Por Marques Casara, no Brasil de Fato
Em algum momento, século passado, dirigi um documentário sobre Deus. Eu não entendia nada do assunto. Achava que Deus habitava os templos.
Viajei a São Paulo. Fui perguntar ao padre Marcelo Rossi quem era Deus. A entrevista foi um fracasso. Comentei que a minha filha havia sido batizada em um terreiro de umbanda. Rossi não via a concorrência com bons olhos e ficou de mau humor.
Cruzei o país em busca de respostas. Um caos. Eu via Deus em tudo, menos nas religiões que o inventaram.
Em Santos, vi Deus em uma mulher que cuidava de mendigos doentes terminais, em um cortiço sem água encanada na região portuária.
No rio Tapajós, vi Deus nos olhos de uma mãe que cuidava de uma adolescente grávida, que morria em uma rede, por causa das complicações do parto.
No morro do Borel, vi Deus nos olhos de criança armadas de fuzis AK-47, a brincar de jogos de guerra.
Na Amazônia, vi Deus em uma tigela de banana misturada às cinzas de um velho índio, as quais consumi em fartos goles, durante uma cerimônia fúnebre.
Eu via Deus em tudo, menos nos mercadores que o criaram como ideologia.
Eu precisava fazer o filme e estava preocupado. Mandaram procurar outro padre. “Esse vai dar certo”, me disseram.
Voltei a São Paulo e fui à casa do Júlio Lancellotti, um padre comunista que cuidava de crianças com HIV-AIDS.
A casa estava lotada de crianças. Uma gritaria sem fim. Muitas choravam, outras sentiam dor. Um caos.
“Padre, o que é Deus”?, perguntei logo de cara porque estava com pressa para sair dali.
Diante do meu visível desconforto, Lancellotti recostou na cadeira e esperou, em silêncio, que eu me acalmasse.
O padre tinha uma criança no colo. Uma menina com os joelhinhos protuberantes e o rosto vincado pela dor de uma vida tão breve. A sentença desta pequena criatura estava dada. Em um determinado momento da história, a AIDS foi muito inclemente com as crianças, contaminadas pela transmissão vertical de mães que já haviam morrido.
Eu precisava sair daquela casa porque tudo ali me incomodava: “Padre, o senhor quer que eu refaça a pergunta”?
“Meu filho, não é necessário. É muito simples explicar o que é Deus. Deus é uma mulher negra”.
“Temos algo aqui”, pensei.
Segue o padre: “Deus é uma mulher negra, uma criança negra. Deus é uma criança negra com AIDS. Se você olhar com atenção, verá que Deus está sentado no meu colo”.
Contemplou a garotinha que tinha no colo e disse, olhando para mim: “Se você quer saber o que é Deus, tome-a nos braços”.
Eu não lembro se segurei a criança. Mas, ainda hoje, quando fecho os olhos, a vejo em meus braços. Eu lembro do rosto dela, como se fosse hoje. Um Deus vivo no corpo de uma criança mulher negra.
Deus mulher
Um Deus-mulher-negra-criança pode mudar o curso da história. A crença no divino é um dos mais importantes dispositivos de poder criado pela humanidade.
Uma teologia que nasça da vivência espiritual do feminino pode ser o passo inicial para desvendar o principal paradoxo da humanidade: como conduzir a vida sem que a própria condução de vida seja o vetor de extinção da espécie, pelo ataque desmesurado aos recursos naturais.
As teologias machistas construídas nos porões da Idade Média gestaram o capitalismo predatório. Um modelo que prosperou graças ao extermínio de mulheres, de minorias, de indígenas, de negros.
A humanidade caça “bruxas” desde o século XIII, e o faz até hoje. Uma mulher com poder ainda é um péssimo negócio para os machos predatórios que controlam o fluxo de capitais. O discurso empresarial de igualdade de gênero é uma farsa em quase todo o mundo.
Se a Inquisição tentou, durante séculos, disciplinar o corpo da mulher, o neoliberalismo parece agora dedicado ao golpe final, o ataque à vida comunal, à saúde do habitat, ao útero da terra. Eles querem tudo!
Matar as mulheres ainda é a forma mais eficaz de destruir a resistência, como diz a historiadora Silvia Federici, em entrevista a Pamela Oliveira neste Brasil de Fato.
Diante do retumbante fracasso protagonizado pelos machos de plantão, talvez seja a hora de um Deus mulher nos ajudar, espiritualmente, a tomar conta das coisas. E que do útero da Deusa nasça a revolução dos “anormais”, que desconstrua a noção de sexo biológico, essa dicotomia homem/mulher tão usada para promover, ao longo dos séculos, toda forma de violência.
Edição: Daniel Giovanaz
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Marcha das Mulheres Negras Contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver, em Brasília. Foto: Marcello Casal Jr /Agência Brasil