Resistência e luta marcam a cultura das parteiras tradicionais no Brasil

Entre ameaças e novas fronteiras na cidade, parteira tradicional indígena conta sua realidade dentro e fora da aldeia

Marina Duarte de Souza, Brasil de Fato

“Quando você vê um filho chegar na terra, ou um neto, um bebê, de qualquer pessoa, você vê uma estrela. Por isso, que diz ‘dar à luz’, você vê a sua estrela brilhando na sua frente”. O relato é da parteira tradicional indígena Dxony Fulni-ô, 37 anos, ao entoar uma de suas cantigas ao acompanhar um nascimento.

Dxony mora na Reserva Indígena Kariri Xocó, em Brasília (DF), mas pertence à etnia Fulni-ô, da cidade de Águas Belas (PE), onde nasceu. Lá no agreste pernambucano ela aprendeu a “cultura”, como ela mesma chama, desde os 7 anos, acompanhando a avó, mãe e mulheres mais velhas durante os partos na sua comunidade. Esse saber e tradição são celebrados nesta segunda-feira (20), Dia Nacional da Parteira Tradicional. 

“No meu primeiro parto, eu tinha 7 anos e fui ajudar minha mãe e gostei daquilo. E comecei a fazer de bichos, quando eu via assim um gato, um cachorro, uma vaca, uma cabra, aí eu ia ajudar. Eu vi que aquilo ali me ensinava, o olhar daquele animal para mim. E o que eu fiz, eu pedi para essas mais velhas da minha aldeia para me ensinarem”, lembra.

Dxony já realizou mais de 200 partos em 15 anos. “Eu me conecto com a força e com a sabedoria dos animais. O grande espírito está dentro de mim, dão força, energia e confiança para que eu passe para as mulheres e o parto seja de luz”.

Mesmo com orgulho do ofício, por muitos anos ela escondeu ser parteira, por medo e ameaças das instituições hospitalares e profissionais de saúde, como médicos e enfermeiras. A profissão foi mantida em sigilo na própria comunidade Kariri Xocó, e ela só conseguiu acompanhar partos na cidade de Abadiânia (GO), cerca de uma hora e meia da sua casa e onde passava a semana vendendo artesanatos. 

“Aqui eu nunca atuei, aqui quase ninguém sabia que eu era parteira. Porque isso era uma coisa que eu tinha medo de dizer devido a muitas coisas que nós não temos em documentos nem em diploma. Porque tem muita burocracia, ter o parto em casa, eles colocavam muita coisa negativa, aí era processo se tivesse o filho em casa sem documento. Eu sei que eles colocavam muita lei”, conta.

O relato de Fulni-ô não é único. Apesar de realizarem uma das atividades mais antigas da humanidade, as parteiras ainda são associadas à ignorância, à falta de higiene e ao subdesenvolvimento na sociedade moderna.

O Ministério da Saúde reconhece o ofício: “Assistência ao parto domiciliar que tem como base saberes e práticas comunitárias”. O termo inclui também mulheres indígenas e quilombolas. Mas para o que predomina é o preconceito e a desvalorização do conhecimento tradicional.

Dxony relata também que chegou a receber ameaça de processo de um médico ao atender uma vizinha, em Abadiânia, que não tinha tempo para chegar ao hospital para o parto. O bebê nasceu, a mãe e o menino estavam bem de saúde. Mas, ainda sim, foi questionada pelo médico atendente do Samu. “E ele chegou e falou: ‘Quem é você, você não sabe de nada! Eu sou profissional, eu estudei pra isso’. ‘Meu senhor eu sou indígena, eu nasci com esse dom, não foi estudo que me deu, foi eu vendo os animais.’ Ele riu, disse a mim: ‘Se você continuar desse jeito eu meto um processo em você’”, relembra a parteira.

Restrições

A enfermeira obstetra Tamires Moreira estuda as parteiras tradicionais no doutorado na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e explica que existe a Política Nacional de Parteiras Tradicionais, mas que é muito “utópico” que as leis saiam do papel.

Umas das dificuldades é conseguir a Declaração de Nascido Vivo (DNV), que permite a emissão da certidão de nascimento apenas por médicos diplomados ou por parteiras que passaram pelo Curso de Capacitação de Parteiras Tradicionais do Ministério da Saúde. Mas, segundo a pesquisadora, não existe mais nas áreas urbanas. “Elas não têm acesso ao curso para conseguir pegar a DNV com a presença de testemunha os cartórios são obrigados a emitir a DNV, mas isso não existe.”

A própria Dxony Fulni-ô teve os quatro filhos no hospital para ter acesso à declaração e à certidão dos filhos.“Eu só ia porque tinha que ter um teste de pezinho, tinha que ter o ‘nascido vivo’, que é aquele papel que dão. Eu nasci em casa, eu fui registrada com 21 anos, porque eu nasci em casa e não tinha ‘nascido vivo’. Eu sou o exemplo disso, por isso que eu fui para o hospital”.

Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que existe o Programa Trabalhando com Parteiras Tradicionais desde 2000, mas não apresenta nenhuma informação sobre o Curso de Capacitação das Parteiras Tradicionais, dados estatísticos sobre as parteiras no Brasil e outras formas de desenvolvimento de políticas públicas. O órgão apenas cita uma parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), desde 2018, que realiza capacitação de parteiras tradicionais no estado do Amazonas.

Violência obstétrica

Por outro lado, mulheres não indígenas da cidade buscam o auxílio de parteiras tradicionais para fugir da lógica dos hospitais, muitas vezes violenta. Esse movimento fez com que Dxony encontrasse o movimento de parto humanizado e, há três anos, ela acompanha todo o período de gestação, não só o momento do parto. Nesse processo, a indígena se formou como doula, assistente à gestante durante a gravidez e parto, e compartilha seu conhecimento tradicional com outras doulas e parteiras urbanas.



Atualmente, Dxony acompanha partos em todo o Brasil e conta a realidade relatada por muitas mulheres sobre o parto nos hospitais.

“Muitas me falam sobre violência no parto, por parte de pessoas que não têm paciência, pessoas que gritam, que não entendem esse lado profundo. Essa conexão traz elas para esse lado mais natural, porque nos hospitais que elas relatam, há demora, às vezes, de se recuperar, o jeito que tratam elas, sem paciência. E nós, que somos parteiras, damos tempo ao tempo para as crianças nascerem. Nos hospitais é tudo avexado. Isso se chama violência obstétrica”, afirma.

De acordo com a pesquisa “Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado”, organizada pela Fundação Perseu Abramo, uma em cada quatro mulheres já foi vítima de violência obstétrica. Esse tipo de violação quando há prática de negligência ou de maus tratos, sejam eles físicos ou verbais, contra a mulher em todo seu período gestacional, não apenas no momento do parto.

Dxony afirma respeitar o trabalho dos obstetras, mas defende a necessidade de um encontro entre a ciência e a cultura tradicional das parteiras. “Mas eu acharia melhor se tivesse as parteiras nos hospitais para fazer com que essa conexão voltasse, para fazer com que essa evolução da espiritualidade entre nesse lugar, para verem que não é um simples diploma, não é um simples papel. Eu sei que é necessário ter os obstetras nos hospitais, porque eles estudam para isso e eles têm mais uma visão através da ciência. E nós, parteiras, já temos uma visão através da espiritualidade, a diferença está aí. Só isso.”

A recomendação da parteira vai ao encontro das orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), que indica o acompanhamento de parteiras tradicionais a mães e recém-nascidos, assim como a não padronização do tempo que o processo pode durar, já que cada mulher responde de forma diferente.

Já nas comunidades indígenas, a violência obstétrica psicológica tem afastado e extinguido as parteiras tradicionais. Dxony conta que as próprias indígenas estão com medo de parir em casa e dar errado, ideia essa alimentada por profissionais da saúde com discursos alarmista.

A enfermeira obstetra Tamires Moreira relata que há o mesmo processo em comunidades do Alto Rio Negro, no Amazonas, onde desenvolve sua pesquisa. “Há um tempo elas pariam na própria comunidade com as parteiras locais e, agora, elas estão sendo muito menos buscadas por mulheres para parir. Elas [parteiras] relatam que as mulheres estão indo procurar o hospital de São Gabriel da Cachoeira [cidade mais próxima, o extremo norte do estado]”, relata a pesquisadora.

Esperança e resistência

Assim como um dia teve coragem de assumir a cultura herdada de geração em geração, Dxony Fulni-ô tem esperança de que a tradição resista na sua cultura, por meio da articulação com outras parteiras tradicionais. Ela e indígenas de todo o Brasil estão se reunindo para fortalecer as parteiras tradicionais nas suas comunidades e transmitir o conhecimento.

“Aquelas que tiverem coragem e força no seu coração de ajudar ao próximo nesse rito de passagem de uma mãe e um filho, eu estou disposta a ensiná-las o pouquinho que eu sei e a deixar que o grande espírito e a força da natureza, dos animais e da terra mostrem a ela como é. Não é só chegar falar, falar e falar, se você não se firmar espiritualmente e dizer eu posso, eu consigo e eu sou capaz”, defende. 

A própria filha de Dxony, Itauãnai Fulni-ô, de 18 anos, já está aprendendo os caminhos da mãe. Desde os 15 anos, a jovem acompanha os partos realizados pela matriarca, que defende com veemência a atividade.

“Eu não quero dizer que os médicos não sabem, mas eu só quero dizer a eles e ao governo [federal e Ministério] da Saúde que deem uma nova chance, que nos deixem fazer o que é do nosso povo, da nossa vida. Porque eu vejo que eles bloqueiam você ser o que você é, é um bloqueio da nossa vivência nessa terra. É só o que eu tenho para dizer, abrir mais os olhos para nós, parteiras”. 

Edição: Vivian Fernandes.

Imagem: Dxony Fulni-ô fala sobre a experiência de ser uma parteira tradicional / Foto: Espaço Santosha e Mamastê

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