Chile volta às ruas e pede que Piñera se vá

Vitrine do projeto neoliberal em chamas, após nova manifestação gigante. População exige Constituinte para superar ditadura dos mercados, e rechaça concessões do presidente. Agora, três cenários. Governo pode não chegar ao fim

Por Paul Walder* | Tradução: Antonio Martins, em Outras Palavras

Fiquem sabendo que, muito mais cedo do que tarde, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor”. As multidões chilenas pareciam, ontem (4/11), determinadas a cumprir as últimas palavras do presidente Salvador Allende, lançadas pelo rádio em 11 de setembro de 1973, quando, em meio a um golpe militar articulado pelos EUA, a aviação já bombardeava o palácio de La Moneda. Quase 50 anos depois, centenas de milhares tomaram as ruas de Santiago e pediram que o atual chefe de Estado, Salvador Piñera, renuncie – mesmo depois de ele ter cancelado o aumento das passagens de metrô (estopim dos protestos), encerrado o Estado de Emergência e apresentado um tímido pacote de “medidas sociais”.

Agora, após um mês de revolta, as exigências dos manifestantes se apuraram. Ninguém aceita mais Piñera. Pede-se uma Assembleia Constituinte para rever, de cabo a rabo, a Carta que o ditador Augusto Pinochet impôs em 1980, para tentar eternizar, numa única tacada, a ditadura das armas e a dos mercados. Atacam-se os símbolos máximos do projeto neoliberal: privatização da Previdência e da Água, precariedade dos serviços públicos, arrocho dos salários, especulação imobiliária, privatizações, poder sem freios do grande poder econômico.

Novamente reprimidas com brutalidade, as ruas não se calaram. A multidão cercou duas vezes o antigo Congresso Nacional (transferido para Valparaíso), dirigiu-se à Corte Suprema, tentou chegar a La Moneda, reivindicou do Congresso que não aprove as “concessões” de fachada de Piñera. Uma greve estudantil interrompeu as aulas. Diversas categorias estão de braços cruzados. Uma pesquisa de opinião da Universidade do Chile revelou que os chilenos comuns estão com os que tomam as praças: 85,3% apoiam os protestos; 83,9% querem mudar a Constituição.

Que virá agora? No texto a seguir, o jornalista e escritor Paul Walder, diretor da revista digital Politika, vê, no novo cenário, três horizontes. No terceiro deles, pelo qual ele próprio atua, a ruas não se cansarão; Piñera se esvaziará rapidamente e será forçado a renunciar; virão novas eleições e Constituição. Mas nada, por enquanto, é certo, frisa Walder: “o jogo é dia a dia, inclusive hora a hora”. (A.M.)

Duas semanas depois de irromperem os grandes protestos de 18/10, que alguns artistas e criadores começam a chamar de Revolução de Outubro, passam em nossas conversas, nos debates e declarações os processos e incidentes políticos e econômicos dos últimos trinta anos.

Em pouco tempo caíram máscaras, ídolos de pés de barro, o discurso do mercado como o dogma religioso de uma ordem que cruzou gerações e demonstra, minuto a minuto, sua indecência e falsa moral. O modelo de mercado, aquele deus ritualizado, parece jazer destronado e fumegante.

Até agora, muitos elementos fazem pensar que se trata de uma mobilização que expressa o rechaço a uma ordem, e a demanda de transformações radicais, mudança de ciclo e de regime. A força e as demandas publicam não apontam a reivindicações pontuais – o que ficou evidente com a indeferença e rechaço da população ao pacote de medidas que Sebastián Piñera ofereceu há uma semana.

Se for assim – e é muito provável que seja –, a partir destes dias a sociedade organizada colocará em marcha uma estratégia para a canalização das forças e para elevá-las da ação social à política. Um primeiro passou foi a oportuna presença e intervenção das principais organizações sociais e sindicais, que convocaram a manifestação desta terça-feira e a criação de assembleias e conselhos populares, ou cabildos. Num primeiro momento, têm caráter comunal e territorial. Juntas de vizinhos, centros culturais e de bairro, clubes esportivos estão convocados a recolher as principais demandas da população.

A resposta foi enorme, mas não inclui todos, nem se compara com as imensas multidões em marchas e concentrações. Junto à embrionária instalação de assembleias e aos trabalhos de organizçaão, as demandas desencadearam um processo de articulação da Mesa de Unidade Social, que agrupo as maiores centrais sindicais e organizações sociais. Neste processo, que é o fundamental, a população se pergunta: por que parte começar o desmantelamento da ordem de mercado?

Alcançado o fim do Estado de Exceção e a retirada dos militares das ruas, a Unidade Sidical aponta mais uma longa lista de soluções aos problemas sociais básicos. Vai do fim das AFP – as organizações que gerem a Previdência privatizada e obrigatória – da redução da jornada do trabalho, do congelamento de todos os projetos de lei enviados pelo governo que favorecem as elites (como a contrarreforma tributária) até a instalação de uma Constituinte para redigir nova Carta. E há também outra demanda em crescimento: é a renúncia de Piñera, que toma corpo nestes dias como acusação constitucional. Nas redes sociais e nas ruas, a consigna que lidera todas as outras é o afastamento ou demissão do mandatário.

A duas semanas da explosão, assistimos a um governo que observa, reprime e parece esperar que a multidão se acalme por si mesma. Assim como foi incapaz de avaliar e antecipar a explosão social, tampouco agora sabe como reagir. Diante de um povo indignado, que se agita e se reúne cada vez mais numeroso, Piñera não encontra a resposta nem envia um sinal político que conduza à mínima calma.

Os cenários

Neste momento, em um país em plena ebulição, há ao menos três cenários prováveis. Isso, na medida em que a correlação de forças continue a evoluir em favor dos manifestantes, e novos grupos e setores comecem a se somar. Na quinta-feira passada, por exemplo, houve um protestos de caminhoneiros em Valparaíso, para exigir o fim das AFPs e dos pedágios abusivos nas rodovias concedidas à iniciativa privada.

Neste momento mutante, e sem rumos claros, o cientista político Juan Crlos Gómez Leyton observa, numa primeira instância, um governo que amplia o autoritarismo e avança a uma ditadura de corte similar à que manteve, durante os anos 1990, Alberto Fujimori, no Peru. Com o pretexto de frear a “delinquência” e os “Vândalos”, Piñera poderia tornar mais dura a limitação de liberdades. Neste cenário, muito mais direitos civis poderiam ser suprimidos, com censura à informação e proibição de reuniões. Isso viria a partir de um acordo com os partidos de direita e alguns que hoje fazem oposição, que poderiam apoiar o presidente com a desculpa da governabilidade.

Um segundo cenário é aquele em que, sem alterar a ordem constitucional, façam-se reformas que satisfaçam algumas das demandas, de alguns dos setores. Provocando a divisão, e o isolamento dos setores mais radicais, fragmenta-se o movimento e Piñera consegue manter-se no governo. Este cenário é provável se os protestos entrarem num processo de rotinização, enquanto o governo ganha tempo para cansar os líderes e em especial os manifestantes mais esporáricos e não organizados.

Um terceiro cenário consiste num aumento das mobilizações, até que Piñera e seu governo caiam. Este seria o que Gómez Leyton chama de “golpes civis cidadãos”. Uma insurreição cidadã, quem não é uma insurreição revolucionária, anuncia que não busca tomar o governo mas simplesmente derrubar o “mal governante” e pede que, por meio de um governo provisórios, convoquem-se novas eleições.

Precipitação de fatos, mas plena incerteza de todos os atores envolvidos. Uma grande confusão envolve o governo (que desde a eclosão da revolta emitiu sinais confusos e contraditórios), toda a classe política e a população (cujas respostas, nestes momentos, podem conduzir a qualquer parte. Não há no Chile de hoje nem analista, nem guru político, que possa antecipar o que se passará. O jogo é dia a dia, e inclusive hora a hora.

Pode-se afirmar que o governo de Piñera terminou e a ordem neoliberal, se não entrou em colapso, está se arruinado. O risco-pais, a fuga de capitais, a queda brutal dos preços das ações, a saída de investidores – tudo isso são fatos. Mas o maior lance foi feito pela população – que só se moverá se o governo responder a suas demandas, todas abertamente contrárias à doutrina neoliberal. Desde recuperar as aposentadorias, a elevar o salário mínio, a estatizar os serviços público – tudo isso é um golpe mortal às políticas de “livre” mercado.

*Paul Walder é um jornalista e escritor chileno, diretor do site politika.cl e colaborador do Centro Latinoamericano de Análise Estratégica (CLAE, estrategia.la)

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