Professor de Geociências explica relação entre as inundações no Leste do estado e os crimes da Vale
Amélia Gomes, Brasil de Fato
Miguel Fernandes Felippe, professor do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) explica como o rompimento da barragem de rejeitos de mineração da Vale no Rio Doce reverberam na situação atual de enchentes e desabrigados. O professor critica ainda a omissão do Estado e o modelo de desenvolvimento – desmatamento para pecuária, por exemplo – que levam ao caos deste janeiro. Ele também discute a atuação da Fundação Renova e explica quais medidas poderiam ter sido tomadas para evitar tanta destruição.
Brasil de Fato – Na última semana assistimos a uma série de inundações na região leste do estado, que até o momento deixou mais de 15 mil pessoas desabrigadas só na cidade de Governador Valadares. A região já viveu períodos de graves enchentes, mas nunca antes com tamanhas proporções. A cheia é a primeira após o rompimento da barragem de Fundão. Há possibilidade de o crime da Vale ter relação com a série de inundações que têm acontecido na região?
Miguel Fernandes Felippe – Sim. A gente pode falar que há uma relação dos crimes da Vale com as inundações que têm acontecido. Mas não podemos colocar isso como principal fator das enchentes. No caso do Rio Doce, o rompimento da barragem de Fundão colocou toneladas de rejeitos na calha de rios como o Gualaxo do Norte, do Carmo e Rio Doce. Esses sedimentos ficam mais acumulados em uns trechos. Por diversos motivos, que vão desde a presença de represas até o que a gente chama de ambientes pluviais de reposição, que são regiões com menos circulação. Alguns rejeitos têm a granulação maior que outros e criam na calha do rio uma espécie de tapete, que é o que contribui para o assoreamento. Esses depósitos contribuem para a diminuição da calha, diminuindo a profundidade do rio. Com isso, a mesma quantidade de chuvas de outras épocas consegue atingir cotas mais altas, ou seja, gera transbordamento e inundações. Não tem como negar que os rompimentos contribuíram significativamente para os assoreamentos destes rios. Cabe ressaltar que o assoreamento, agravado com o rompimento, já vem acontecendo há muitos anos por causa também de atividades agrícolas. Alguns estudos apontam, por exemplo, que o desmatamento causado pela pecuária faz com que o dobro de volume de água chegue ao leito dos rios. Então todos esses fatores contribuíram para a atual situação.
Os rejeitos tóxicos da barragem de Fundão ainda estão no leito do Rio Doce? Há algum levantamento sobre isso? Quais as regiões mais críticas?
Isso é uma questão absurda. Desde o crime, discutiu-se muito pouco em termo de recuperação ambiental. Criou-se a Fundação Renova, à revelia do interesse dos próprios atingidos. A Fundação entende como recuperação da área a estabilização dos rejeitos nas margens dos rios atingidos. Ou seja, os rejeitos não serão retirados. Essa estabilização não é efetiva, pois as chuvas caem e vão lavando os rejeitos de volta para os rios. Então na verdade estamos passando por uma situação de contaminação perpétua. Porque a cada chuva os rejeitos são levados novamente para os rios. Não só fisicamente, com o deslocamento dos sedimentos, mas também quimicamente. A cada chuva os elementos tóxicos interagem com a água. Esse é um problema que vai continuar acontecendo, seja em momentos de chuvas extraordinárias ou rotineiras. As regiões mais críticas são o Vale do Gualaxo do Norte e do Carmo.
Quais medidas deveriam ter sido tomadas pela mineradora para que o assoreamento do Rio Doce não reverberasse em situações como a vivenciada hoje, de enchentes e inundações alarmantes?
Para evitar o assoreamento, a primeira coisa que deveria ter sido feita era retirar os rejeitos que estão nas margens dos rios para que eles não retornassem aos leitos com as chuvas. O segundo ponto é o reflorestamento e revegetação da área. A vegetação tem uma grande capacidade de retenção dos sedimentos, o que evitaria que eles chegassem à calha do rio. Além disso, enchentes nessas regiões são comuns, então o poder público tem a capacidade de se precaver sobre esses fenômenos e evitar as perdas. Há uma ineficiência do Estado em gerir situações de crise e de riscos ambientais. Agora quando se assume que a solução da Renova é uma solução adequada, perde-se a capacidade de se prevenir das enchentes causadas pelo assoreamento dos rios.
Com essas inundações, os rejeitos podem se espalhar por outras localidades? Com o transbordamento do Rio Doce, há possibilidade de contaminação de outros recursos hídricos (lagoas/ poços artesianos/ rios/ etc)? Há riscos para o lençol freático da região?
Eles vão ficar no que a gente chama de fundo do vale, nos rios afetados. Porém, a cada transbordamento, os sedimentos mais finos são colocados de volta na planície. Por exemplo, sedimentos que estavam na planície em Barra Longa, no Rio do Carmo, são transportados. Os sedimentos começam a ser espalhados por toda a bacia A gente vai ter um prolongamento da contaminação. Com os rejeitos depositados na margem, entra o processo que é a água da chuva entrando em contato com os rejeitos, solubizando os contaminantes e colocando-os em contato com os solos ou mesmo na água subterrânea. Toda vez que temos o depósito do rejeito acima do solo, a cada chuva eles atingem a água subterrânea.
A mesma situação se aplica para o Rio Paraopeba?
No Rio Paraopeba a quantidade de material é menor. Além disso, devido ao próprio relevo, boa parte dos rejeitos ficaram retidos na bacia do ferro carvão. No entanto, o Ribeirão Ferro Carvão – afluente do Paraopeba, está completamente assoreado. As inundações nele serão frequentes.
Edição: Joana Tavares.
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Imagem: Para evitar o assoreamento, a primeira coisa que deveria ter sido feita era retirar os rejeitos que estão nas margens dos rios / Mídia Ninja