Transporte público é financiado pelos usuários, a maioria de baixa renda. Estudo propõe dividir custos com quem pode pagar, por meio de tributação progressiva. Menos poluição e trânsito criariam cidades mais inclusivas
Um estudo do Inesc / Outras Palavras
Por que o transporte quase ou totalmente gratuito é uma discussão relevante? A resposta a essa pergunta permeia todo o estudo Financiamento Extratarifário da Operação dos Serviços de Transporte Público Urbano no Brasil, produzido pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), para mostrar soluções que possibilitam a oferta de um transporte coletivo de qualidade, com tarifas zeradas ou reduzidas, garantindo seu acesso a passageiros de baixa renda.
O documento foi escrito por um dos maiores especialistas em mobilidade urbana no país, Carlos Henrique de Carvalho, e suas conclusões foram apresentadas nesta quarta-feira (30/10), durante a audiência pública, na Câmara dos Deputados, que trata da regulamentação do transporte como direito social. Em resumo, o texto mostra como é possível criar fontes de recursos diferentes para subsidiar os gastos da população usuária de ônibus, já que hoje essas pessoas – em geral, de baixa renda – arcam quase sozinhas com a receita desse sistema no Brasil. Há estados como São Paulo e DF, que já usam algum tipo de subsídio público, mas são exceções.
Atualmente, o transporte coletivo no Brasil se mantém com R$ 59 bilhões ao ano, dos quais 89,8% (ou R$ 52,9 bi) vêm de tarifas cobradas dos passageiros, quase sempre pagas pela população de baixa renda. As subvenções públicas representam apenas 10,2% desse montante, enquanto as receitas não tarifárias (publicidade, por exemplo) somam R$ 375 mil.
Entendendo a injustiça de deixar 90% do custo de um serviço primordial à sociedade somente nas mãos dos usuários, oInesc vai propor ao Congresso a criação de um fundo de financiamento ao transporte público, com recursos vindos dos cofres públicos, de empresas privadas e até de pessoas que optam por não utilizar o transporte coletivo para se locomover. “Usando ou não o ônibus, todos se beneficiam do transporte coletivo, seja ao encontrar mais espaços nas vias ou ao garantir que um funcionário dependente deste meio chegue ao trabalho”, explica Cleo Manhas, Assessora Política do Inesc.
Com os custos desse sistema financiados por um fundo, as empresas de ônibus poderão reduzir o valor das tarifas, mantendo a qualidade e promovendo a expansão das linhas. Para a especialista do Inesc, só assim será cumprida a Emenda Constitucional 90, promulgada em 2015 e de autoria da deputada Luiza Erundina (PSOL-SP), que transformou o transporte público em um direito social no Brasil, colocando-o no rol das garantias do Estado para com seus cidadãos. “Do mesmo modo que existem subsídios para garantir o acesso da população à educação, saúde, alimentação, lazer e outras condições essenciais a uma vida digna, o transporte público também deve ser financeiramente acessível a todos”, defende.
Na avaliação do Inesc, o atual modelo do sistema de transporte está preso a um ciclo vicioso, na medida em que o encarecimento das tarifas de ônibus empurra a demanda para o veículo individual, onerando ainda mais o custo do transporte público, já que menos pessoas pagarão por ele. Com mais carros nas ruas, os congestionamentos urbanos crescem, o que aumentam os gastos para as empresas de ônibus, que compensam a diferença em novos reajustes, resultando em outra perda de demanda. “Além disso, hoje o sistema não oferece transparência sobre o lucro das empresas, transformando um direito em mercadoria”, acrescenta.
Nas duas últimas décadas, o encarecimento das tarifas e as políticas de estímulo à indústria automobilística fizeram o transporte público perder espaço para o veículo individual no País. Hoje, do total de quilômetros percorridos por veículos motorizados nas grandes cidades, os carros representam 44% do trajeto, acima do deslocamento feito por ônibus (42%) e motocicletas (7%), segundo dados da Associação Nacional de Transporte Público. Entre os anos de 2016 e 2018, a passagem de ônibus urbano aumentou 20,9% no País, superando a inflação (IPCA) de 13,5% acumulada no período.
A porta-voz do Inesc lembra ainda que sua proposta está alinhada à edição da Lei da Mobilidade Urbana (12.587, de 2012), cujo texto deixou clara a possibilidade da implementação de um financiamento extratarifário, entendendo que a mobilidade nas grandes cidades é uma responsabilidade de todos, incluindo as pessoas que optam pelo automóvel, mas continuam sendo beneficiadas pela existência de meios de locomoção coletivos.
Além de menos vias congestionadas, toda a sociedade é impactada positivamente com um transporte público de qualidade e economicamente acessível. Afinal, o prejuízo econômico gerado pelos ônibus – considerando a poluição, os danos ambientais e os acidentes – é de R$ 16,6 bilhões por ano, contra uma perda 8 vezes maior (R$ 137,8 bilhões) provocada pela circulação de carros e motos. “Não faz sentido só os passageiros sustentarem o transporte coletivo, quando cada ônibus consegue tirar 50 carros da rua, e uma composição de metrô elimina 800 automóveis das vias públicas”, sentencia Cleo.
Diante deste cenário, o Inesc levou para a audiência pública na Câmara modelos de composição do fundo de financiamento ao transporte coletivo, com recursos vindos de novas alíquotas para os impostos IPTU, IPVA, ICMS da gasolina, de maneira progressiva (quem tem maior renda paga mais). As simulações foram elaboradoras pelo especialista no tema Carlos Henrique de Carvalho, que também considerou uma cobrança adicional das empresas, de acordo com o tamanho da folha de pagamento.
As respectivas justificativas para a escolha dessas receitas são: quem tem imóveis em regiões valorizadas pela oferta de ônibus e metrô no local deve pagar um IPTU maior; donos de automóveis precisam aceitar um aumento no IPVA, pois com mais gente migrando para um transporte coletivo barato, menos trânsito encontrarão no seu trajeto; o Estado, que abrirá mão de uma pequena parte da arrecadação com ICMS, estará cumprindo seu papel social; e os empresários devem participar desse rateio, pois recebem em contrapartida o aumento na circulação de potenciais clientes pela cidade, além de reduzir ou zerar o valor pago em vale transporte aos seus funcionários.
O Inesc formulou alguns exemplos de como seria o financiamento do transporte público, pensando em três situações: a) tarifa zero de transporte público; b) redução de 30% no valor atual da tarifa; c) redução da tarifa de transporte público em 60% . Em todas elas, o aumento da demanda de usuários foi calculado, já que um ônibus barato atrairia muitas pessoas que hoje preferem o carro. “Preparamos diversas sugestões para mostrar que não existe uma composição única de fontes de financiamento e, por isso, esse tema merece ser amplamente discutido, desde que fiquem garantidos o acesso de toda a população a um transporte público de qualidade e a progressividade no modo de cobrança dos novos recursos para sustentá-lo”, finaliza Cleo.