TIAR e o Novo Plano Condor no Continente

por Gisele Ricobom, Larissa Ramina e Carol Prone, no GGN

No último dia 11 de setembro, o Conselho Permanente da OEA, por iniciativa da Colômbia, decidiu invocar o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca – TIAR contra a Venezuela sob o argumento de que o governo estaria vinculado ao narcoterrorismo e que abrigaria, treinaria e financiaria os remanescentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e do Exercício de Libertação Nacional (ELN).

Menos de duas semanas após, em reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores, foram definidas resoluções a serem implementadas no marco do Mecanismo de Segurança Coletiva, prevendo todas as medidas disponíveis para “investigar, processar, capturar, extraditar e punir” pessoas ou entidades associadas ao regime de Nicolás Maduro por atividades ilícitas de ativos, tráfico de drogas e terrorismo. E ainda, identificar pessoas que exerçam ou tenham exercido funções como altos funcionários do governo da Venezuela, que tenham participado de atos de corrupção ou de violações graves aos direitos humanos.

Como especialistas em Direito Internacional Público, somos obrigadas a alertar para o grave perigo de reviver o TIAR, bastante em desuso, para dotá-lo de competência criminal e persecutória nas relações interamericanas, em especial no atual contexto das guerras híbridas que abalam a região. Destacamos que o uso anômalo, que extrapola os limites da própria finalidade, configura violações contundentes aos princípios basilares do direito internacional.

É certo que o Tratado sempre foi um instrumento de acúmulo hegemônico no continente. Assinado em 1947, trata-se de um acordo ancorado na “doutrina da defesa hemisférica” e na “política da boa vizinhança”, estimulada por Franklin Roosevelt, que atendeu a um duplo sentido: por um lado, inibiu a influência da então União Soviética no continente americano e, por outro, projetou a hegemonia militar e política dos Estados Unidos nas Américas.

Fundamentalmente, o TIAR prevê que um ato armado contra qualquer um dos Estados-Parte representa um ataque a todos os países, autorizando uma ação conjunta contra o agressor no exercício do direito de legítima defesa individual ou coletiva, reconhecido pelo Artigo 51 da Carta da ONU. Portanto, para ser acionado, o mecanismo exige um ato de agressão ao território de um dos Estados-Parte ou, ao menos, um caso de agressão à soberania ou à independência política de qualquer Estado-Parte.

Entretanto, há limites para medidas tão extremas. O TIAR prevê que as medidas de legítima defesa poderão ser aplicadas somente até que o Conselho de Segurança da ONU passe a tomar as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais. Tais medidas são bem definidas no Tratado e incluem a retirada dos chefes de missão, a ruptura de relações diplomáticas, a ruptura de relações consulares, a interrupção parcial ou total das relações econômicas ou das comunicações e o emprego das forças armadas.

É cristalino, como bem definido no Tratado, que as medidas contemplam ações contra um Estado-Parte e jamais a responsabilização individual dos governantes ou de pessoas e organizações ligadas a um governo. O TIAR tampouco autoriza a criação de mecanismos de cooperação para crimes transnacionais e menos ainda repressão a novos tipos de crime, como é o caso da corrupção elevada à categoria de transnacional e usada como forma de guerra jurídica contra líderes políticos no continente.

É de se destacar, princípio basilar do direito internacional, que o mecanismo de segurança coletiva não permite a ingerência nos assuntos de domínio reservado dos Estados. Ao contrário, tanto a Carta da ONU quanto a da OEA preservam o princípio da não intervenção, mesmo em casos de violações sistemáticas de direitos humanos, crimes de terrorismo, corrupção e dos outros atos invocados pela RC30/RES.1/19, da Reunião de Consulta dos Chanceleres da OEA.

Desde a sua assinatura, o TIAR foi invocado cerca de vinte vezes, mas nunca foi de fato aplicado. A influência dos EUA ficou evidente em 1988, quando a Argentina o invocou para angariar apoio contra o Reino Unido na guerra das Malvinas, momento em que os EUA se negaram a cumpri-lo, permitindo a agressão de uma potência estrangeira contra um país do continente.

Em 2001, após os atentados de 11 de setembro nos EUA, o Brasil, sob a presidência de Fernando Henrique Cardozo e num gesto de alinhamento com os EUA, invocou o TIAR, mas a iniciativa não recebeu apoio e foi até bastante questionada, demonstrando o desprezo dos países da região pelo obsoleto instrumento de dominação regional.

Não é de se estranhar, portanto, que o TIAR venha a ser resgatado com força no atual momento e com apoio irrestrito do Brasil, em consonância com a política externa vassala e subserviente do governo Bolsonaro. Recentemente, conforme revelado pelo site The Intercept, foram conhecidos os documentos que revelam os planos dos Estados Unidos para o Brasil, um plano de quatro anos para reconstruir a economia do país e abri-la a corporações estrangeiras, via privatizações e parcerias público-privadas, inclusive no setor de petróleo. A injeção de dinheiro (48 bilhões de dólares) por intermédio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), e as medidas descritas nos documentos favoreceriam a troca de poder na Venezuela, pois a saída da crise permitiria a Guaidó reivindicar a responsabilidade pela assistência internacional, como vem fazendo desde que se autoproclamou presidente.

Com mais de 2,9 bilhões de barris por ano, os Estados Unidos são os maiores importadores de petróleo do mundo. E cerca de 500 milhões de barris são provenientes da Venezuela, cujas reservas são dez vezes maiores que as estadunidenses. Por outro lado, o país é considerado estratégico do ponto de vista logístico, porque o custo de importação é inferior ao do Golfo Pérsico.

Mesmo assim, e apesar do amplo reconhecimento de Juan Guaidó pelos países do Grupo de Lima, os intentos para que ele fosse legitimado e confirmado internamente falharam, justificando a estratégia de afastar o governo de Maduro por intermédio de práticas típicas da Guerra Fria.

O TIAR, como tal, é um tratado obsoleto e marcado pelo autoritarismo de outros tempos, mas que agora passa a ser resgatado como instrumento adicional das guerras híbridas no continente, um espécie de novo Plano Condor. O uso contemporâneo inclui resgatar a narrativa do terrorismo e da agenda da corrupção transnacional como forma de justificar os mecanismos de persecução criminal e combate a governos não alinhados.

Não é por outra razão que a resolução prevê a criação de uma rede, de caráter operacional, com o propósito de intensificar a cooperação jurídica, judicial e policial para investigar atos de lavagem de ativos, tráfico de drogas, terrorismo e a criminalidade organizada transnacional. Nas palavras do suposto chanceler de Guaidó, Julio Borges, a constituição de uma inteligência para investigação contra a corrupção, lavagem de dinheiro e violação de direitos humanos “vai atuar como um corpo único na região”.

A semelhança com o uso do direito para fins políticos não é coincidência. O lawfare, como tem sido denunciado em muitos lugares do mundo, é uma prática ardil do uso do direito para fins geopolíticos e que, no caso do TIAR, também parece operar, utilizando o pretexto da cooperação internacional aos graves crimes transnacionais para legitimar o uso do mecanismo de intervenção armada para além de seus propósitos originais.

Entendemos, portanto, ser urgente denunciar o TIAR por sua iminente ameaça bélica contra a Venezuela, contrariando o princípio da solução pacífica de controvérsias e abrindo um precedente perigoso e irreversível para a paz no continente.

*Gisele Ricobom, Larissa Ramina e Carol Proner – Doutoras em direito internacional, membros da Secretaria de Relações Internacionais da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD

Foto: Divulgação/Redes Sociais

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