Em entrevista exclusiva, o escritor amazonense fala sobre seu novo livro “Pontos de Fuga” e faz críticas a Jair Bolsonaro e citações de membros do governo sobre o AI-5. Na fotografia acima, o escritor é saudado por jovens artistas de Manaus
por Izabel Santos, em Amazônia Real
Manaus (AM) – O escritor amazonense Milton Hatoum lançou “Pontos de Fuga”, o segundo livro da trilogia “O Lugar Mais Sombrio”, na “maratona” de noites de autógrafos de escritores na Banca do Largo São Sebastião, na quinta-feira (5), abrindo a série de eventos que encerrou na segunda-feira (9). Com bom humor, muito falante e visivelmente emocionado, ele atendeu cada um dos mais de 300 leitores assinando os livros e posando para fotografias. Durante o evento, Hatoum respondeu perguntas dos leitores e não poupou críticas ao governo do presidente Jair Bolsonaro e a menção de integrantes do governo sobre o Ato Institucional no. 5, o AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, durante o regime da ditadura militar brasileira (1964-1985).
O ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou durante uma viagem à Washington (EUA), no mês de novembro, que “não se assuste com a ideia de alguém pedir o AI-5” diante de uma possível radicalização dos protestos de rua no Brasil, como publicou o jornal Folha de S. Paulo“.
Antes, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente da República, citou o Ato Institucional após a liberdade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em Curitiba (PR). “Se a esquerda radicalizar a esse ponto, a gente vai precisar ter uma resposta. E uma resposta pode ser via um novo AI-5”, afirmou o deputado.
Para Milton Hatoum, os militares acabaram com as instituições democráticas, principalmente com a instituição do AI-5, “que permitiu cassar o mandato de políticos e prender pessoas sem inquérito policial, como todos sabemos”.
“O que me preocupa é que o sonho do Bolsonaro é justamente voltar ao passado e acabar com a democracia. Mas não se pode esperar outra coisa de uma pessoa que elogia da ditadura militar, tem como livro de cabeceira uma obra escrita por um torturador e que elogia o tempo todo as atrocidades cometidas nesse período lamentável da nossa história. (…) E os filhos dele da mesma forma, nunca fizeram nada. São políticos medíocres e oportunistas. Espero que a nossa frágil, muito frágil democracia, não saia dos trilhos. Para que isso não aconteça a população e seus representantes devem ficar atentos aos ataques à democracia e nossas instituições. Ao menor sinal, a sociedade tem que protestar, assim como os poder Judiciário e Legislativo devem se pronunciar”, afirmou o escritor.
Mesmo antes de Bolsonaro assumir o governo brasileiro em janeiro de 2019, Milton Hatoum sempre foi um crítico da ditadura militar em sua escrita. As críticas podem ser lidas nos livros “Dois Irmãos”, “Cinzas do Norte” e agora na trilogia “O Lugar Mais Sombrio”. Mas o escritor diz que a trilogia não é autobiográfica.
“Não sou eu no livro. Existe uma relação teórica entre experiência e linguagem, mas nunca se trata de uma autobiografia. A ficção em primeira pessoa é uma construção, um artifício, para construir um narrador, uma personagem. De modo algum eu sou o Martim ou qualquer outra figura”, garante. “O leitor deve sempre desconfiar da vida do autor, pois a ficção não é uma transposição da vida, mas uma transcendência da vida”, assegura.
O livro “Pontos de Fuga” chegou recentemente às livrarias, dois anos após o lançamento do primeiro volume da trilogia, “A Noite da Espera”, em 2017. Nesta parte da história, o protagonista Martim deixa Brasília e volta para São Paulo, onde recomeça a vida na Vila Madalena dos anos 1970.
“A Vila Madalena daquela época não tem nada a ver com a sucursal de fábrica de cerveja que se tornou hoje”, destaca Milton. Lá, distante do pai e da namorada, o enredo se desenrola no crescente autoritário Regime Militar.
“Neste livro, o arco temporal é maior, há um entrelaçamento de vozes, com diários e cartas, e as situações ficam mais complicadas, porque a vida também é mais complicada. O final é o destino de cada personagem nessa grande travessia da vida que os romances tentam contar”, acrescenta o escritor.
Provocado a falar mais sobre o novo livro “Pontos de Fuga” ele desconversou. “Não devo falar sobre o livro. Primeiro, porque não gosto de comentar sobre o meu trabalho e, segundo, porque não quero tirar o encanto da leitura, se houver encanto, pois às vezes só há o desencanto”, disse entre risos para uma plateia lotada em frente a Banca do Largo, no Largo de São Sebastião, no Centro de Manaus. Participaram do evento, que foi coordenado pelo livreiro Joaquim Melo, o escritor Ailton Krenak, de Minas Gerais, e o poeta Eliakin Rufino, de Roraima. Leia a seguir a entrevista exclusiva concedida pelo escritor amazonense.
Amazônia Real – Nos seus livros é comum alguma parte da história relatar um período da ditadura militar ou mesmo se passar nele. Essa parte da história do Brasil marcou a sua vida?
Milton Hatoum – Toda a minha juventude e parte da vida adulta, dos 18 aos 28 anos, foram vividas sob a ditadura militar. Isso marcou profundamente a minha vida de estudante e depois de professor de arquitetura. Nem todos os meus romances são ambientados nesse período. O primeiro, “Relato de um Certo Oriente”, não tem nada dos Anos de Chumbo. O segundo, “Dois Irmãos”, tem muito pouco. O terceiro, “Cinzas do Norte”, tem um pouco mais por causa da relação do pai do protagonista com políticos. Já a trilogia “O lugar mais sombrio” tem parte da história ambientada naquele momento da história, mas não se trata de um romance político. É um romance sobre a vida das pessoas, sobre conflitos familiares, individuais, sobre escolhas, destino, vida amorosa e sexualidade. São questões daquela época, mas que perduram por gerações e em diversas fases da vida do ser humano.
Amazônia Real – A turbulência política também está presente na vida do protagonista da sua primeira trilogia. Partindo da premissa de que a literatura reflete o momento histórico que a sociedade onde ela tem origem vive, podemos afirmar que “Lugar Mais Sombrio” foi influenciado pelos últimos acontecimentos políticos no Brasil, como o impeachment da presidente Dilma Rousseff e a ascensão do Bolsonarismo?
Milton Hatoum – Foram livros escritos bem antes da ascensão do capitão (Jair Bolsonaro), é uma coincidência. Publiquei “A Noite da Espera” em 2017, mas comecei a escrever a trilogia em 2008. A primeira versão que fiz, foi bem anterior a esse momento que estamos vivendo. Eu trabalho durante muito tempo nos meus livros e com “O Lugar Mais Sombrio” não foi diferente. Levei dez anos para escrever a primeira versão dos três livros. Eu não esperava que entre o final de 2007 e 2017 o Brasil fosse se transformar nisso, e que a política fosse degenerar nesse autoritarismo dos mais brutos e torpes.
Amazônia Real – Com relação ao período da ditadura militar no Brasil, o tratamento que o governo Bolsonaro dispensa à democracia é semelhante ao dos militares à época? Em quais aspectos?
Milton Hatoum – Os militares simplesmente acabaram com as instituições democráticas, principalmente com o AI-5 (Ato Institucional no.05), que permitiu cassar o mandato de políticos e prender pessoas sem inquérito policial, como todos sabemos. O que me preocupa é que o sonho do Bolsonaro é justamente voltar ao passado e acabar com a democracia. Mas não se pode esperar outra coisa de uma pessoa que elogia da ditadura militar, tem como livro de cabeceira uma obra escrita por um torturador e que elogia o tempo todo as atrocidades cometidas nesse período lamentável da nossa história. O contraditório é que ele se aproveitou da democracia durante 28 anos. Como as pessoas são oportunistas, não é? Ele que elogia e celebra a ditadura e seus torturadores, viveu durante quase 30 anos da democracia e sem fazer nada o Congresso Nacional, porque a atuação dele como parlamentar foi nula, um zero à esquerda ou à direita, como preferir. E os filhos dele da mesma forma, nunca fizeram nada. São políticos medíocres e oportunistas. Espero que a nossa frágil, muito frágil, democracia, não saia dos trilhos. Para que isso não aconteça a população e seus representantes devem ficar atentos aos ataques à democracia e nossas instituições. Ao menor sinal, a sociedade tem que protestar, assim como os poder Judiciário e Legislativo devem se pronunciar.
Amazônia Real – E em relação ao tratamento e atenção dados à Floresta Amazônia e suas populações?
Milton Hatoum – Acho que hoje temos uma continuidade do que aconteceu durante a ditadura militar. Os militares não estavam preocupados em preservar nada, nem meio ambiente e nem os povos indígenas. Os indígenas foram os que mais sofreram na Amazônia durante o período, sendo presos, tendo terras invadidas. A construção de estradas e a realização de grandes obras na nunca trouxe benefícios à região e à sua população. Pelo contrário, só potencializou mazelas como a miséria, a fome, a prostituição e toda a sorte de exploração. O que o Bolsonaro está fazendo é uma continuação mais feroz ainda, porque enfraqueceu todos os institutos e órgãos de controle e fiscalização ao promover o desmantelamento do Ibama, ICMBio, Funai e todas as instituições de pesquisa da Amazônia. Ele não tem interesse nenhum em conversar com quem entende de Amazônia, como pesquisadores, ribeirinhos e população da região. Eles acham que aqui é tudo igual, não entendem o que é diversidade. Acham que o Alto Rio Negro é igual ao Alto Rio Purus. Não entendem que para pensar Amazônia é preciso entender as diversas realidades das microrregiões que formam essa região geopolítica de dimensões continentais, é preciso entender as relações de trabalho, as relações humanas, os povos indígenas, a biodiversidade. Mas não, só pensam no nióbio, no minério, na ocupação predatória. Não têm nenhum critério! Não leram nada sobre a Amazônia como o livro fundamental do geógrafo Aziz Ab’Saber, “Amazônia: do discurso a práxis”, os livros do Lúcio Flávio Pinto, que são importantes para entender o impacto da construção de hidrelétricas. Mas é importante destacar que nenhum governo pensou na Amazônia ou teve um projeto para a Amazônia.
Amazônia Real – Você vê perseguição e negligência no atual governo em relação à Amazônia? Temos defensores da terra e do meio ambiente ameaçados de morte, sendo presos, como é o caso dos brigadistas de Alter do Chão, e até mesmo mortos, como foi o Paulino Guajajara no Maranhão.
Milton Hatoum – Acho que esses casos não são somente locais ou regionais, eles fazem parte da brutalidade da polícia e do judiciário brasileiros, porque o que aconteceu em Paraisópolis também tem relação com o que acontece na Amazônia. No Brasil, a polícia é arbitrária e bruta, e o judiciário é parcial. Eles não prendem os mandantes de crimes como os cometidos contra ambientalistas, defensores do meio ambiente, lideranças indígenas e até jornalistas. O caso do Paulo Paulino Guajajara é o mais recente, mas e Eldorado dos Carajás? E os sem-terras? E Chico Mendes? Essas histórias parecem não ter fim e se repetem, porque no Brasil os aparelhos repressivos e o judiciário ainda têm os vícios da ditadura militar, por isso essa violência nunca acabou. Persiste, nunca acabou e se alimenta da impunidade. Você acha que vai acontecer alguma coisa com os policiais que cercaram aqueles jovens no baile funk em Paraisópolis provocando pânico e mortes? Não, a gente sabe disso. Acho que a gente precisa falar sobre isso, discutir e protestar contra a impunidade.
Amazônia Real – Onde você acha que o Brasil errou para repetir esses erros?
Milton Hatoum – Houve muitos erros, inclusive da esquerda, a gente tem que admitir isso. Não adianta negar. Houve também muita manipulação para essa vitória do Capitão, principalmente usando fake news com milhões e milhões de mensagens. Não vivemos uma ditadura como a militar, pois ainda temos a liberdade de nos reunir, de falar e de discutir, mas hoje temos arbitrariedades, ameaças e violência, além do baixíssimo nível de todos os ministros, o desprezo pelos direitos humanos, pela questão indígena, pelo meio ambiente. Tudo isso projeta algo de sombrio na nossa democracia. Como alguém diz que tem apreço pela democracia e é se declara fã de um torturador? Também tenho curiosidade de saber como um ex-juiz que se diz íntegro e arauto da justiça é ministro de um governo que elogia o Pinochet e outros ditadores. A elite brasileira achava que apoiando o Bolsonaro iria conseguir depois domar o Diabo. Mas a gente não doma o Diabo…
Amazônia Real – Você disse que o brasileiro reverencia as pessoas erradas ao homenagear políticos e outra personalidades que prejudicaram o país. Você consegue opinar sobre de onde viriam essa cegueira, essa ignorância e essa falta de sensibilidade da população em relação à história?
Milton Hatoum – A nossa história foi escrita pelas elites. O poder nunca quis reverenciar as lideranças políticas verdadeiras, as de origem popular. Nem mesmo os grandes professores, grandes cientistas. Mas os nomes dos generais Castelo Branco, um dos articuladores do golpe militar de 1964, e Emílio Garrastazu Médici, estão em ruas e escolas Brasil afora, como mostra da profunda ignorância de políticos. Além disso, há uma profunda questão ideológica. Ninguém nunca desdenhou das instituições de arte e cultura do Brasil como esse governo, isso representa um retrocesso enorme. Apesar da ojeriza que tenho à ditadura, ninguém nunca foi tão medíocre como os membros do atual governo, pois em mais de 20 anos, ninguém nunca questionou a Ciência, Nicolau Copérnico, Galileu Galilei, acreditem nisso. Nenhum general ou ministro questionou se a Terra era redonda. Estamos vivendo um delírio.
Amazônia Real – Falando sobre o livro novo, o que “Pontos de Fuga” traz de atual? De que maneira a história faz o papel de provocação inerente à literatura?
Milton Hatoum – As pessoas que estão lendo a trilogia estão percebendo desde o primeiro volume uma relação com o que nós estamos vivendo. Acho que o jovem que ler “A Noite da Espera” e “Pontos de Fuga” vai estabelecer um paralelo entre a vida dos personagens naquela época e a atualidade. Mas também vai entender como que os jovens daquela época viviam, quais eram os seus anseios, sonhos e impasses, em várias áreas e momentos da vida como a escolha da profissão. Além disso, também vão se identificar com as adversidades na moralidade, na sexualidade que foi muito importante naquela época. Também vão se identificar com questões relacionadas à Amazônia, que é um dos pontos de fuga, além da França e dos Estados Unidos. É essa dispersão de uma geração, que hoje é desiludida, que é a minha geração.
Amazônia Real – Como assim desiludida?
Milton Hatoum – Desiludida com o que está aí. Desiludida, mas não derrotada. A minha geração, ou pelo menos uma parte dela, não capitulou. Lutamos por algo que não se concretizou e ainda houve um retrocesso. Mas isso faz parte da dança da história e também vai passar.
Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real