Presidente do órgão escolheu ex-assessor de ruralista e “especialista em antropologia” para o grupo de trabalho que trabalha em região do São Francisco cogitada pelo governo para abrigar complexo nuclear
Por Rafael Oliveira, em Agência Pública
No último dia 30 de outubro, o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Augusto Xavier da Silva, substituiu os integrantes de dois grupos de trabalho responsáveis por realizar a identificação de terras indígenas em Pernambuco. No lugar de antropólogos com extensa qualificação e experiência na região, Xavier escolheu profissionais afinados com sua gestão mas sem os requisitos necessários, de acordo com Ricardo Verdum, vice-coordenador da Comissão de Assuntos Indígenas da ABA. “Essas pessoas têm um curso de formação, que é montado, inclusive, para subsidiar a elaboração do que a gente chama de contra-laudos. Ou seja, na prática, para defender os interesses de pessoas que se sentem incomodadas com a demarcação de terras indígenas. Do ponto de vista da associação, mais técnico, eles não são antropólogos”, afirmou Verdum em entrevista à Agência Pública.
Mudanças recentes na Funai corroboram o que diz o representante da Aba. No Grupo de Trabalho Tuxi, criado em 15 de agosto para identificar o território do povo Tuxi, na região do rio São Francisco, próximo de onde será construído um complexo nuclear, a coordenação foi trocada. A antropóloga Vânia Fialho, doutora em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que era a coordenadora, e seu colega de GT, Ugo Maia Andrade, doutor em antropologia pela Universidade de São Paulo (USP), foram substituídos pelos engenheiros agrônomos João Pinto Rosa e Juliana de Aguiar Lengruber além de Cláudio Eduardo Badaró, formado em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas com especialização em antropologia na Universidade Sagrado Coração em 2008.
Rosa e Lengruber também substituíram outros profissionais do Grupo de Trabalho Serrote dos Campos, dedicado a identificar o território do povo Pankará. Também faz parte desse GT o engenheiro agrônomo Joany Marcelo Arantes. Segundo o Cimi, ele foi assessor parlamentar do falecido deputado federal Homero Pereira (PSD-MT), que presidiu a Frente Parlamentar Agropecuária. Arantes também fez especialização em antropologia na Universidade Sagrado Coração em 2010, sendo orientado por Claudio Eduardo Badaró.
Localizada em Bauru, no interior de São Paulo, a Universidade Sagrado Coração é mantida pelo Instituto das Apóstolas do Sagrado Coração de Jesus (IASCJ). O curso de especialização em antropologia e patrimônio cultural, oferecido por 5 mil reais pela instituição, tem periodicidade quinzenal e sete professores no corpo docente; nenhum deles possui graduação em Ciências Sociais, tampouco mestrado ou doutorado em Antropologia.
A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) divulgou em 4 de novembro uma nota denunciando que “pessoas sem a mínima qualificação e legitimidade, inclusive sem amparo legal, estão sendo nomeadas na Fundação Nacional do Índio (Funai) para coordenar e realizar estudos de identificação e delimitação de Terras Indígenas”. Para Verdum, quem vai arcar com o prejuízo são os indígenas. “Já existe uma orientação geral desse governo que é não delimitar, demarcar, não reconhecer nenhum território indígena ou quilombola. Se esses grupos forem a campo, o que pode acontecer é de eles considerarem que aquelas pessoas não são indígenas, não têm direito à terra”, explica.
Como a informação de que antropólogos foram substituídos por pessoas de confiança do presidente da Funai chegou à associação?
A Vânia Fialho, uma antropóloga da UFPE e que era integrante de um dos grupos técnicos que realizaria uma identificação de uma terra indígena nas proximidades do rio São Francisco, recebeu um comunicado da Funai dizendo que o grupo de trabalho que ela estava coordenando havia sido cancelado. Já tinha saído a portaria, já tinha um cronograma, e ela estava esperando o contato da Funai para implementação, os recursos para deslocamento e para parte operacional do trabalho, quando recebeu o comunicado. Depois ela ficou sabendo que haviam contratado pessoas que estão lá na Funai e têm um curso de aperfeiçoamento em antropologia feito na Universidade Sagrado Coração. Quer dizer, eles não são antropólogas, pelo menos do ponto de vista da associação.
Existem convênios [da ABA] com o Ministério Público, também já houve com a Funai por algum tempo, de indicação de antropólogos que são reconhecidos pela associação, porque têm a sua formação e experiência. Essas pessoas [indicadas agora] têm [apenas] um curso de formação, montado, inclusive, para subsidiar a elaboração do que a gente chama de contra-laudos. Ou seja, na prática, para defender os interesses de pessoas que se sentem incomodadas com a demarcação de terras indígenas.
Depois disso nós fomos conferir outro grupo de trabalho que também ia realizar uma identificação de uma Terra Indígena na mesma região e passou pelo mesmo processo. O GT foi desfeito e foi contratada uma outra pessoa, que também tem uma formação de especialização e se apresenta como antropólogo.O coordenador do grupo não tem nem Currículo Lattes. O que nós fizemos foi chamar a atenção, não só do público em geral e indigenistas, mas também da OAB e do Ministério Público, para dizer que essas pessoas não são antropólogas. Se aparecer um laudo antropológico feito por essas pessoas, a associação não reconhece que são profissionais qualificados para isso.
Algum dos estudos já foi realizado?
Não. Era pra iniciar agora, final de outubro e início de novembro, e por coincidência, ou não, esses grupos de trabalho iriam – ou vão – trabalhar numa região onde está em processo de negociação a implementação de um complexo eletronuclear, próximo ao rio São Francisco.
Faz parte desse arranjo o não reconhecimento de terras indígenas. Pelo perfil desses antropólogos e pela orientação política que eles têm, eles vão chegar lá e dizer, esse pessoal não é indígena, é sei lá, caboclo. O que vai criar uma situação de não reconhecimento daquelas populações. Na última semana saiu uma nota da ABA sobre essa situação no Rio São Francisco. Tem lá vários povos indígenas, inclusive alguns com terras já identificadas. Há também comunidades quilombolas, além de outras populações tradicionais que vão ser afetadas por esse complexo eletronuclear. Há projetos de lei tramitando no Congresso Nacional e também nas assembleias legislativas com vistas a tornar possível um complexo eletronuclear naquela região.
Essas terras que serão alvo dos estudos dos grupos de trabalho ainda não foram demarcadas, certo?
Ainda não foram. Os grupos de trabalho iriam para fazer isso, porque houve uma demanda da população que se identifica como indígena e que pediu o reconhecimento do território.
Inclusive a coordenadora [responsável por instituir os grupos de trabalho] foi demitida naquela mesma semana porque a orientação da presidência do órgão é de que não fosse constituído nenhum grupo de trabalho para identificar TI. Houve uma ação do Ministério Público para que a Funai agisse, criasse o grupo, ela fez isso e, quando souberam nas instâncias superiores, ela foi demitida.
Para a associação, qual a qualificação que um profissional tem que ter para exercer essa função?
É um processo de formação acadêmica, no nível de pós-graduação. A graduação é Ciências Sociais, e em algumas universidades você pode sair com uma especialização em Antropologia. Mas a formação mesmo se dá nos níveis de pós-graduação, aí você se qualifica dentro do conteúdo específico da disciplina Antropologia. Em alguns lugares você tem cursos para elaboração de laudos, mais voltados pra área profissional.
E, depois disso, para serem incorporadas à associação também passam por um processo de avaliação. Não só curricular, mas também a indicação de associados de que [aquele] é um bom profissional. A ABA não é uma associação profissional, é diferente de uma associação médica. É uma orientação mais ética, política e acadêmica do que uma regulamentação da profissão de antropólogo.
Então o presidente da Funai pode fazer isso sem descumprir uma lei ou regulamentação?
Até pode. Tanto que fez.
Qual é o trabalho do antropólogo num estudo de identificação e por que é importante que ele tenha uma formação consistente?
Ele vai fazer um levantamento de toda documentação existente e acessível sobre aquela região, sobre o povo indígena. Não só a atual mas, também, com fundamentação histórica. Vai ter que ir na região, conversar com as pessoas. Normalmente são pessoas que conhecem a região e as populações, que já trabalharam na região. Há situações em que as pessoas não falam o português, o que coloca uma dificuldade, então têm alguns antropólogos que no seu doutorado, no seu mestrado, fizeram pesquisa de campo, aprenderam a língua. No caso por exemplo, esses dois antropólogos [substituídos pela Funai] já trabalham com povos indígenas ali do Nordeste há mais de duas décadas. São pessoas altamente qualificadas para fazer essa delimitação porque, além de se comunicarem com as pessoas, têm um conhecimento acumulado sobre aquela população, fizeram pesquisa documental para fundamentar a sua tese. Tem todo um trabalho etno-historiográfico, sociológico, relação com a população, especialmente uma posição de ouvir as pessoas. Para quem trabalha com populações, você vai adquirir [essa prática] na experiência mesmo, na pesquisa de campo.
Você criticou o curso de especialização em Antropologia da Universidade Sagrado Coração. Por que?
O curso foi montado para atender o interesse de setores contrários ao reconhecimento de direitos indígenas. São pessoas que, inclusive, já passaram pelo Mato Grosso trabalhando com ruralistas e, no Congresso Nacional, com deputados da bancada do boi e da bala. São pessoas que estiveram envolvidas na CPI da Funai e do Incra – uma CPI do agronegócio para detonar os processos demarcatórios de terra. Um deles foi assessor dos parlamentares que estava à frente da comissão. Então é um curso montado para qualificar pessoas que produzam documentos que colocam em questão o reconhecimento não só de terras indígenas, mas também de territórios quilombolas.
E que impactos essa medida e outras semelhantes vão provocar?
Já existe uma orientação geral desse governo que é não delimitar, demarcar, não reconhecer nenhum território indígena ou quilombola. Se esses grupos forem a campo, o que pode acontecer é eles considerarem que aquelas pessoas não são indígenas, não têm direito à terra, embora se declarem indígenas e seja possível traçar, como os antropólogos fariam, uma continuidade. Ou então reconhecer um pequeno território em volta da casa, visando a não criar qualquer obstáculo a esse empreendimento que está sendo planejado para ser instalado nessa região.
Que outras medidas vocês têm visto a Funai tomar na mesma direção de impedir a demarcação de novas terras?
A gente tem pessoas [da associação] que falam da situação de desmonte do órgão, de não contratação de pessoas, de não permitir que elas se desloquem para as regiões onde está havendo algum conflito. Há 400 demandas de identificação indígenas paradas na Funai e a coisa se agravou bastante pela orientação explícita de não reconhecer territórios indígenas.
E tem uma série de terras indígenas sendo invadidas. A mais conhecida, mais grave, é a Yanomami, em que há milhares de garimpeiros ocupando e o governo parado. Lembrando que o presidente, quando deputado federal, em 1993, apresentou projeto de lei que pedia que fosse desfeito o reconhecimento do território Yanomami. Cada vez que vencia o prazo, ele apresentava de novo. Ou seja, ele passou mais de 25 anos apresentando projetos de lei para reverter o processo de reconhecimento da terra Yanomami.
Agora há explicitamente uma orientação de governo de não demarcar. Inclusive dentro do Congresso Nacional tem setores querendo revisar as terras indígenas. Há a PEC 215, que propõe que, depois do trabalho da Funai, as demarcações de todas as terras indígenas sejam encaminhadas para o Congresso Nacional aprovar. Parece algo democrático, mas quem está por trás disso é o pessoal do agronegócio, das mineradoras, porque o que cair lá no Congresso vai ficar parado. [A PEC 215] também abre a possibilidade de revisão de terras indígenas já demarcadas ou homologadas, e aí, dependendo da correlação de forças e dos interesses, as coisas vão ficar bastante difíceis.
Você falou de uma diretora da Funai que foi exonerada. Há antropólogos sofrendo represálias ou algum tipo de perseguição?
Notícias que chegam é de vários constrangimentos, de assédios não só de antropólogos, mas de outros indigenistas da Funai. Várias pessoas que tinham uma orientação mais progressista foram demitidas. E funcionários de quadro estão sendo destituídos da função e substituídos por pessoas de confiança do atual presidente [da Funai].
Embora seja anunciado que vai haver um concurso para Funai, quem vai ser convocado? Com quais critérios? Não se sabe.
O que se vislumbra é a abertura dos territórios para exploração. O governo já vem anunciando há meses que vai apresentar uma proposta de exploração mineral nas terras indígenas. Teve também a reunião dos BRICS [na semana passada] com parte da agenda de trazer dinheiro para obras de infraestrutura e exploração de recursos naturais. O que vai acontecer é não só a legalização da possibilidade, mas também uma certa flexibilização dos licenciamentos ambientais. Para onde vai a Funai nisso tudo, a gente não sabe.
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O objetivo da PEC 215 é passar a demarcação das terras indígenas para o Legislativo