Alegando que a TI Comexatibá está sem demarcação, juiz determina a reintegração de posse de área na aldeia Cahy

“Novamente essa insegurança de ficar no território ameaçado, de sair de nossas casas e terra, mas não vamos sair não”, diz Pataxó

Por Renato Santana, Cimi

A aldeia Cahy, na Terra Indígena Comexatibá, do povo Pataxó, está na mira de uma reintegração de posse sentenciada pela Justiça Federal de Teixeira de Freitas (BA). A área a ser restituída está restrita a esta aldeia da Terra Indígena, localizada no município de Cumuruxatibá, extremo sul baiano, e sobreposta, além das fazendas, por uma parte do Parque Nacional do Descobrimento (PND). 

Para a realização do despejo, porém, um novo despacho judicial será necessário determinando a definição do prazo para a execução, considerando que a decisão liminar anteriormente concedida, e que determinava a reintegração de posse, foi cassada no processo de Suspensão de Liminar (nº 1111), que ainda tramita no Supremo Tribunal Federal (STF). 

O juiz Guilherme Bacelar proferiu a sentença de mérito no dia 10 do mês passado, confirmando, em todos os seus termos, liminar de 2017, que determinou o despejo, mas que foi barrada pelo processo de Suspensão de Liminar. Bacelar julgou como ainda procedentes os pedidos para reintegrar a posse aos requerentes. 

A Justiça Federal de Teixeira de Freitas havia determinado a reintegração de posse, com prazo estabelecido para a realização do despejo, mas no dia 25 de julho de 2017, a então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, suspendeu a liminar a pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR).

A decisão da ministra, porém, suspendeu o despejo até a pronúncia da sentença de mérito no processo de origem, que seguiu tramitando na Justiça Federal de Teixeira de Freitas. O juiz, então, decidiu o mérito da questão pela reintegração e a publicou no início de setembro. Porém, o art. 297 do Regimento Interno do STF diz que “a suspensão de segurança vigorará enquanto pender o recurso, ficando sem efeito, se a decisão concessiva for mantida pelo Supremo Tribunal Federal ou transitar em julgado”.

O juiz considerou como argumento central a não conclusão do processo administrativo demarcatório da Terra Indígena Cahy Pequi (agora Comexatibá), e que, sem a conclusão, não se pode reconhecer que o imóvel ocupado pelos Pataxó corresponde a uma área tradicionalmente ocupada.

A decisão judicial segue a orientação do Direito Civil em relação às disputas possessórias. No entanto, conforme análise da Assessoria Jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), os direitos indígenas são reconhecidos como originários e as disputas possessórias devem seguir os preceitos constitucionais.

“O entendimento majoritário dos tribunais brasileiros, especialmente do STF, compreende que as disputas possessórias envolvendo indígenas não podem se pautar pelo Direito Civil e sim pelo Direito Constitucional, que reconheceu as terras indígenas como direito originário e de usufruto exclusivo dos povos nativos”, explica o assessor jurídico do Cimi, Adelar Cupsinski.

Apreensão e resistência 

Desde 2013, os Pataxó da Terra Indígena Comexatibá, divididos em 14 aldeias, sofrem com tentativas de reintegração de posse. O Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação do território já foi publicado pelo Ministério da Justiça chegando à fase de contestações. Neste ponto emperrou e com o atual governo não há muitas esperanças de que avance, na medida em que o próprio presidente afirma que não irá demarcar nenhum milímetro de Terra Indígena. 

“A gente acompanha os processos pela Justiça. A gente está sempre ligado nas movimentações. Quando tem uma decisão, a gente sabe. Pra não acontecer como em 2016 (leia mais abaixo), que nos pegou de surpresa”, explica Ricardo Pataxó. 

Os processos são sempre muito parecidos, explica o indígena. Este de 2016 ainda segue em trâmite e é movido por uma investidora no mercado imobiliário voltado ao turismo e à construção de resorts. A área de Mata Atlântica preservada, sobretudo pelos Pataxó, associada ao PND e às praias atraem o interesse privado.  

“Este segundo processo (o da reintegração em curso) é o que tínhamos conseguido uma vitória, mas o processo voltou para a primeira instância. Fizemos a audiência com o juiz, fomos dar nosso depoimento. Não adiantou. Os processos aqui são assim, muito parecidos”, lamenta o Pataxó.  

Ele explica que a comunidade está apavorada, mas que não sairá das terras tradicionais. “Novamente esse medo e insegurança de ficar no território ameaçado, de sair de nossas casas e terra, mas não vamos sair não”, conta. O indígena afirma que no final de setembro, após a sentença, um homem foi até a casa de uma idosa e a ameaçou, dizendo que ela e todos teriam de sair. 

“Temos vários projetos implantados, o Luz Para Todos, o projeto do governo federal que levou água para as aldeias, um outro projeto do Banco Mundial fortalecendo a nossa agricultura, o etnoturismo. São projetos ameaçados por essa reintegração. Construímos tudo isso para tratores virem destruir?”, questiona.  

O Pataxó relata que 80% das casas derrubadas na reintegração de 2016 estão novamente de pé. “Temos um Centro Cultural perto de ser concluído porque destruíram o nosso também. Então para a comunidade ver todo esse trabalho mais uma vez sob risco de ser desfeito… não é fácil, mas vamos resistir e lutar”, afirma.

Candara Pataxó explica: “vivemos vendo ameaças de todos os lados… fazendeiros, pousadeiros. Vivemos muito ameaçados, mesmo”. São contestações sobre o relatório da Fundação Nacional do Índio (Funai) que se convertem em ameaças. É histórico o convívio do povo Pataxó com a ação de pistoleiros, gente paga para matar lideranças e impor a narrativa de uma violência que o Estado finge não ver.  

“Existem muitas invasões (ao território), principalmente a partir do entorno do Parque (Nacional do Descobrimento),  que é de fazenda. Caçadores entram, matam os animais. Também retiram madeira. Nós temos a preocupação de proteger o que é nosso, mas parte do nosso território tá na mão do fazendeiro ou do parque”, diz. 

Para a indígena, a questão é que “a gente quer viver na nossa localidade de antes.Ter escola, uma vida como qualquer outra. Alguns dos jovens estudam na aldeia, mas uma parte precisa sair na cidade pra estudar. Aí são ameaçados, vivem esse perigo de voltar muito tarde pra aldeia”.    

Histórico: aldeia Cahy sob ataque

Em agosto de 2015, homens armados invadiram a aldeia Cahy e queimaram uma maloca que continha artesanatos e objetos de uso tradicional e religioso. Em seguida, ocorreu uma série de ataques de pistoleiros e os indígenas chegaram ao ponto de esconder seus filhos em caixas d’água, à noite, com medo dos tiros.

No início de 2016, no dia 19 de janeiro, uma ação de reintegração de posse surpreendeu dezenas de famílias. Além do posto de saúde e da escola, várias casas foram destruídas, muitas delas com os pertences dos indígenas em seu interior.

Aproximadamente 100 policiais federais, militares e civis, acompanhados de agentes da Companhia Independente de Policiamento Especializado/Mata Atlântica (Caema), chegaram à aldeia às sete horas da manhã, anunciando a reintegração de posse. 

“Eles deram um prazo para a gente retirar as coisas das casas, mas o prazo não foi suficiente. Mesmo assim, eles tocaram as patrolas por cima, com as coisas dentro mesmo”, afirma Xawã Pataxó, liderança da aldeia Cahy.

“A reintegração aconteceu de surpresa, no dia em que a comunidade estava se organizando para a festa de São Sebastião. A escola estava sendo organizada para o início do ano letivo, e eles tiraram tudo de dentro e jogaram numa área quase um quilômetro longe da aldeia, de fogão a giz de cera”, relata a liderança.

A ocupação Pataxó

Localizada no local estipulado por historiadores como o da chegada aproximada das caravelas de Pedro Alvarez Cabral, há 519 anos, tendo ao fundo o Monte Pascoal, a área é assediada por empreendimentos turísticos, como resorts, hotéis e restaurantes, que se aproveitam da história do lugar e do Parque Nacional do Descobrimento (PND), uma das poucas áreas de Mata Atlântica preservada na região.

“Nunca saímos dessa região. Nos expulsaram das áreas mais próximas do mar, mas nos deslocamos para outras localidades mais afastadas. A partir do século XX a situação foi ficando pior porque as cidades cresceram, a Mata Atlântica foi sendo devastada e os Pataxó também, porque Pataxó e Mata Atlântica são uma coisa só. Moramos muito tempo nas cidades, quase como mendigos, e decidimos voltar para as nossas terras”, explica Mandy Pataxó da aldeia Alegria Nova.

A partir dos anos 1960 e até o ano 2000, o crescimento da região ao redor da T.I Comexatibá é vertiginoso: surgem 21 municípios e a população saltou para cerca de 1 milhão de habitantes. Dos 3 milhões de hectares que compõem a região onde está a T.I Comexatibá, 2 milhões estão dominados por meia dúzia de empresas. 

O eucalipto toma conta de 800 mil hectares e o restante da área é formado por fazendas de gado e, mais ao sul, pela plantação de cana de açúcar. Os Pataxó, em tal contexto, são os principais guardiões do que resta de Mata Atlântica na região. A professora Maria Giovanda Batista, que coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas Interculturais e da Temática Indígena da Universidade do Estado da Bahia, em Teixeira de Freitas, explica como isso ocorre.

Conforme a estudiosa, a cosmologia Pataxó está atrelada à Mata Atlântica: “Os nomes dos filhos são de pássaros deste bioma e, da mata, eles retiram suas indumentárias, além da alimentação, a mesa farta… não há possibilidade de sustentação do ecossistema Mata Atlântica sem a demarcação da terra Pataxó”, diz Maria Giovanda. 

Ela conclui: “Um ambiente não pode ser sustentável com a desterritorialização de 15 mil indígenas, cuja população de crianças chega a oito mil”. Desde 2000, com o início das retomadas Pataxó de aldeias da T.I Comexatibá, 20 mil árvores nativas da Mata Atlântica foram plantadas pelos indígenas.

Imagem: Entrada para a aldeia Cahy guardada por jovens guerreiros Pataxó em imagem de 2016 – Renato Santana

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