Cruzada contra a “ideologia de gênero” não é apenas moralista: Bolsonaro tenta mobilizar população pelo ódio e medo. Resistência deve furar bolhas e reunir outras vítimas da opressão — em articulação mais ampla de movimentos sociais
por Marcos de Jesus Oliveira*, em Outras Palavras
A promulgação da Constituição de 1988 alimentou a esperança de uma nova era da vida republicana brasileira em virtude do fato de que um conjunto de direitos e liberdades individuais foi reconhecido e inúmeros direitos sociais, consagrados. Com o passar dos anos e com as variadas dificuldades enfrentadas na efetivação dos direitos preconizados pela Carta Magna, alguns começaram a afirmar que, embora tivéssemos uma constituição muito avançada em termos sociais, a prática era de uma democracia limitada em que parte considerável da população não tinha seus direitos mais fundamentais garantidos. Mais recentemente com o impedimento da ex-presidenta Dilma Rousseff, em 2016, tornou-se comum falar em ruptura do pacto democrático de 1988. Tanto à tese de uma limitação da democracia quanto à de sua ruptura subjaz uma concepção contrastante entre democracia formal e real, supondo uma pacificação social através da ordem jurídica.
A meu ver, a limitação ou a ruptura democráticas não são a interrupção de um processo em curso, mas momentos nos quais se entrevê a positividade do poder ou do direito de forma mais intensa, seu papel normalizador das condutas de homens e mulheres. Para dizê-lo de outro modo, a limitação ou a ruptura democráticas não representam desvios da democracia, já que, como regime jurídico-político em que o poder soberano se exerce pela possibilidade do Estado de exceção, as democracias ocidentais modernas convivem constantemente com a suspensão dos direitos e das garantias fundamentais. Tal compreensão tornará possível abordar o atual governo como marcado por uma racionalidade que, embora não seja uma invenção propriamente sua, aciona como principal estratégia o pânico moral através da qual pretende dificultar a agenda de direitos humanos da comunidade LGBT e, como consequência, reafirmar um poder de normalização da vida, de estabelecer quais vidas são dignas ou não de consideração política.
Não é de hoje que os ditos do atual presidente Jair Bolsonaro chamam a atenção por seu conteúdo de aversão à comunidade LGBT ou a outros grupos sociais historicamente marginalizados. Ainda quando era deputado federal declarou: “Agora virou bagunça. O próximo passo vai ser a adoção de crianças (por casais homossexuais) e a legalização da pedofilia”. A preocupação com a possibilidade de constituição de famílias homoparentais deixa emergir suas ansiedades em relação à segurança do corpo político, revelando nuances de uma racionalidade voltada para a purificação e a higienização das relações sociais. A máquina binária divisora do mundo em heterossexuais e não-heterossexuais funciona para melhor controlar os indivíduos considerados perigosos à sociedade e utiliza uma linguagem que distingue saudáveis de não-saudáveis através da qual se transmitem os processos de normalização das condutas sexuais.
A recente suspensão de editais voltados para a temática LGBT na Agência Nacional do Cinema (ANCINE) por parte do presidente e sua equipe insinua que a preocupação com o corpo social apresentada acima se faz pela disseminação de “pânicos morais” cujo sentido pretende descrever processos sociais pelos quais o medo ou o terror são acionados contra determinadas condutas ou comportamentos tomados como uma ameaça à ordem social. Quando o atual presidente diz que a presença de LGBTs em materiais didáticos incentivam a homossexualidade, estamos diante desta tentativa de arregimentar a opinião pública através do medo. A estratégia não é inteiramente nova, já que, durante o primeiro mandato do governo Dilma Rousseff (2011-2014), material pedagógico de combate à discriminação e ao preconceito a LGBTs elaborado pelo Ministério da Educação, à época sob a responsabilidade de Fernando Haddad, e entidades da sociedade civil, foi vetado pela então presidenta por ser considerado impróprio. Além disso, o governo Dilma não se esforçou contra a retirada da menção à orientação sexual e à identidade de gênero do Plano Nacional de Educação aprovado pela Câmara Federal em 2013 cujo efeito cascata se viu na elaboração dos Planos Estaduais e Municipais de inúmeros estados e municípios no Brasil. Em 2013, também foram cortadas pelo governo federal campanhas contra doenças sexualmente transmissíveis e AIDS direcionadas ao público LGBT.
Também não é de hoje que os que se opõem à luta pela afirmação da cidadania LGBT no Brasil vêm ocupando diferentes espaços sociais como a mídia, as igrejas, casas legislativas etc. Em anos recentes, aglutinaram-se em torno de uma luta comum contra o que chamam de “ideologia de gênero” que pretende, segundo eles, impor uma “ditadura gay” no país, obrigar a sociedade a concordar com suas ideias e estilos de vida. Diferentes iniciativas em nível federal, estadual e municipal passaram a propor dispositivos legais de criminalização do debate sobre gênero e sexualidade nas escolas sob o argumento de que tais discussões devem se restringir à esfera privada familiar. Trata-se de mais uma tentativa autoritária de silenciamento de vozes historicamente excluídas através de um controle sobre o dizer. É assim que o atual presidente e seus ministros têm se empenhado a aprovar uma agenda conservadora nas reuniões das Organização das Nações Unidas (ONU) com aquilo que chamam de aliança “pro-família”. Além disso, utilizaram seu poder de forma arbitrária para que o vestibular da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), que previa cotas para pessoas transgêneras, fosse cancelado.
O discurso da segurança do corpo social, conforme afirma Michel Foucault, permite, a um só tempo, congregar técnicas de vigilância, de diagnóstico e de classificação, ou seja, todo um conjunto disciplinar, e mecanismos jurídicos voltados para gerir e controlar perigos e ameaças sociais. Nessa luta pela definição de um corpo social saudável e forte subjacente aos discursos até então apresentados, o ativismo anti-LGBT buscou aprovar o projeto denominado de “cura gay” sob os auspícios de Marco Feliciano, em 2013, quando esteve à frente da presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minoria da Câmara Federal. O projeto tinha por objetivo sustar a resolução 01/99 do Conselho Federal de Psicologia que proíbe “qualquer ação [por parte de psicólogos] que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas”. Embora o projeto tenha sido retirado de tramitação e ido para a esfera judiciária em 2017, o importante é observar como a ideia de cura remete à defesa da integridade do corpo social através da qual a malha da normalização da vida se efetiva. A ideia da “cura gay” voltou à arena do debate em 2019 graças a uma das chapas que disputou a direção nacional do Conselho Federal de Psicologia (CFP). Felizmente, a tal chapa foi derrotada.
O abandono de certas vidas ao reino da vida nua, como diria Giorgio Agamben, destituindo-as de consideração política, não é algo inteiramente novo na sociedade brasileira e, é bom dizer, não está reservado a apenas LGBTs; afinal, mulheres, negros e indígenas sofrem com a violência endêmica. Durante a Constituinte de 1988, o movimento LGBT, à época designado como movimento homossexual, se organizou para propor a inclusão da expressão “orientação sexual” no inciso IV do artigo 3º. da Constituição Federal que fala em promover o bem de todos, “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. A proposta de inclusão da expressão foi rejeitada assim como têm sido rejeitados todos projetos de lei de proteção aos LGBTs no parlamento brasileiro no período democrático. Durante os anos 1990, o movimento LGBT teve como uma de suas principais pautas a aprovação do projeto de lei que autoriza o casamento entre pessoas do mesmo sexo, sem, no entanto, obter sucesso.
Ao longo das últimas décadas, foram apresentados projeto de lei que criminaliza a homofobia e a transfobia e projeto de lei que busca garantir à população trans o reconhecimento de sua identidade de gênero. Além de não aprovados, os dois projetos despertaram intensa animosidade social da parte de grupos contrários à agenda de afirmação da cidadania LGBT. Se hoje a comunidade LGBT conta com o reconhecimento da união estável de pessoas do mesmo sexo, com a possibilidade de mudança de nome sem a necessidade de judicialização ou com o recente reconhecimento da homo/transfobia como crime de racismo é porque sua atuação, além de se dirigir ao Legislativo, também se dirigiu a outras instâncias do poder como o Supremo Tribunal Federal que acatou algumas de suas demandas. Tudo isso parece evidenciar que o parlamento brasileiro tem se colocado cabalmente como um dos principais atores contra o avanço das demandas de LGBTs.
Aqui talvez valha lembrar Levy Fidelix, em debate realizado pela TV Record em 2014, candidato à presidência: “Então, gente, vamos ter coragem, nós somos maioria, vamos enfrentar essa minoria [gays]. Vamos enfrentar, não ter medo de dizer que sou pai, mamãe, vovô. E o mais importante é que esses, que têm esses problemas, realmente sejam atendidos no plano psicológico e afetivo, mas bem longe da gente, bem longe mesmo por aqui não dá”. No âmbito da premissa elaborada nos parágrafos iniciais, as palavras de Fidelix são ilustrativas de regimes políticos apoiados num poder soberano capilarizado em legislações, disciplinas e investimentos biopolíticos. Ao evocar a maioria como sujeito soberano com discurso de matiz bélico e militar, Fidelix busca distinguir, performativamente, amigos de inimigos, existências matáveis das não matáveis, vidas dignas de consideração política das vidas que devem se submeter a outras vidas. E quando falo em morte, refiro-me tanto ao extermínio físico direito como também ao extermínio simbólico, à exposição do outro à morte em decorrência do ódio, da humilhação ou da rejeição.
O discurso de Fidelix arregimentou muitos seguidores que passaram a dizer em tom de orgulho, como ele mesmo o fizera, que “aparelho excretor não reproduz”, dando força a movimentos organizados contra a afirmação da cidadania LGBT no país. Sua voz é, portanto, solidária a inúmeras outras vozes que orquestram a violência habitual a que LGBTs têm sido submetidos tanto durante a ditadura civil-militar na qual homossexuais e travestis foram perseguidos como em período de normalidade democrática em que LGBTs seguem sendo alvo de violência. A respeito deste último período, o exílio forçado do ex-deputado federal Jean Wyllys, no início de 2019, é apenas um exemplo escolhido aleatoriamente de uma lista extensa de ameaças sofridas por LGBTs. Nos dois períodos da história política brasileira, a hostilização, a injúria e o desprezo têm sido comuns à existência social de sujeitos LGBTs. É estarrecedor saber que, em 2012, no auge do período democrático, segundo dados da Secretaria de Direitos Humanos de 2014, foram registradas 9.982 violações de direitos de LGBTs no Brasil, o que dá um pouco mais de uma violação a cada hora. Além disso, o Brasil segue como uma das nações que mais mata LGBTs, uma média de um LGBT a cada dois dias.
O que a descrição da violência contra LGBTs feita até aqui pretende mostrar é que há nela uma finalidade normalizadora, funcionando como uma mensagem dada a comunidades dos vivos. As mensagens de ódio como “matei porque odeio gay” deixada em alguns casos de homicídios contra LGBTs tem papel disciplinador, de estabelecer as fronteiras entre o respeitável e o não-respeitável. São territórios de exceção em que poder de normalização se conecta com uma soberania capilarizada no tecido social exercida de forma discricionária. Na sociedade brasileira, o ódio tem sido um afeto político altamente fundamental à conformação dos sujeitos à heteronormatividade e tem sido direcionado a LGBTs como forma de colocar suas vidas em risco ou em situação de perigo. Esse ódio pretende se transformar em um auto-ódio para que, mediante homofobia ou transfobia internalizadas, o poder funcione de forma automática, fazendo do sujeito ele mesmo seu algoz e higienizando a sociedade. Não é coincidência o fato de que o suicídio entre homossexuais é muito maior do que entre heterossexuais.
A violência contra LGBTs no Brasil se manifesta pelo extermínio físico direto e pelas malhas de normalização, tendo existido tanto durante a ditadura civil-militar como durante o chamado período democrático. Isso não significa, de maneira alguma, igualar os dois regimes, mas mostrar que, às vezes, não são tão opostos como se supõe e que a democracia pode conviver com a barbárie; aliás, convive constantemente. Por isso, tenho argumentado a favor da necessidade de transversalização das pautas e das reivindicações de LGBTs. O sucesso da atuação do movimento LGBT dependerá da capacidade de suas lideranças principais em construir articulações com outros movimentos sociais progressistas em decorrência do caráter múltiplo das opressões e também das forças que se arregimentam contra a cidadania LGBT. Desde o enfoque apresentado, o que está em jogo na limitação ou na ruptura democráticas é um controle sobre a vida e sua normalização, fazer viver os saudáveis e deixar morrer os não-saudáveis. Algo assim revela que a construção das identidades coletivas necessárias aos movimentos de contestação e de democratização das estruturas de poder não decorrem de uma identidade prévia à luta, mas são constituídas no seu fazer contestatório.
*Docente da Universidade Federal da Integração Latino-Americana.
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Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo