“Integração do índio não pode ser pretexto para assimilação cultural”

por Maria Fernanda Ziegler, em Agência FAPESP

Os povos indígenas ocupam o território brasileiro há mais de 10 mil anos. Somam, atualmente, cerca de 900 mil indivíduos, distribuídos em 305 etnias com 274 línguas distintas, de acordo com o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2010. Essa população ocupa 722 áreas de reserva protegidas pela legislação, que correspondem a 13,8% do território e formam uma espécie de enclave de tensão entre duas culturas, dois sistemas de produção, dois Brasis.

“Integração no Brasil é sempre pensada como uma assimilação cultural, o que é absolutamente errado. Os indígenas não querem ser assimilados, poderiam, se quisessem. Mas não é essa a ideia”, disse Manuela Carneiro da Cunha, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), durante o oitavo episódio do programa Ciência Aberta de 2019.

Para a antropóloga, a assimilação cultural, “disfarçada no eufemismo de integrar o Brasil”, tem o objetivo de eliminar diferenças culturais e abrir caminho para a liberalização das terras indígenas para o mercado. O potencial de exploração mineral e agropecuário de algumas dessas áreas chega a suscitar em certos setores da sociedade a alegação de que há “muita terra para poucos índios”.

“A crítica está em dizer que os índios não são produtivos, no sentido entendido pelo capitalismo. Porém, a maneira como os não indígenas querem explorar e tirar as riquezas é apenas uma repetição de toda a história do Brasil – uma exploração constante das riquezas naturais, sem grandes resultados. É só tirar riqueza natural para exportar, sem aproveitar o conhecimento existente e, de fato, transformar isso em riqueza”, disse Artionka Capiberibe, professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Capiberibe sublinha que o direito do índio à terra foi reiterado na Constituição de 1988, carta que também celebra a diversidade como um valor a ser preservado.

Na avaliação de Geraldo Andrello, professor do Centro de Educação e Ciências Humanas (CECH) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com ou sem lei já é possível assistir os efeitos da simples vontade de liberar as terras indígenas para exploração.

“Houve um aumento de 85% dos alertas de mineração clandestina e de 38% dos alertas de desmatamento clandestino em terras indígenas. Isso só no primeiro semestre de 2019 e embora o governo federal esteja só discutindo e anunciando que vai enviar uma proposta para adulterar as terras indígenas. É um anúncio que vem sendo reiteradamente afirmado”, disse Andrello.

Contemporâneos

Para os três antropólogos que participaram do programa Ciência Aberta, é preciso destacar que, a despeito do modo de vida próprio e de uma cultura diferente dos não índios, as populações indígenas brasileiras não estão congeladas no tempo.

“Os indígenas são nossos contemporâneos. Há uma ideia que coloca as populações indígenas como tradicionais e nós [não indígenas] como modernos. Na verdade, nem nós somos modernos, nem eles são tradicionais no sentido de culturas congeladas no tempo”, disse Capiberibe.

E qual seria a definição de um povo ou indivíduo indígena? Há alguns anos, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro propôs a necessidade de uma autodefinição dos povos indígenas. Assim, índio é aquele que é reconhecido por um povo indígena.

“Portanto, não existe um índio, mas uma comunidade que o reconhece como tal. Dessa forma, também não é qualquer comunidade que pode se considerar indígena, pois é necessário um vínculo histórico cultural com as organizações sociais pré-colombianas”, disse Andrello.

De acordo com o pesquisador, quando se fala em povos indígenas está se falando em diversidade. “É arriscado tentar estabelecer parâmetros para indicar o que os povos indígenas, no seu conjunto, têm em comum. Estamos falando em diversidade”, disse.

Talvez, na avaliação dos participantes do programa, a unidade esteja na relação com a natureza. “A relação dos povos indígenas com aquilo que nós chamamos de recursos naturais é completamente oposta às relações que nós ocidentais estabelecemos. Em geral, a nossa relação com os seres da natureza é basicamente de sujeito-objeto. O homem é o sujeito da relação e os seres da natureza são os objetos intencionalmente inertes”, disse.

Um exemplo que explicaria a relação dos povos indígenas com a natureza está nos Guayapi, povo de língua tupi que vive no Amapá e na Guiana Francesa.

“Eles não têm uma visão colonialista da sua terra. O que vem a ser colonialista? É achar que tudo o que você ocupa está a seu serviço, para o seu bem-estar, que é a visão tradicional da natureza para o ocidente”, disse Carneiro da Cunha.

Dessa forma, explica Carneiro da Cunha, os Guayapi “entendem que a mata, os bichos e as árvores, por exemplo, têm direitos. O rio tem direitos e é um lugar compartilhado, que não foi feito só para usufruto da humanidade, mas de todos os seres que estão ali. Esse entendimento transforma completamente a relação com o que nós chamamos de natureza, que, aliás, é um conceito que nem existe em muitos povos”, disse.

Essa visão de mundo talvez explique por que, na região amazônica, as terras indígenas são mais conservadas que as áreas vizinhas.

O episódio “Indígenas” do programa Ciência Aberta teve a participação de alunos das universidades de São Paulo (USP) e Estadual de Campinas (Unicamp), do Instituto Federal de São Paulo e da Escola Estadual Prof. Manuel Ciridião Buarque.

Ciência Aberta é uma parceria da FAPESP com o jornal Folha de S. Paulo. O programa é apresentado por Alexandra Ozorio de Almeida, diretora de redação da revista Pesquisa FAPESP.

Avaliação foi feita pela antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, professora da USP, no episódio mais recente do programa Ciência Aberta; também participam da discussão os pesquisadores Artionka Capiberibe, da Unicamp, e Geraldo Andrello, da UFSCar (Festa do Kuarup, na aldeia Kamayurá; Marcello Casal Jr. / Agência Brasil)

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