Demétrio Xavier canta Athaualpa Yupanqui: O Filho da Terra que veio para narrar

Para celebrar os 112 do compositor e músico argentino, o também músico a apresentador gaúcho faz show nessa sexta-feira

Katia Marko, Fabiana Reinholz e Marcelo Ferreira, Brasil de Fato 

“Cantar a aldeia, com as vozes da Cultura Crioula e os sotaques do Continente de São Pedro e do Continente Latino-Americano.” Assim começava um dos programas mais populares da FM Cultura, rádio pública do Estado do Rio Grande do Sul. Sob o comando de Demétrio Xavier, o Cantos do Sul da Terra trouxe, por sete anos, as vozes mais emblemáticas do continente latino-americano.

Uma dessas vozes é a de Héctor Roberto Chavero, ou melhor dizendo, Athaualpa Yupanqui, “O Filho da Terra que veio para narrar”. Filho de pai quéchua e mãe basca, nascido da província portenha de Pergamino, dizia que em seu sangue galopavam dois avós, um cheio de silêncios, o outro meio cantor. É reconhecido como um dos mais importantes divulgadores de música folclórica da Argentina, com uma “ajudinha” da cantora francesa Édith Piaf. Suas composições foram cantadas por intérpretes como Mercedes SosaAlfredo ZitarrosaVíctor JaraMarie Laforêt e Elis Regina, entre outros, como Démetrio Xavier, que com sua velha “guitarrita”, encontrou seu paisano pessoalmente nos anos 90.

Camino del Indio, primeira música composta por Yupanqui, também a primeira ouvida por Demétrio, os uniu. Nesse encontro, o jovem urbano, nascido em 1966 na Cidade Baixa, um dos bairros mais antigos da área central de Porto Alegre, recebeu a benção para seguir cantando as suas canções. 

“Has de contar… Narrarás”. Recién ahora, en el otoño de mi existencia, con muy largos caminos andados, con muchas noches sin poncho, puedo asumir el Destino de este nombre que me lleva con él, mundo afuera y mundo adentro. Recién ahora, pausadamente y con amor sereno, puedo decir: “Había una vez…”. Y empezar a contar.”, escreveu Yupanhqui cinco anos antes de sua partida.

Para recordar os 112 anos de vida do compositor argentino, Demétrio cantará suas canções nessa sexta-feira, no Café Fon Fon (Rua Viêira de Castro, 22 – Farroupilha, Porto Alegre).

O Brasil de Fato RS conversou com Demétrio, sempre acompanhando de sua guitarrita (violão que o acompanhou quando se encontrou com Athaualpa) e o mate amargo. O bate papo foi sobre Athaualpa, sobre sua atualidade no atual contexto latino-americano, sobre o Cantos do Sul da Terra, que saiu da FM Cultura mas continua atuante, através do Salve Sintonia.

Brasil de Fato RS: Demétrio, gostaria que tu nos contasse por que, ainda hoje, lembrar a obra Athaualpa, e qual a importância desse legado?

Demétrio Xavier: Yupanqui era um compositor popular, um escritor um músico, um livre pensador. E que está passando por um fenômeno muito interessante de ter essa obra e seu ponto de vista conhecido cada vez mais mundialmente. Isso confirma muito algo que ele gostava de dizer, ele gostava de sonhar, inclusive citando autores de que ele gostava muito, como por exemplo, o espanhol Antônio Machado: gostava de sonhar com o anonimato no sentido do tornar-se folclórico, tornar-se domínio popular.

Quando a gente pensa num tema como Los Hermanos, todo mundo conhece, mas que nem todo mundo faz a referência imediata ao autor. Ele consegue por aí esse resultado, como aquela história que Antônio Machado diz, o que se perde de fama se ganha de eternidade, quando se passa ao domínio popular.

A importância dele, a atemporalidade dele é essa, alguém que viveu praticamente todo século XX, produziu todo o século e conseguiu fazer, o que ele também gostava de chamar, fixar à sua época. Ou seja, ter um compromisso histórico permanente com sua gente, com sua história, com a sua paisagem, que era uma palavra que ele repetia tanto. Mas ao mesmo tempo que ter alcance, ter uma potência que chega no domínio do filosófico, que invade com tranquilidade, com facilidade uma outra forma de pensar que não costuma ser a forma ordinária de um compositor popular.

Ele gostava muito de dizer que era um crioulo, que era um mestiço, um resultado de mãe basca, com toda a herança milenar, e quíchua, que vinha pelo tronco familiar do pai dele. Ele gostava de dizer, por exemplo, “me galopam no sangue dois avós, um cheio de silêncios, o outro meio cantor”. Aí ele está falando do índio e do gaúcho, ele gosta de ser o resultado americano da mestiçagem americana, essa é uma das maneiras dele ser histórico, atemporal também, na medida em que ele conseguiu registrar essa forma de ser americana, essa forma de ser crioula. Ele cristaliza, plasma, realiza aquilo que ele diz alguma vez em uma poesia: “Eu canto por ser antigo cantos que já são eternos e até parecem modernos pelo que neles encerramos, com canto nos tapamos para amornar os invernos”.

Com o canto nos tapamos para amornar os invernos. Não é uma filigrana, um prazerzinho fútil, avulso, não, ele tem que estar associado às demandas de um povo, de uma coletividade. Quando se consegue isso, se alcança essa eternidade, e no caso dele por enquanto não se perdeu a fama também porque ainda é o nome celebrado mundo afora. Mas um dia, talvez, se conheça sua obra e não se lembre mais dele, como sempre foi o seu sonho.

BdF RS: Athaualpa Yupanqui não era o nome dele, era um pseudônimo que ele escolheu em homenagem ou para lembrar imperadores Incas. Você conversou quando conheceu ele?

Demétrio: Especificamente sobre isso não. Ele tinha uma proximidade com o idioma, um dos dois grandes troncos idiomáticas que vêm do império Inca, que é o quíchua, ou quéchua, e o Aimará… ele falava algo de quíchua. Se é verdade que ele era um guri estudioso, bem americanista, bem interessado de um ponto de vista americano, um ponto de vista do nosso continente, de um ponto de vista que mais tarde se chamaria de colonial, ele foi buscar duas linhagens importantes de incas, de soberanos, que seriam Yupanqui e Athaualpa. Também é verdade que Athaualpa Yupanqui, numa tradução que a gente pode fazer a ressalva que é aproximada – mas nas línguas indígenas sempre é assim, sempre aproximada – quer dizer “o filho da terra que veio para narrar”.

Na minha opinião, e sobretudo agora que é muito mais fácil depois de ver a obra do cara inteira e o seu caminho de vida completo terminado, esse significado é muito maior do que a referência aos incas Athaualpa e Yupanqui. Esse filho da terra que veio para narrar, de alguma maneira, é a consigna, a vocação e o mandato que ele se dá, quando aos 15 anos, diz algum biógrafo, 17 ou 18 diz outro, pouco importa, ele se dá esse nome.

Então aquele Héctor Roberto Chavero Aramburu fica para sempre em segundo plano, e dá lugar a esse Athaualpa Yupanqui. E ele aparece para a Argentina numa reivindicação indígena, justamente quando há uma marcha indígena, uma reivindicação que tem a ver com condições de trabalho. Ele vai para o jornal, escreve, apoia, uma postura muito política, mas muito do lado do indígena.

Ao mesmo tempo, e disso eu falei com ele quando a gente conversou, ele tem um tema que é o primeiro registro dele, que se chama Camino del Indio, que por uma sorte minha foi a primeira música que eu ouvi em um álbum triplo de folclore latino-americano. Era no tempo do vinil, em um envelope com três vinis dentro e uma pintura que representa uma abóbora, uma pintura da Olga Dondé. A gente ouve muito na Argentina dizer “más Criollo que Zapallo”, como a abóbora sendo algo muito crioulo. Então está aquela abóbora aberta e o nome da pintura é “La Gran Madre latino-americana”. Neste álbum tem música de todo o continente.

Camino del Indio é aquela velha história de um escritor, um artista qualquer, em qualquer modalidade de arte, fazer mais do que pensa que fez, ou fazer algo diferente do que está pensando que fez, manifesta-se inconsciente, funciona a interação daquela obra com as outras pessoas. Mas ele escreveu sobre o vizinho, sobre um cara que morava lá em cima de uma lomba, que chamavam índio, que era um cara meio misterioso. Escreveu Camino del índio, que era o caminho que levava àquela casa. Só que isso se torna uma página, um momento fundamental da reivindicação indígena no continente.

E está muito atual porque as ameaças ao originário aparecem adormecidas de vez em quando, por um acordo ou por outro, por uma boa vontade de política aqui ou ali. Mas de uma maneira geral, são combatidos desde o momento da conquista do território. Isso é uma constante com seus pequenos oásis, sobretudo por causa da capacidade política que eles têm, não por outra razão, não por outra benesse de ninguém. Mas o movimento constante de ofensa, de ataque ao originário é inegável, e a gente está vendo um momento muito grave disso.

E quando ele faz Camino del Indio, com 17 anos de idade, parece que ele crisma aquele batismo de Atahualpa Yupanqui e mostra sua vocação americana que vai durar quase todo século. E ainda é um cara, como tantos outros artistas, que morre atuando. Ele, com 84 anos, em 1992, dois anos depois de eu conhecê-lo, está em Nine, na França. Em um dado momento ele diz que vai até o hotel por estar se sentindo mal, e morre sozinho no hotel. Dizem que numa posição algo fetal, assim como os indígenas sempre dormem, segundo ele dizia. Ele se deita naquela posição e adormece, e morre assim, saindo do palco.

BdF RS: Vários músicos latino-americanos gravaram Athaualpa, como Victor Jara, Mercedes Sosa. Hoje estamos vendo grandes mobilizações em vários países da América Latina, Chile, Bolívia, enfim, tem uma ebulição, e músicas sendo resgatadas, como por exemplo, o hino Chileno El Pueblo Unido. Qual a importância de estarmos lembrando esses músicos que construíram essa história, que cantaram a cultura latino-americana?

Demétrio: Essa pergunta é oportuna em si, mas é mais oportuna porque há muito poucos dias, no marco do Fórum das Resistências, eu fiz uma apresentação cujo repertório foi todo de músicas resistentes, de músicas de combate. Eu trouxe um repertório só daquelas músicas e eu disse, naquela ocasião, que há um punhado de anos, uma meia dúzia de anos atrás, jamais eu faria um espetáculo com repertório igual àquele. E eu disse isso porque eu nunca deixei de cantar cada uma daquelas músicas, mas eu não via uma razão para agrupá-las todas e mostrar como era, como foi, como é esse universo de músicas de luta, dessa tradição musical. Faço isso agora porque considero extremamente necessário, e também considero útil, oportuno. Não é museológico o que a gente está fazendo.

E vou repetir algo que eu disse naquele mesmo espetáculo: eu estou interessadíssimo nas formas de explicação e de resistência nascidas agora, criadas agora para o momento que nós estamos vivendo no Brasil e no continente. Eu quero saber muito do que a poesia contemporânea jovem está fazendo para dar conta disso, a música também, em parte eu até sei.

É preciso, buscar fazer análise contemporânea do que está acontecendo, mas é preciso ser capaz de fazer a comparação com outros momentos de opressão, com outros momentos de exceção, com outros momentos de ataque que os direitos, a justiça e o bem-estar comum sofreram. São recentes, são similares historicamente sobre vários aspectos, mas certamente não sobre todos. Então, eu tenho a oferecer, por causa do meu trabalho, o cancioneiro latino-americano dos anos 60, dos anos 70 e a sua potência para essa luta, mas devem estar presentes também essas outras formas de manifestação. A mesma coisa quanto à ciência social, quanto à história na hora de explicar o que está acontecendo. Quanto disso tem a ver com fenômenos como a extrema-direita do início do século 20, a gente está falando tanto nisso, está usando como adjetivos determinadas palavras que são fenômenos reconhecidos, batizados lá nos anos 20 e 30. Quando a gente fala em fascismo, quando a gente fala em nazismo, quando a gente fala no ciclo de golpes que o continente sofreu entre os anos 60 e 70, não é diferente, existem muitos pontos de contato com as coisas estão sendo vividas agora.

Mas não todos, há coisas que são específicas e são de agora. Eu aporto algo que já tem os seus anos, as suas décadas, mas é profundamente válido e novo, e isso deve estar ao lado das construções de agora, para que tenha utilidade. E aí eu fiz, naquela ocasião, como faço agora, um resgate, uma citação de uma letra do Sílvio Rodriguez, aquele baita cubano, aquele tremendo compositor, que diz assim: “Arando o porvir como velhos bois”. A gente tem que arar o porvir com velhos bois e com novos bois. Podemos aportar um pouco da sabedoria popular, gauchesca e rural, de lavoura, se vai fazer uma junta de dois bois, pode botar um novo e um velho, um aporta aquela experiência de trabalho, o outro sua energia, seu vigor, e vai se trocando as juntas, bota os novinhos na frente, depois bota no coice, às vezes bota no meio. Enfim, precisamos ter essa perspectiva de dar conta do que se está vivendo agora, com as coisas tradicionais e consagradas, como um Victor Jara, um Athaualpa Yupanqui e com tudo de novo, bonito e potente que está nascendo neste momento.

BdF RS: Falando do Cantos do Sul da Terra, teu programa de rádio, foram quantos anos de programa?

Demétrio: Foram sete anos, começou no dia 5 de setembro de 2011. Eu fui em agosto à casa Athaualpa Yupanqui, que hoje é um museu, onde ele está enterrado; estive lá em agosto em uma festa da Pachamama, na festa da deusa terra, e eu pedi para o sacerdote Victor Acebo, líder indígena, da etnia quíchua, uma benção da Pacha, da Terra, para esse programa, e ele nos deu essa benção em quíchua, inclusive traduzindo trechos do Los Hermanos pro quíchua. A benção aconteceu no meio da festa, no meio da música, no pátio da casa de Yupanqui, quando se enterraram as oferendas para Pachamama.

Sem nós sermos pessoalmente e nem pretendemos muito menos ainda dar qualquer conotação místico-religiosa ao que a gente fazia, por uma questão de cultura popular, de respeito à cultura popular e de indigenismo, de americanismo, nós trouxemos essa benção para começar o programa em 5 de setembro de 2011.

Assim foi até o meio de 2018, quando por razões político-administrativas, por razões que tem a ver com a condução da rádio pública, das emissoras públicas, encerramos ali aquele círculo que foi um tremendo sucesso uma tremenda ausência. Eu me vejo ali dentro, no meio de feras do rádio, fazendo uma experiência de rádio que para mim foi uma coisa magnífica, inesquecível. Foi a coisa mais importante que eu fiz na minha vida, e se um gênio maligno daqueles imaginados pelo René Descartes me dissesse que eu teria que tocar ou fazer o Cantos do Sul da Terra, eu pararia de tocar para fazer o programa, porque acho que consegui de forma mais abrangente, mais completa dizer o que eu sempre quis dizer tocando e cantando.

Assista à entrevista completa:

Edição: Marcelo Ferreira

Imagem: Demétrio concedeu entrevista ao Brasil de Fato RS em sua casa; show será no Café Fon Fon / Foto: Fabiana Reinholz

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

18 − 14 =