Protejam Erasmo: ele pode ser assassinado a qualquer momento. Por Eliane Brum

Por que a violência na Amazônia aumentou em 2019 e por que a sociedade precisa se organizar para barrar as mortes

No El País

Quando vi Erasmo Alves Teófilo pela primeira vez, o que me chamou a atenção foi aquele homem se movimentando muito rápido numa velha cadeira de plástico branca. Vítima de paralisia infantil, porque não havia vacina onde ele vivia, Erasmo não pode caminhar. Mas lidera. Este homem que só conta com uma cadeira de plástico branca luta pela vida de cerca de 300 famílias de agricultores familiares e pescadores na Volta Grande do Xingu, em Anapu, na Amazônia paraense, uma das regiões mais sangrentas da Amazônia. Este homem sem movimento nas pernas movimenta-se mais do que a maioria dos brasileiros para manter a floresta em pé. Hoje, ele também conta com pouco mais do que sua cadeira de plástico para escapar da morte.

Erasmo, este brasileiro que todos deveriam proteger porque sua luta protege a Amazônia para todos nós, está ameaçado por grileiros (grandes ladrões de terras públicas) que agem na região de Altamira e Anapu com a desenvoltura que a impunidade sempre conferiu a este tipo de personagem na história do Brasil. Hoje, com o antidemocrata Jair Bolsonaro no poder, a grilagem tem se comportado como se tivesse autorização para ameaçar, para bater e também para matar. Para dizer, como mais de uma pessoa ouviu de um deles: “Nenhum juiz tem poder sobre mim”.

Entre 4 e 9 de dezembro, dois homens já foram assassinados em Anapu. Erasmo poderá ser a terceira vítima, caso a sociedade brasileira não seja capaz de se organizar para proteger a ele e a todos os outros agricultores familiares, indígenas, ribeirinhos e quilombolas que estão ameaçados na floresta. Ninguém deve jamais se cansar de pressionar as instituições a fazer seu papel no Brasil. Isso é essencial para o país não perder o pouco de democracia que ainda resta. Mas é hora de compreender que o Brasil chegou a um ponto em que, se a sociedade não se organizar para defender aqueles que estão lutando na linha de frente, estas pessoas vão morrer. Como já estão morrendo.

1) Os defensores da floresta temem não ver o Ano Novo

Enquanto a população de classe média das cidades do centro-sul do Brasil se prepara para as festas de final de ano, com recessos, férias coletivas, folgas prolongadas, este é um tempo de medo na Amazônia. Mais medo. As poucas instituições que se fazem presentes, a maioria apenas nas cidades maiores dos estados amazônicos, entram em recesso. Supostamente há plantão nas capitais. Mas, se o número de funcionários já é reduzido quando há expediente normal, como será possível contar com estas instituições? Também a maior parte das Organizações Não Governamentais (ONGs), que cumprem um papel decisivo na proteção da Amazônia, entram em férias coletivas. A população em risco se torna muito mais desamparada.

Essas pessoas não estão desamparadas porque frágeis. Só existe floresta ainda porque seus povos são muito resistentes e colocam seus corpos na linha de frente, fazendo uma barreira humana contra o avanço da grilagem. A questão é que agricultores familiares, ribeirinhos,  quilombolas e indígenas lutam quase sozinhos para manter a floresta viva e como um bem público e coletivo. E lutam quase sozinhos contra forças muito mais poderosas, em geral armadas, que querem derrubar a floresta e especular com a terra para o lucro privado de poucos, hoje com o apoio explícito do Governo antidemocrático de Bolsonaro.

Em pouco mais de 40 dias, entre novembro e dezembro, quatro indígenas do povo Guajajara, na Amazônia maranhense, foram assassinados. Em Anapu, não são indígenas que morrem, mas agricultores que tentam fazer assentamentos sustentáveis em áreas públicas destinadas à reforma agrária, mas cobiçadas ou já exploradas pelos grandes grileiros da região. Também tombam pessoas que apoiam os trabalhadores rurais. Os grileiros se apresentam como fazendeiros, mas sua folha-corrida mostra que são ladrões de terras da União. Os reais fazendeiros deveriam desejar se diferenciar deles, em vez de apoiá-los ou tolerá-los, mas não é isso que tem acontecido.

2) Por que Anapu se tornou um campo de cadáveres

Pergunto a Erasmo, cada vez mais perto da morte matada, vivendo numa casa que até o sopro do Lobo Mau das histórias infantis pode colocar em risco, se ele acredita na lei. E ele responde: “Eu acredito. Especialmente na lei federal. Se não acreditasse, eu não estaria aqui”. Erasmo vive numa terra em que o mais forte é a lei. Erasmo é o mais fraco na terra da lei do mais forte. E Erasmo acredita na lei, esta representada pela Constituição, esta supostamente acima dos indivíduos, em defesa da coletividade. Sinto vontade de repetir esta frase dezenas de vezes e escrevê-la de trás para frente e de cima para baixo, para ver se sob algum ângulo o mistério se revela. Sentado na cadeira de plástico branco que lhe serve de pernas, sacaneado mil vezes e mais outras mil vezes, Erasmo é um brasileiro que acredita na lei.

Anapu entrou no mapa mental do Brasil e do mundo depois que a missionária americana Dorothy Stang foi perfurada por seis tiros em 2005, provocando uma comoção internacional. Mas Anapu deve ser olhada com redobrada atenção por muito mais do que isso. O município desenha o problema da terra, do desmatamento e da violência na Amazônia brasileira. Compreendendo o que acontece lá é possível entender bastante da tragédia que hoje compromete o futuro não só das novas gerações de brasileiros, mas do planeta.

Como é sabido, a ditadura militar (1964-1985) estabeleceu um imaginário sobre a Amazônia ― e converteu esse imaginário em propaganda que até hoje perdura. Os personagens que hoje se movimentam neste cenário, para matar e para morrer, são herdeiros do projeto da ditadura para a floresta também naquilo que ele tem de mais simbólico: “a terra sem homens para homens sem terra” ou o “deserto verde” ou ainda o “integrar para não entregar”. Todos estes slogans de meio século atrás estão vivos e atuando. Os conflitos de Anapu são produtos da Transamazônica, aberta literalmente a ferro e fogo sobre corpos de indígenas e de árvores.

Nos anos 1970, a ditadura dividiu a região em dois polos, chamados “Transa Oeste” e “Transa Leste”. A primeira porção vai de Altamira até Placas e recebeu maioria de assentados da região sul do Brasil. Esta é a área da rodovia que foi destinada à colonização oficial, para produção agrícola. Já na Transa Leste, entre Altamira e Marabá, autores apontam que predominou uma colonização espontânea, daqueles que são sempre esquecidos nos programas públicos oficiais, com migrantes vindos principalmente do nordeste brasileiro. Estes não tiveram apoio governamental para ocupar terras que eram consideradas menos produtivas. Sem esquecer que todas as terras, à leste e à oeste, tinham sido por séculos ocupadas pelos povos indígenas.

Essa história, portanto, começa com um genocídio, o perpetrado pela ditadura militar na construção da Transamazônica. Esta é uma parte. A outra é o prosseguimento de uma política de branqueamento do país que se iniciou ainda no período imperial. Vale a pena lembrar que o sul do Brasil foi colonizado, mais uma vez sobre o corpo dos indígenas, por imigrantes trazidos da Europa, em especial de países como Alemanha e Itália, no final do século 19 e início do século 20. Não só os indígenas foram espoliados de suas terras e boa parte deles mortos como, na hora de escolher qual era a população que deveria ser colocada no lugar, foram escolhidos imigrantes brancos. Naquele momento, era possível ter executado uma política pública para incluir os negros que deixavam a escravidão. Mas não. Importou-se brancos.

Na construção da Transamazônica, os novos colonizadores foram chamados no sul do Brasil, a maioria deles descendentes destes imigrantes que, por sua vez, colonizaram o sul do país vindos da Europa. Nem foi fácil para os imigrantes europeus que chegaram ao sul do Brasil no final do século 19 nem foi fácil para seus descendentes que chegaram à Transamazônica nos anos 1970. Foi uma saga. Mas foi muito mais difícil para os nordestinos que foram sem convite e sem apoio do governo, em busca do sonho da terra própria para se livrar do aluguel do corpo para os coronéis.

Nesta mesma região, a ditadura implantou também uma política de concentração da terra, pelos chamados Contratos de Alienação de Terras Públicas (CATPs). Estes contratos eram títulos provisórios para lotes de 3.000 hectares. Eles foram oferecidos preferencialmente para pessoas de fora da região amazônica. Com frequência, os contratos eram acompanhados de financiamentos da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), uma sigla que ficou famosa pelos escândalos de corrupção que produziria também na região de Altamira e Anapu.

Para que pudessem ganhar o título da terra, os candidatos a proprietários tinham que comprovar, em cinco anos, a instalação de empresa agropecuária. Muitas destas terras foram repassadas a terceiros antes mesmo de ter título definitivo, e, em boa parte dos casos, o cancelamento dos títulos pelo governo nunca foi feito, embora não houvesse criação de empresa agropecuária. Terras públicas e financiamento público produziram e alimentaram um mercado de especulação de terras na Amazônia e um ciclo de grilagem e de pistolagem que perdura até hoje, grande responsável tanto pela destruição da floresta quanto de vidas humanas. O que testemunhamos hoje no oeste do Pará e também em outras regiões da Amazônia é resultado direto do projeto de exploração da floresta forjado na ditadura militar e nunca suficientemente reformado na democracia que se instalou após 1985.

3) A janela histórica perdida

Para estancar a espiral de violência na disputa de terras que ainda hoje pertencem à União, ou seja, são nossas, seria necessário fazer a reforma agrária que nunca foi feita. A melhor chance histórica de estancar o sangue depois da retomada da democracia ocorreu nos governos do Partido dos Trabalhadores, de 2003 a 2016. A reforma agrária constava no programa, e agricultores familiares e trabalhadores sem terra eram uma força importante na composição da base do partido. Embora algumas ações e políticas tenham sido implementadas, porém, a reforma agrária não foi realizada. E a oportunidade foi perdida.

Os Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS) foram criados em lotes que o Instituto Nacional de Reforma Agrária (Incra) declarou serem improdutivos no final dos anos 1990. Os PDS foram desenhados em assembleias de agricultores para combinar agricultura familiar com atividades extrativistas, de coleta, como faz a população ribeirinha da Amazônia. Eram projetos de reforma agrária, que garantiam a terra para quem dela vive, combinados com o conceito de preservação ambiental.

Em 2003, no primeiro ano do governo Lula (PT), foram criados quatro PDS nas glebas Belo Monte e Bacajá, para o assentamento de 600 famílias. Aqueles que haviam se apossado destas terras públicas e também de gordos financiamentos públicos da Sudam reagiram com violência, na base da pistolagem, de incêndios criminosos e de derrubada da floresta. A missionária Dorothy Stang documentava e denunciava cada um dos ataques, exigindo providências das autoridades. A freira deixava claro que, para a preservação da floresta, seria necessário fazer antes a regularização fundiária. Foi executada.

Em 2005, a execução de uma freira de 73 anos com cidadania americana trouxe consequências indesejáveis para os grileiros da região. Demorou um pouco, mas o Estado se fez presente, instituições federais que não tinham escritórios na região abriram as portas. Ao longo dos mais de 13 anos no poder, os governos do PT foram se aproximando cada vez mais dos grandes latifundiários, a ponto de Katia Abreu ter se tornado ministra da Agricultura de Dilma Rousseff. Mas, no primeiro mandato de Lula, o compromisso com os pequenos agricultores ainda era forte também na prática. Não tão forte para uma reforma agrária efetiva, mas forte o suficiente para colocar o Estado em Anapu.

A morte de Dorothy Stang atrapalhou bastante os negócios de especulação da terra na região. Eles não cessaram, longe disso, mas ficou mais difícil. Fortes indícios apontavam naquele momento para a existência do que era chamado “consórcio da morte”, um pool de grileiros que determinavam a execução de quem estava atrapalhando as investidas sobre a floresta. A existência do consórcio nunca chegou a ser provada, mas na região poucos têm dúvida de que existe. Consorciados ou não, até 2014 os grileiros mantiveram uma atuação persistente, mas discreta.

4) O sangue dos Resplandes encharca a terra

Desde 2015, a violência em Anapu refletiu o aumento do poder dos ruralistas não só no Congresso, mas também no Executivo. Tudo acontece em cadeia na Amazônia, como em qualquer lugar. Entre 2015 e 2019, houve 15 assassinatos ligados à terra em Anapu, segundo a Comissão Pastoral da Terra ― e 19 segundo a contagem dos movimentos locais. Essas mortes mostraram que os grileiros aprenderam com o assassinato de Dorothy Stang. Nos últimos anos, os pistoleiros têm matado na cidade, em vez de na zona rural, para dificultar a associação do crime com os conflitos agrários. Como parte da polícia parece não ter muito interesse em investigar, a maioria dos crimes segue impunes. Quem precisa estabelecer a relação com as disputas de terra, para estabelecer as conexões de causa e efeito, são entidades da sociedade civil como a Comissão Pastoral da Terra.

Já em 2018, uma lista de marcados para morrer circulava na cidade como se fosse uma lista de compras de material escolar. Pouco antes de ser assassinado, em 3 de junho daquele ano, Leoci Resplandes de Sousa foi checar se estava na lista da morte. Um dos chefes da pistolagem local garantiu que não. E afirmou, inclusive, que caso estivesse, ele tiraria. Era assim. E segue assim. Não se sabe se este homem mentiu, porque não só Leoci foi assassinado, como também este chefe da pistolagem algum tempo depois. A lista ― ou as listas ― seguem ativas.

O que aconteceu com a família Resplandes é uma vergonha para o Brasil e para os brasileiros. Trabalhadores rurais em busca de terra, três Resplandes já foram mortos: Hércules, de 17 anos, Valdemir e Leoci, de 29. Todos em 2018. Quando Leoci foi assassinado dentro de casa, depois de voltar da roça, a família fugiu. Vivem assim, fugindo, sem nenhum apoio. E são achados. Em novembro, outro Resplandes foi baleado, mas sobreviveu. Não há certeza de que a tentativa de homicídio esteja conectada com os conflitos por terra de Anapu, mas tudo indica ser bastante possível.

Iracy Resplandes dos Santos, 53 anos, vive acuada. Claramente está com depressão, mas conta não ter confiança de buscar tratamento. Disseram a ela que a dor pode ser aplacada com tricô. Mas ela começa a tricotar e não consegue continuar. Vive o luto do filho mais velho, do irmão e do sobrinho. Em novembro, atravessou dias e noites no hospital cuidando do filho baleado, temendo a sua morte. Iracy tem dor e tem medo. Tem desespero. Tudo o que sonhou era um pedaço de terra para plantar. Acabou tendo que semear cadáveres. E nada indica que esta semeadura de corpos humanos irá parar.

5) O crime contra o Padre Amaro

Em 2018, ficou claro que a grilagem intensificava a violência e usava métodos mais ousados. Em 27 de março daquele ano, Padre Amaro Lopes, pároco em Anapu e um dos sucessores da missionária Dorothy Stang, foi preso numa operação cinematográfica para os padrões locais: 15 policiais, várias viaturas, armamento pesado. Parecia que o padre era Al Capone, isso numa cidade em que a maioria conhece os grileiros e pistoleiros pelo nome e cruzam com eles nas ruas sem que isso pareça perturbar a polícia.

Padre Amaro foi preso com um ramalhete de acusações. E jogado na mesma prisão em que Regivaldo Galvão, conhecido como “Taradão”, um dos mandantes da morte de Dorothy Stang, paga sua pena. Depois de três meses na cadeia, o religioso católico passou a responder às acusações em liberdade, mas até hoje sujeito a várias restrições e sem poder retomar o seu trabalho, o que claramente era o objetivo da operação.

Duas semanas antes de ser preso, Padre Amaro deu uma entrevista ao jornal The Guardian. Nela, afirmou que sua “batata estava assando”, referindo-se ao fato de que sabia que algo aconteceria com ele. “Como matar a Dorothy deu muita repercussão e problemas para os grileiros, eles vão forjar algum acidente ou inventar alguma coisa para me criminalizar”, disse na ocasião. Uma das acusações, a de assédio sexual, caiu em seguida, mas já tinha cumprido o objetivo de desqualificar o padre diante de parte da população de Anapu e da região.

A prisão de Padre Amaro foi precursora do método usado recentemente em Alter do Chão, na região de Santarém. No final de novembro, quatro brigadistas voluntários, que trabalhavam em conjunto com os bombeiros locais para apagar os incêndios na floresta, foram presos sob a falsa acusação de, justamente, atear fogo na mata. Na mesma data, a ONG Saúde e Alegria, uma das mais premiadas e respeitadas organizações brasileiras, foi invadida pela polícia e teve computadores e documentos apreendidos. É a nova etapa de criminalização justamente daqueles que ou denunciam os verdadeiros criminosos ou trabalham para combater seus crimes ou, ainda, para fortalecer a população local. Pesquisadores da área de segurança apontam que há um crescente aparelhamento das polícias para atuar na defesa de interesses privados.

6) Dezembro de sangue

Em Anapu, desde que Bolsonaro foi eleito, a atmosfera se tornou ainda mais pesada. É muito difícil encontrar alguém que aceite ser entrevistado, mesmo sem dar o nome. “O povo está morrendo”, dizem aos cochichos. Desde que acompanho a situação na região, nunca vi as pessoas tão aterrorizadas. Elas têm toda a razão, já que não contam com nenhuma proteção. Ao contrário, parte dos representantes do Estado parece atuar contra as verdadeiras vítimas.

Se a tensão e a violência aumentaram desde a eleição de Bolsonaro, em novembro houve um agravamento de cenário em diversas regiões da Amazônia. Em dezembro, tornou-se ainda mais alarmante. Todos os sinais mostram que a situação ruma para o total descontrole. É neste contexto que Márcio Rodrigues dos Reis, 33 anos, pai de quatro filhas, foi assassinado em 4 de dezembro, em Anapu. O assassino fingiu ser um cliente do seu mototáxi e o matou com um golpe de faca no pescoço. A garganta cortada, segundo repetem na cidade, assinala quem teria “morrido por falar demais”.

Márcio era uma das principais testemunhas de defesa de padre Amaro Lopes. Era também alguém que sabia bastante sobre o que acontecia na região. Cinco dias depois, em 9 de dezembro, o ex-vereador do PT e conselheiro tutelar Paulo Anacleto foi executado diante do filho pequeno na praça central da cidade. Segundo testemunhas, ele estava no carro com a criança quando foi alvejado por dois homens numa moto. Paulo Anacleto era amigo pessoal de Márcio e, segundo informações, estava revoltado o suficiente para comentar pela cidade que sabia muito bem quem havia sido o mandante da morte. Quem acompanha os conflitos agrários em Anapu não tem dúvida de que os assassinatos estão ligados.

Apesar de tentar por três dias seguidos, o EL PAÍS não conseguiu informações da polícia do Pará em nenhum nível ― local, regional e estadual. O delegado Lucas Luz, responsável pela Delegacia de Conflitos Agrários (DECA), especializada sediada em Altamira, a maior cidade da região, afirmou que não poderia falar sobre os casos porque estariam “sob segredo de Justiça”. A reportagem enviou um email para a Polícia Civil do Estado do Pará. A assessoria da corporação informou que o pedido estava “em análise” ― e não respondeu até a publicação do artigo. Em Anapu, os dois telefones divulgados da delegacia local aparentemente não funcionam ou não são atendidos.

O Ministério Público Federal, no Pará, instaurou procedimento para acompanhar as investigações e solicitar providências às autoridades de segurança pública do Pará sobre o que chamou de “a nova escalada de violência no município de Anapu”. “O cenário atual no município evidencia a ocorrência de reiteradas ameaças dirigidas a defensores de direitos humanos no campo. Em menos de uma semana, entre os dias 4 e 9 de dezembro, ocorreram dois assassinatos que podem estar ligados aos conflitos agrários históricos na região”, afirmou o órgão em nota pública. O MPF também solicitou informações sobre “as providências que estão sendo tomadas para prevenir e coibir a violência contra os moradores e lideranças dos lotes 96 e 97 da gleba Bacajá, devido à “pressão para expulsão de trabalhadores rurais”. Estes lotes são uma das áreas abarcadas pela liderança de Erasmo, hoje ameaçado de morte.

A principal causa dos conflitos nos anos recentes, além da impunidade que gera mais impunidade, é a omissão do Estado em fazer as ações de reforma agrária previstas em lei, abandonando o lado mais frágil, o dos agricultores familiares, a uma luta desigual com os grandes grileiros e suas milícias armadas. Como a luta é desigual, o resultado é o massacre de trabalhadores rurais e das pessoas que os apoiam. “Ao não adotar as medidas necessárias e previstas em lei para solucionar os conflitos agrários, há uma omissão do Estado que é ação”, afirma Sadi Machado, procurador da República em Altamira. “Há uma má vontade ativa por parte do governo federal de deixar de implementar a reforma agrária, que é uma política pública do Estado. Isso provoca conflitos, produz vítimas e destrói o meio ambiente. Claramente há um confronto entre a área técnica [de carreira] do Incra, órgão que foi bastante esvaziado na região, e a condução política do órgão. Esta situação se agravou neste ano.”

Ainda hoje, parte da sociedade e mesmo dos ambientalistas não entende que lutar pela reforma agrária é lutar pela floresta em pé. Sem justiça social na Amazônia não haverá justiça climática.

7) Por que agora?

As mortes recentes de indígenas e de camponeses ligados a conflitos agrários, assim como as prisões abusivas e a crescente criminalização das ONGs, deixam claro uma ofensiva da grilagem e de seus apoiadores, dentro e fora do Estado, em toda a região. Os sinais de que a violência só vai aumentar estão por toda a parte. Por que agora?

O cientista social Maurício Torres, professor da Universidade Federal do Pará, em Belém, e um dos maiores especialistas em conflitos agrários na Amazônia, apontou alguns caminhos de reflexão para esta coluna, que reproduzo aqui:

“A grilagem acontece em dois planos. Um no chão, onde se toma a área materialmente. Pistoleiros ‘limpam’ a terra de seus ocupantes legítimos (indígenas e camponeses), e a floresta é derrubada para consolidar a apropriação. Outro plano é no papel: quando, por meio da química mágica dos cartórios ou dos órgãos fundiários, acontece o destacamento da terra do erário público e sua transferência para o patrimônio privado do grileiro. A violência (e incluo aqui o desmatamento como sua variante) é o principal instrumento de controle de terras griladas. Quando esse mercado sujo de terras agita-se, a violência, como mecanismo da grilagem, é mais acionada. As assustadoras facilidades criadas para a consumação no papel do saque de terras públicas, que transformam o grileiro em ‘proprietário’ das terras das quais se apropriou ilegalmente, incendiou esse mercado. Falo, em especial, da MP 910 ― não só da sua promulgação, mas, mesmo antes, do efeito gerado pela especulação em torno dela”.

A Medida Provisória 910 é a MP da Grilagem produzida por Bolsonaro em 10 de dezembro. Antes dela, houve a MP da Grilagem de Lula, em 2009, e a MP da Grilagem de Michel Temer, em 2017. É importante recuperar o processo, porque do contrário não é possível compreender o presente.

O programa Terra Legal, de 2009, ainda no Governo Lula, é citado por Torres e outros pesquisadores como um marco no processo de legalização da grilagem na Amazônia. Ele foi instituído pela Medida Provisória 458, sancionada na forma da lei 11.952. Entre outras ações, regularizava todos os imóveis em terras públicas na Amazônia Legal, com até 1.500 hectares, desde que ocupados até dezembro de 2004. No discurso, o programa serviria para regularizar a situação dos pequenos posseiros, aqueles que viviam na terra e viviam da terra. Na prática, o programa serviu para regularizar a grilagem praticada pelos grandes. Na época, foi apelidado de “MP da Grilagem” e, depois, de “Lei da Grilagem”.

Os números ajudam a clarear os objetivos: os pequenos eram quase 90%, mas ocupavam menos de 19% do território; já os grandes eram menos de 6%, mas ocupavam 63% do território. Para os pequenos, a lei já existente era capaz de solucionar a situação e corrigir injustiças. Não era necessário criar nada novo. Assim, afirma Torres, o programa Terra Legal foi pensado para legalizar a grilagem.

O novo e controverso Código Florestal, de 2012, aprimorou ainda mais produção de legalidade onde antes havia crime. Mais tarde, com Michel Temer e um Congresso explicitamente corrupto, dominado pelos ruralistas, o processo se aprimorou e acelerou. A lei 13.465/17, nascida da Medida Provisória 759, foi sancionada em julho de 2017 por Temer. Também é conhecida como “Lei da Grilagem”.

Com a desculpa de “regularizar” a situação de pessoas que muitos anos atrás ocuparam áreas públicas “de boa fé”, para viver nela, a lei permitiu que grileiros que ocuparam terras públicas sabendo que eram públicas até 2011 pudessem “regularizar” seus “grilos” até 2.500 hectares, uma área equivalente a 57 Vaticanos. Basta expandir a produção de “laranjas” e os grilos são legalizados de 2.500 em 2.500 hectares. Neste ato “legal”, Temer e o Congresso anistiaram grileiros. Não só os anistiaram, como converteram criminosos em “cidadãos de bem”, totalmente dentro da lei, ladrões de terra pública em fazendeiros, quadrilhas criminosas em empresas.

Ao final do primeiro ano de governo, Bolsonaro criou a sua MP da Grilagem. Não há precedentes de algo tão escandaloso, pelo menos não no que formalmente tem se chamado de democracia. A MP da Grilagem de Bolsonaro é uma “masterpiece” da legalização da bandidagem. Com a mesma desculpa usada por Lula e depois por Temer, a da “regularização fundiária”, agora é possível legalizar terras roubadas da União até dezembro de 2018. Em resumo: você rouba do patrimônio público, destrói a floresta amazônica e, um ano depois, vira latifundiário legalizado e vai gozar a vida como “cidadão de bem”.

A mesma medida provisória também aumentou para até 15 módulos o tamanho da área que dispensa vistoria do Incra. Em alguns locais da Amazônia, isso significa mais de 1.500 hectares, O processo é praticamente autodeclaratório. O criminoso rouba um pedaço da floresta, diz ao governo que a área é dele e vira fazendeiro. Nenhum funcionário vai sequer checar. Como alguém acredita que vai sobrar floresta amazônica com este estímulo oficial para saqueá-la?

Maurício Torres analisa o impacto:

“Há dois efeitos. O primeiro é o óbvio: a busca por terras públicas não destinadas aumentou, pois agora é só declarar que é o dono para se tornar dono. Essa situação aumenta também o conflito de grileiro comendo grileiro e, também, de grileiro expulsando camponês e indígena. Mas há um outro efeito, este mais sutil. A promulgação de algo dessa dimensão em benefício do grileiro, como é o caso da MP 910, passa uma mensagem de empoderamento, fazendo essa gente se sentir autorizada a tudo”.

As áreas que hoje estão em litígio judicial, ocupadas por agricultores familiares, mas disputadas por grileiros, vão ser tomadas à bala. É o que está acontecendo neste momento na Amazônia e particularmente em Anapu, que têm muitas áreas em litígio. Por isso mais lideranças estão ameaçadas de morte e grileiros têm dito nas ruas que não estão nem aí pra juiz. Por que estariam? Se o Congresso não barrar essa MP, a Amazônia se tornará uma floresta de cadáveres. Não só de árvores, mas de gente.

“Desde a construção das grandes rodovias na Amazônia, talvez nada tenha tanto efeito sobre o aumento da violência e do desmatamento do que essa MP pode gerar”, afirma Maurício Torres. “A medida irá privatizar dezenas de milhões de hectares, ninguém sabe ao certo, mas creio que algo entre 40 e 60 milhões de hectares. Isso significa a emissão de autorizações legais para a derrubada de 20% da floresta nas terras tituladas, algo em torno de 10 milhões de hectares. E isso só contando o que pode ser legalmente autorizado. Mesmo que uma parte disso já esteja desmatada ― e está mesmo ― o impacto será trágico.”

8) Como proteger Erasmo?

Em 2005, um dos principais grileiros da região deu carona a Dorothy Stang. Queria dar a ela um aviso. A missionária depois relataria as palavras deste homem: “Se alguém ‘invadir’ as ‘minhas’ terras, vai ter sangue até a canela”. Este homem, assim como meia dúzia de outros, todos eles bem conhecidos de quem vive na região, tem feito provocações em Altamira e região. É um sinalizador.

Parte do crescimento da violência e da crescente desenvoltura destes personagens miram nas próximas eleições municipais. Eles sentem que já estão no governo, em nível federal. Mas querem ocupar também o poder local para consolidar ― e facilitar ― a conversão do público no privado. Se nada foi feito para barrar a violência, as eleições municipais de 2020 poderão se tornar uma carnificina nas regiões amazônicas de conflito.

Neste cenário em que a lei é usada para proteger o crime contra o patrimônio público, é possível imaginar como estão vivendo ― e morrendo ― os mais frágeis. Como Erasmo, liderança que luta por 300 famílias de agricultores familiares em terras disputadas por grileiros. Na noite de 12 de dezembro, coincidência ou não, dois dias depois da assinatura da MP da Grilagem por Bolsonaro, um homem que trabalha para um dos grileiros das áreas em disputa foi até a casa onde Erasmo vive com os pais, já velhos, e a companheira. Antes de chegar lá, já tinha batido numa mulher e disparado três tiros. Uma das balas passou rente a uma vizinha que voltava da igreja. Diante da casa de Erasmo, o capanga do grileiro gritou e xingou. Queria que Erasmo saísse para falar com ele. A família se trancou dentro de casa.

Quando Erasmo conta o que aconteceu, seu corpo treme sobre a cadeira de plástico branca.

Esta é a vida de muitos que protegem a floresta para todos nós. Esta é a vida de Erasmo, enquanto não for morte.

Está avisado.

O agricultor Erasmo Alves Teófilo, liderança na Volta Grande do Xingu, na Amazônia, está marcado para morrer por lutar contra o poder de destruição da grilagem. Foto: JONATHAN WATTS

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