para o Ministério da Economia. Assim, o trabalho se subordina à economia e não o contrário e revela uma escala de prioridade. Vejamos, o Ministério do Trabalho foi criado em novembro de 1930 e, até então, nestes 89 anos, todos os governos, inclusive os do regime militar, o mantiveram. Foi um sinal do atual governo da importância ou falta de importância que atribui às questões trabalhistas. A medida, segundo a avaliação de pessoas e de organizações, poderia colocar em risco as ações de fiscalização e a implementação de medidas de proteção ao trabalhador.

O atual presidente se pronunciou a respeito do conceito legal da escravidão. Em 30 de julho de 2019, conforme o jornalista Pedro Rafael Vilela, em matéria publicada na Agência Brasília, defendeu que era necessário definir, através de lei, uma distinção entre escravidão e trabalho análogo a de escravo. A ausência de uma distinção, segundo Bolsonaro, provocaria uma insegurança jurídica para os empregadores e o presidente teria citado, conforme o jornalista, a “convenção 69” da OIT . É algo confuso. Talvez um equívoco do repórter ou Bolsonaro se confundiu e queria se referir à Convenção 29 ou 105. O presidente estava preocupado com a emenda constitucional (EC81), pois deu nova redação ao artigo 243, que passou a prever a expropriação de terras não apenas em casos de culturas ilegais de plantas psicotrópicas, mas também em casos de exploração de mão de obra escrava. Conforme Vilela o presidente estaria preocupado com a alteração da lei e afirmou:

“Tem uma secretária, por exemplo, na casa, e tem um colchão abaixo de oito centímetros, ou está num quarto com ventilação inadequada. Se aplica no análogo à escravidão, e isso está muito tênue, para passar para [trabalho] escravo está um pulo. Igual [acontece] a policial militar, muitas vezes, se transforma auto de resistência em execução. A linha é muito tênue. Então, o empregador tem que ter essa garantia, não quer maldade com seus funcionários nem quer escravizá-los. Pode ser que exista na cabeça de uma minoria isso aí e tem que ser combatido, mas deixar com essa dúvida, quem está empregando ser análogo ou não, aí você leva o terror para o produtor”, acrescentou.

Temos, assim, uma simplificação rudimentar do conceito, pois a caracterização do trabalho análogo à de escravo não se reduz a um centímetro a mais ou a menos no colchão oferecido ao trabalhador, pela nova redação do artigo 149 do Código Penal Brasileiro (CPB), mas à dignidade humana ofendida, que se manifesta, por exemplo, da forma degradante como a pessoa é tratada. Na verdade, o presidente utilizou de argumentos defendidos grotescamente por parlamentares ruralistas que se opuseram à EC81 do trabalho escravo. Ainda conforme o jornalista, “não ficou claro se há (por parte do presidente) interesse em apresentar uma proposta legislativa nesse sentido”.

Outro jornalista, Daniel Carvalho, publicou na Folha de São Paulo, de 31 de julho de 2019, também matéria sobre o mesmo pronunciamento de Bolsonaro . Segundo o jornalista, o presidente ao deixar o Palácio da Alvorada, teria criticado a EC81 do trabalho escravo:

“Quem pratica o trabalho escravo tem que ter punição. Agora, por outro lado, vamos supor que o cara estava acorrentado lá, era o trabalho escravo, você tem que punir o Seu João, com 80 anos de idade. Ao você expropriar, você puniu Dona Maria, que estava há 60 anos trabalhando com ele na fazenda, os filhos, que estavam há 40 anos trabalhando, os netos, que estavam há 20 anos trabalhando. Você pune todo mundo. A punição tem que atingir você, não todo mundo”, disse Bolsonaro.

O exemplo de trabalhador “acorrentado” não é feliz e faz parte do imaginário de algumas autoridades e do senso comum. Mesmo os escravizados legalmente entre o século XVI e XIX no Brasil, raramente eram acorrentados. E, em certas circunstâncias, como nas atividades urbanas, muitos circulavam ao longo do dia livremente, oferecendo ou buscando trabalho. Eram os chamados “escravos de ganho”. Ao final do dia, se apresentavam aos seus senhores ou senhoras, e lhes repassavam parte da quantia recebida. O presidente, quando descreveu o que considera tornar alguém escravo, utilizou uma caricatura, e se esqueceu que o crime e a ilicitude são mais complexos e sutis. Além disso, confundiu responsabilidades. De fato, sob o ponto de vista do crime, a responsabilidade é individual e o Ministério Público, para obter a condenação, tem que provar a relação direta entre o acusado e o crime ocorrido.

No caso trabalhista, a justiça condena a empresa e ela tem que arcar com as responsabilidades independentemente do conhecimento ou da participação individual do empregador ou de seus sócios. Assim, observando o exemplo citado acima e, por analogia, uma empresa agropecuária, pertencente a um homem fictício conhecido como Senhor João, que utilizou a sua propriedade para cometer um ato ilícito, é passível de uma punição. Os familiares do fictício Senhor João eram diversos. Tinha a Dona Maria, os filhos e os seus netos. Tais familiares eram como “sócios”, participavam dos lucros obtidos de forma ilícita. Tratava-se de uma riqueza obtida pelo tratamento inadequado de seres humanos, gente era tratada como se fosse coisa, objeto. Sua dignidade era ofendida profundamente. E para enfrentar problemas de tal natureza, a expropriação foi prevista na Constituição Federal após anos de debates na Câmara dos Deputados e no Senado. No entanto, o art. 243 não foi regulamentado por lei ordinária pormenorizando as circunstâncias para a expropriação e independente de o ser, alguns consideram que é aplicável no caso de expropriação de propriedade onde se cultiva de forma irregular planta psicotrópica – pois está prevista no mesmo artigo constitucional e foi pacificada por juízes de instância superior . A lei assim produz conseqüência, e não apenas para aquele indivíduo, um Senhor João, cultivador de planta psicotrópica, mas produz efeito para Dona Maria e para seus descendentes. Eles, como sócios, não podem usufruir do resultado daquilo que é indevido. A terra foi instrumento do ilícito por isso terá outra destinação. Podemos, também por analogia, pensar no carro roubado que deve ser apreendido. A riqueza produzida pela exploração no trabalho escravo se torna um roubo e a coisa roubada deve também ser retida e lhe será dada outra destinação. É interessante que Bolsonaro não apresentou problemas no caso das plantas psicotrópicas. Aparentemente, concordava que a fictícia Dona Maria e seus filhos e netos, fossem punidos pelo crime do octogenário marido.

Para frei Xavier Plassat, coordenador da Campanha Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entrevistado em 9 de agosto de 2019, a situação era de expectativa preocupante quanto as maldades que poderiam vir como a regulamentação da EC81 do trabalho Escravo ou do artigo 149 do CPB que define os atributos do trabalho análogo à de escravo. Já havia, desde o governo Temer, dificuldades orçamentárias e de disponibilidade de força policial para as operações. O número de operações fiscalizadoras realizadas no período parecia pequeno. Até 30 de julho de 2019, o Ministério do Trabalho tinha realizado 50 operações, quando em todo o ano de 2018, realizou 136. Em 2019, em sete meses, foram fiscalizados 70 estabelecimentos com 348 resgatados. Enquanto a média anual nos últimos seis anos foi de 1162 resgatados; nos últimos cinco anos, 972. Contudo, Plassat adverte que o número dos resgatados deste ano pode ainda sofrer mudanças porque nem todas as operações podem estar registradas, pois se demora um tempo para a atualização dos dados . Leonardo Sakamoto, da Repórter Brasil, relativiza também os números apresentados pela mesma razão. Para ele, a mudança de governo não significou ainda redução de operações de resgate. Os grupos de fiscalização estão funcionando.

A conjuntura política e o aumento da taxa de desemprego, segundo Plassat, também podem explicar o desestímulo à denúncia. Conforme Geuza Sampaio, da equipe da CPT de Marabá, de janeiro até início de agosto de 2019, a equipe só havia recebido uma denúncia. É desanimador, para Plassat, a forma como Bolsonaro trata o problema. O ataque do governo aos colegiados federais se manifesta na Comissão Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo com a redução dos membros efetivos e da sociedade civil.

Desde 2018, segundo o auditor do Trabalho Marcelo Campos, houve deterioração nas relações de trabalho por algumas razões como a forma pela qual o governo federal tem desqualificado os servidores públicos e as instituições de fiscalização; o desfazimento da legislação de proteção ao trabalhador especialmente a partir do governo Temer; os cortes orçamentários e a crescente burocracia. O cenário, de qualquer forma, se manifesta como de crescentes dificuldades, observou Campos. Os empregadores têm reagido de forma mais agressiva que antes e, não fosse a presença da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal nas operações, certamente ousariam mais ainda. Em ações rotineiras de fiscalização, sem a presença da polícia, a situação é mais perigosa. No entanto, se nacionalmente, como frisou Plassat, houve diminuição de pessoas resgatadas e diminuição de operações contra o trabalho escravo, o mesmo não se deu em Minas Gerais. E Campos explicou. Ali foram realizadas ações em 2019, inclusive em número superior ao ano precedente e elas se deram porque funciona o Comitê Estadual de Atenção ao Migrante, Refugiado e Apátrida, Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Erradicação do Trabalho Escravo de Minas Gerais (COMITRATE) e há uma articulação feliz entre os auditores do trabalho e o Ministério Público do Trabalho e a Polícia Federal.

Uma novidade neste momento é a decisão do Ministério Público do Trabalho publicar uma lista própria de pessoas físicas e jurídicas condenadas pelo tráfico de pessoas e exploração do trabalho análogo à de escravo. Conforme o procurador-geral do trabalho, esta “lista suja” não pretende substituir a “lista suja” do governo federal. O país terá assim duas listas que podem ser complementares. Uma, do Governo Federal, com a relação de pessoas e empresas flagradas em trabalho escravo, após um processo interno no próprio ministério; outra lista composta por pessoas e empresas condenadas judicialmente. Mas pode ocorrer ruídos, alguns suspeitam, se a relação entre as listas e os que as organizam não for bem articulada.

Tanto para Plassat, quanto para Sakamoto há preocupações, mas ambos reconhecem que, até o momento, Bolsonaro não interferiu na legislação, não impediu as fiscalizações e nem a publicação da chamada Lista Suja do Trabalho Escravo. Até o momento não houve a regulamentação da EC81 do Trabalho Escravo como não houve no governo Dilma, nem no governo Temer e, até agosto de 2019, o governo Bolsonaro também não mexeu, portanto, em princípio, não há definição em lei ordinária de qual condenação leva à expropriação da terra e qual o seu procedimento.

Sakamoto compreende que o trabalho escravo é um ponto sensível, mais sensível internacionalmente que a discussão sobre a Amazônia. Se o governo Bolsonaro criar obstáculos às fiscalizações contra o trabalho escravo isso pode provocar duras represálias comerciais. O governo fez o que tem que fazer: não impediu a fiscalização.

Para alguns entrevistados, é necessário estreitar as relações entre os Procuradores do Trabalho, os Auditores do Trabalho e a Polícia. Isso possibilitaria uma ampliação do sucesso nas fiscalizações como se dá em Minas Gerais.

Nos dois anos do período Temer, houve recuos graves da legislação protetora do trabalhador em nome da “flexibilização” do mercado de trabalho e da “simplificação” das relações entre trabalhadores e empregadores por meio de “uma reforma trabalhista”, fruto da lei 12.467, de 2017. Ampliou-se o espaço para a contratação terceirizada; o número de horas pode ser dilatado até 12 horas; foi criada uma nova modalidade de contratação do trabalhador, aquela do contrato intermitente; os acordos coletivos entre empregados e patrões passaram prevalecer sobre a lei, respeitados direitos como férias e 13º; o pagamento do imposto sindical deixou de ser obrigatório; as férias podem ser parceladas em até três vezes. Assim as mudanças legislativas tornaram a situação do trabalhador mais precária e vulnerável, partiram do pressuposto de que o trabalhador e o patrão teriam similaridade na capacidade de negociação, a lei que regulava o direito passou a ser submetida ao fictício acordo entre as partes, e foram implementadas em nome da chance de haver aumento nas vagas de emprego, o que não se confirmou. A taxa de desemprego, até agosto de 2019 tem se ampliado.

Bolsonaro tem sonhos de tornar ainda mais difícil a vida dos trabalhadores. Apresentou, por exemplo, a Medida Provisória da “Liberdade Econômica”, cujo texto mais importante foi aprovado em 13 de agosto de 2019 na Câmara dos Deputados. Segundo Sakamoto, “seguimos impávidos em direção à barbárie”.

Como lembra uma das campanhas da CPT – “De olho aberto para não virar escravo” – é manter os olhos abertos, porque o que está ruim pode se tornar pior ainda. Ninguém sabe o que pode passar pela cabeça de Bolsonaro, comentou o arguto jornalista Sakamoto.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Emilia Wien.

Foto: Sérgio Carvalho /MTE

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