Pacote Guedes (1): Uma distopia cujo tempo passou

Reduzir salários. Desobrigar governantes de investir em Saúde e Educação. Cancelar concursos públicos. Fechar 25% dos municípios. Em realidade paralela, ministro age como se o neoliberalismo não estivesse em crise. Valeria olhar ao Chile…

Por Paulo Kliass*, em Outras Palavras

O roteiro já era mais do que conhecido. Depois de aprovada a “Reforma” da Previdência, o governo passaria imediatamente para a segunda etapa do processo de desmonte de políticas públicas e de destruição do pouco que resta de Estado de Bem Estar Social em nossas maltratadas terras. Bolsonaro ficaria um pouco mais recuado na cena, com o justo receio de se envolver demasiadamente com as propostas tresloucadas de seu superministro para assuntos econômicos.

Assim, conforme o combinado, Paulo Guedes vai para a frente dos holofotes com a missão de anunciar o desastre. Ocorre que o rapaz parece ter passado um pouco do tom aceito pelas próprias elites envolvidas até o pescoço com seu projeto de neoliberalismo um tanto fora de época. As propostas envolvem um número ainda desconhecido de propostas de emendas constitucionais, tamanha a ambição demolidora do aprendiz de Chicago boy.

No início, o cronograma previa apenas uma “Reforma” Administrativa depois do sacolejo previdenciário. No entanto, com a queda do secretário da Receita Federal por insistir na criação do imposto único com base numa CPMF remodelada, Guedes resolveu retomar o tema da “Reforma” Tributária. Não anunciava quais as diferenças de suas ideias com relação aos projetos já em debate na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. O pacote de maldades começava a ganhar volume.

Mais destruição a caminho

Na sequência, o apetite pelas receitas das privatizações e o desejo de transferir o patrimônio público ao setor privado aperta a orelha esquerda do responsável pela economia. Ele se mexe e convence o Palácio do Planalto a introduzir no conjunto algumas medidas para acelerar e destravar a venda das empresas estatais federais.

Não contente com tudo isso, algum tecnocrata obnubilado teve a ideia mirabolante de acabar de vez com as reservas que a União dispunha sob a forma de saldos nos fundos constitucionais e não constitucionais. Trata-se de um volume multibilionário de recursos financeiros, que não vinham sendo utilizados em função da obsessão de cortes e mais corte ditada pela lógica da “austeridade” a todo custo. Com isso, o raciocínio simplista e perigoso foi o seguinte: já que os recursos não estão mesmo usados para funções precípuas, melhor logo acabar com os fundos e torrar esse dinheiro todo para zerar o déficit fiscal. De preferência para pagar juros – as famosas despesas financeiras da União. Uma loucura. E lá se vão as possibilidades de investimento em ciência, tecnologia e inovação, desenvolvimento regional, telecomunicações, infraestrutura e por aí vai.

Mas a voracidade destruidora segue em frente. A incapacidade de conviver com a complexidade chamada Brasil volta a sua artilharia pesada contra o arranjo do pacto federativo. Como a recessão econômica encomendada tem cortado receitas tributárias dos três níveis da administração há vários anos, a solução fácil passa pela sugestão de promover o desaparecimento das cidades. O plano prevê simplesmente a extinção dos municípios considerados pelo burocrata de plantão como “inviáveis”. Se a medida fosse implementada hoje, por volta de 25% das cidades deixariam de existir – quase 1.300 em um total 5.600.

Amplo pacote contra o Brasil

Os mais entendidos no assunto acham que essa proposta seria um verdadeiro suicídio político para Bolsonaro e sua base de apoio em um ano que antecede as eleições municipais de 2020. Assim, ela entraria direto na conta da estratégia do chamado “bode na sala”. Ou seja, serviria para Guedes confirmar sua fama de mau junto ao financismo, mas não seria pra valer em termos de tramitação no Congresso. Aguardemos, pois.

A partir do momento em que anunciou a estratégia dos “3 Ds” há um tempo atrás, Guedes não largou mais essa sua ligação quase transcendental com o “desobrigar, desindexar e desvincular”. Na verdade, trata-se de uma intenção de revogar a natureza obrigatória de determinados gastos, como saúde ou educação. Em seguida, evitar todo e qualquer tipo de indexação das despesas, como o necessário alinhamento automático do piso básico da previdência social ao salário mínimo. Finalmente, as medidas propõem a eliminação de qualquer vinculação de dispêndio orçamentário a partir de um determinado tipo de receita. Ou seja, ficaria liberado ao bel prazer do governante de plantão fazer o uso que bem desejar daquele recurso.

Mais à frente surge o destacamento da “Reforma” Administrativa. Esta é aquela que vinha sendo apresentada como a parte mais substancial do processo de desmonte do Estado pós Previdência. No conjunto das medidas, aparecem as que foram destiladas aos poucos pelos grandes órgãos de comunicação. Trata-se de um reedição do discurso de Collor de Mello, três décadas mais tarde. A identificação dos servidores públicos como os vilões do gasto público, os mesmos que eram chamados em 1989 e 1990 de marajás.

A partir deste mote de forte apelo populista, Guedes atropela com medidas que vão desde o fim da estabilidade até a eliminação da obrigatoriedade de concurso para ao ingresso no serviço público. Além disso, promove a unificação forçada de carreiras e introduz um piso de ingresso muito abaixo do que pressupõe a justa remuneração de profissionais qualificados. Enfim, trata-se de uma estratégia – por dentro e por fora – de destruição do Estado brasileiro. Um verdadeiro adeus às definições básicas e fundadoras da nossa Constituição Federal.

Todo esse movimento inicial tem recebido o nome midiático de “Plano Brasil Mais: a transformação do Estado”. Curiosamente toda a pompa da apresentação não consta da página do Palácio do Planalto. O acesso ao material se faz apenas por meio da página do ministério da Economia. Para bom entendedor, meia palavra basta.

*Doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

Imagem: Wenyi Geng

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