Após desastre ambiental, pescadores e pescadoras do Recife tentam encontrar soluções em audiência pública

Por Raíssa Ebrahim, Marco Zero Conteúdo

A pesca movimenta R$ 2,4 milhões por ano na Ilha de Deus, um dos 10 territórios tradicionais pesqueiros do Recife, localizado na bacia do Pina, no bairro da Imbiribeira. No entanto, as famílias que tiram o sustento das águas não veem essa riqueza ser transformada em qualidade de vida nem em serviços públicos decentes. Não há, por exemplo, assistência à saúde para as mulheres pescadoras, o ensino público não tem educação contextualizada e o saneamento básico não é adequado para a região.

A cidade, cuja economia se desenvolveu dando as costas para o rio, não tem políticas públicas específicas para locais como Ilha de Deus, Vila Imbiribeira, Vila São Miguel, Vila Tamandaré, ponte do Limoeiro, Caranguejo-Tabaiares, Brasília Teimosa, Bode, Coque e Coelhos. São, ao todo, cerca de 10 mil pescadoras e pescadores que seguem na luta para serem reconhecidos e contemplados pelo poder público local.

O vazamento do petróleo, que atingiu os nove estados do Nordeste e também o Espírito Santo, foi mais um agravante e continua, há quase três meses, afetando a atividade pesqueira, mantendo freezers cheios de pescados congelados, enquanto falta comida na mesa. Por conta do risco de contaminação, os consumidores pararam de comprar. No entanto, mais grave do que o desastre socioambiental é a falta de informação e a ausência de auxílio.

Parte da comunidade pesqueira do Recife se reuniu, na tarde desta sexta-feira (22), na sede da Ação Comunitária Caranguejo Uçá, na Ilha de Deus, para debater a situação da pesca no Recife, numa audiência pública externa puxada pelo mandato do vereador Ivan Moraes (PSOL). O evento também apresentou dados da pesquisa realizada no território, uma demanda do Caranguejo Uçá em parceria com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

O levantamento foi feito entre julho e agosto deste ano em 217 dos 271 domicílios da Ilha de Deus. As mulheres foram 76% das entrevistadas, comprovando que são elas que, na maioria das vezes, estão à frente dos lares, apesar de ainda continuarem recebendo pelas vendas menos do que a média dos homens. Confira os principais dados da pesquisa no final desta matéria.

Como não poderia ser diferente, as cobranças em torno do desastre do petróleo tomaram boa parte da audiência. “Queremos trabalhar e vender para sustentar nossa família, não queremos esmola nem que ninguém nos sustente. O governo até agora não fez nada, nós queremos o que é nosso de direito. Cadê as análises dos pescados e as soluções para as comunidades pesqueiras?”, questionou a pescadora Ana Mirtes, da Organização Social Poupança Comunitária, da Ilha de Deus.

Enquanto há trabalhadoras e trabalhadores à beira da fome, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) não depositou o pagamento de um salário mínimo a que havia se comprometido. O Governo do Estado, apesar de ter dito que tomaria providências caso o Governo Federal continuasse omisso, também não deu sinais de soluções, de acordo com a categoria.

Primeiro, o Governo Federal anunciou a antecipação do seguro-defeso, que só contemplaria uma parte das pessoas que vivem da atividade pesqueira. Em Pernambuco, por exemplo, o seguro só vale para quem pesca lagosta, menos de 400 pessoas. Depois, o governo voltou atrás revogando a portaria e anunciando a ampliação do auxílio, que não chegou até agora.

A situação dos pescados

O Ministério da Agricultura anunciou no último dia (11) que os exames mostraram que os pescado de áreas atingidas pelo petróleo estariam próprios para consumo. Porém, as amostras de peixes e lagostas não foram retiradas do mar especificamente para esses testes, mas coletadas em estabelecimentos registrados no Serviço de Inspeção Federal (SIF), ou seja, diretamente de peixarias, entre os dias 29 e 30 de outubro, nos estados da Bahia, do Ceará, de Pernambuco e do Rio Grande do Norte.

Logo após a nota do ministério, um dos pesquisadores veio à público dizer que “não era bem assim”, que não era possível afirmar o que estava dizendo o governo Bolsonaro. O Governo de Pernambuco, em parceria com a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e a PUC Rio, publicará, nos próximos dias, uma análise mais ampla, de peixes e crustáceos pescados artesanalmente em vários pontos do litoral do estado.

No entanto, pesquisadores que defendem o princípio da precaução já apontam que o material ainda não deve ser suficiente, uma vez que não contempla todas as localidades nem teve uma periodicidade de coleta. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) tem defendido que nenhum nível de hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (frações mais pesadas do petróleo) é seguro e qualquer nível de contaminação é danoso. “Estamos numa crise gigantesca de informação sobre a contaminação. Em que portas vamos bater para dizer ‘olha, vamos ali na bacia do Pina fazer exames para ver se tem benzeno’?”, provocou o deputado Ivan.

“Por que o estado não decretou situação de emergência de saúde pública? Por que tem um turismo forte aí por trás, que tem poder político e econômico, que está fazendo pressão”, criticou Laurineide Santana, do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP). Segundo ela, as vendas tiveram uma queda brusca em torno de 90% por conta do crime do petróleo. Exaltando a luta das mulheres da Ilha de Deus, Laurineide fez um apelo denunciando que pescadoras e pescadores seguem desamparados.

Política pública coletiva para as águas

“Quem viveu a década de 1980 sabe o que era a luta com a fome batendo à porta. As coisas mudaram graças, sobretudo, à força das mulheres”, lembrou Edson Fly, um dos coordenadores do Caranguejo Uçá. “Tem muita gente batendo cabeça e sem interesses reais em organizar pescadores e pescadoras. Muita gente pegando a onda da mancha do petróleo para subjugar mais uma vez as comunidades tradicionais. Não podemos deixar que as pessoas tirem proveito dessa situação”, protestou, lembrando a soberania e segurança alimentar das populações pesqueiras.

“A gente quer um rio em que haja praias do Capibaribe, Jardim do Baobá e contemplação. Mas sobretudo um rio vivo e saudável, uma política para as águas que tenha finalidade pública e coletiva”, reforçou Rodrigo Lima, biólogo e também integrante do Caranguejo Uçá.

“Os indivíduos que deveriam estar aqui não tiveram coragem de nos encarar, de escutar a real e encarar mulheres como Laurineide”, criticou Fly. A Prefeitura da Cidade do Recife (PCR) não enviou ninguém do primeiro escalão para compor a mesa da audiência pública externa. Isso comprometeu os encaminhamentos a serem acordados ao final do evento, pois as representantes das pastas de Saúde, de Assistência Social e de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação que compareceram tinham atuações restritas.

Como encaminhamentos possíveis, ficou acordado que o será desenhado pelo mandato de Ivan Moraes um Projeto de Lei para regulamentação dos territórios pesqueiros no Recife, semelhante ao que aconteceu no Congresso Nacional, em Brasília, como parte do Grito da Pesca 2019, nesta quinta (21). Pescadores e pescadoras artesanais entregam 200 mil assinaturas em defesa de seus territórios para a Comissão de Legislação Participativa. O Projeto de Lei de Iniciativa Popular que regulamenta e protege esses lugares foi entregue junto com assinaturas.

As representantes da PCR se comprometeram a desenvolver ações voltadas para a saúde das trabalhadoras da pesca, assim como chamar o Sebrae para desenvolver ações de incremento da cadeia produtiva da pesca a partir da inovação.

Correção: Diferentemente do que publicamos, não serão confeccionadas placas e certificados assinados pela UFPE para atestar que as famílias praticam a pesca tradicional. Como parte do encaminhamento, o professores Gilson Antunes e Cristiano Ramalho assumiram o compromisso de produzir um texto, a partir do diagnóstico sobre a pesca artesanal na Ilha de Deus, que possa indicar elementos caracterizadores desses(as) pescadores(as) como integrantes de uma comunidade tradicional da pesca .

No vídeo, Andreane Ferreira, da Ilha de Deus (crédito: Raíssa Ebrahim/MZ Conteúdo)

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