O lançamento do livro O retorno da Terra, da antropóloga Daniela Alarcon, foi uma das atividades da Farinhada dos Tupinambá
Por Olinda Muniz Wanderley* e Haroldo Heleno, Cimi Regional Leste
Aconteceu no período de 12 a 15 de dezembro de 2019, na aldeia Serra do Padeiro do povo Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia, a 9ª Farinhada das mulheres da Serra do Padeiro, que este ano teve como tema: “Mulheres Indígenas plantando e colhendo sustentabilidade e garantindo a soberania alimentar em seus territórios”. Aproximadamente 150 pessoas participaram do evento, além das próprias Tupinambá, mulheres indígenas dos povos Pataxó (extremo sul da Bahia), Pataxó Hã-Hã-Hãe (sul da Bahia), Tumbalalá (norte da Bahia), estudantes, representantes de movimentos sociais, universidades.
A Farinhada 2019 teve como objetivos desenvolver e fortalecer a produção da farinha e dos produtos derivados da mandioca, no intuito de favorecer a auto-organização, a autonomia e a valorização do trabalho das mulheres envolvidas nas atividades; dar visibilidade ao trabalho das mulheres e suas demandas bem como contribuir para o reconhecimento de sua participação na vida econômica local e territorial; a partir da “Farinhada” ver a possibilidade de Ações de Sustentabilidade e Autonomia para as comunidades envolvidas nos seus respectivos territórios; motivar, animar o processo de mobilização e organização das mulheres para Ações de partilha e garantia de “Direitos”, bem como, clareza das organizações quanto aos seus “Deveres”; fortalecer a organização das mulheres indígenas, visando possibilidades de ampliação para mais mulheres da região.
O projeto da “Farinhada das Mulheres”, que acontece desde 2010, tem dois pilares fundamentais: 1) fortalecimento de uma atividade já existente e predominante na comunidade – a produção de farinha; 2) Fortalecimento do processo organizacional e de empoderamento das mulheres Tupinambá da Serra do Padeiro e das outras indígenas participantes do evento, além de assentadas da Reforma Agrária da região circunvizinha, por meio de rodas de diálogo, oficinas práticas de produção de farinha e seus produtos derivados, exibição de vídeos, fotografias, brincadeiras.
Em todas estas etapas são abordadas temáticas diversas, focadas nas atividades desenvolvidas por mulheres; bem como contribuir para que as mulheres indígenas e assentadas fortaleçam sua auto-organização, tornando-se cada vez mais autônomas. A farinhada das Mulheres busca promover e valorizar o trabalho das mulheres inseridas em um coletivo, nestas comunidades indígenas e também nos grupos de assentadas.
Na tarde do dia 12, as delegações das diferentes etnias chegavam na Serra do Padeiro, e fomos recebidas pelas anfitriãs Dona Maria e Glicéria (Célia). Na cozinha o fogão a lenha contribuía para tomarmos uma xícara de café e por o papo em dias. As conversas chegavam sempre acompanhadas de boas gargalhadas em meio às lembranças das mulheres lembravam de encontros passados, quando se conheceram, inclusive de farinhadas anteriores, o que denota intimidade entre elas. No dia seguinte, logo cedo, seu Lírio locutor da rádio Tupinambá da Serra do Padeiro dava bom dia, e convocava as mulheres para trabalhar na farinhada.
Todo o processo de preparo da farinha e seus derivados acontece na casa de farinha onde a mandioca é ralada, a goma separada, e a farinha e os beijus produzidos. Pela manhã as mulheres acordam cedo, tomam café na cozinha de Dona Maria, logo depois seguem para a casa de farinha, todas com suas facas em mãos para começar o trabalho. Este ano além do tema das políticas públicas, foram abordados temas importantes como: O perigo e a violência do Governo Bolsonaro para os povos indígenas; Recurso Extraordinário 1.017.365 – REPERCUSSÃO GERAL. Aconteceu na noite do dia 13, o lançamento do livro “O Retorno da Terra” da Daniela Alarcon (veja mais abaixo).
Esta experiência da farinhada sempre contribui para o seu crescimento pessoal, social e político uma vez que se entende que, ao empoderar o individual se empodera também o coletivo. As rodas de conversa, a troca de experiências, permitem que mais mulheres atinem sobre suas competências e de seu valor, entendendo que o fortalecimento de um projeto permite desenvolver outros que podem vir a incluir mais mulheres.
As mulheres indígenas têm desenvolvido um importante trabalho de organização dentro de suas comunidades, e a busca pela soberania alimentar tem sido um pilar importante para garantir a alimentação das comunidades, traçando políticas e estratégias sustentáveis de produção. Em meio ao processo de feitio da farinha as mulheres conversam, cantam, contam histórias, riem e brincam. À noite todos se juntam em torno do centro da aldeia para agradecer aos encantados estarem sempre protegendo. O fazer farinha para os povos indígenas é valorizar seus ancestrais, cantar, agradecer, compartilhar, brincar, rir. É pensar estratégias para continuarem se organizando para sobreviver frente aos desafios impostos por um sistema colonizatório, que já dura mais de 520 anos, especialmente agora com as ameaças do atual governo Bolsonaro.
A alegria contagiante, a animação, a espiritualidade, o compromisso, o trabalho conjunto de mulheres e homens, o envolvimento coletivo, foram alguns dos elementos presentes no processo da farinhada, além é claro, da farinha, o beiju, a goma, a puba, e muitos outros produtos deste mutirão. No último dia, a casa de farinha é ornamentada e vira uma grande “Feira da Partilha”, onde todas as mulheres se reúnem, e os alimentos preparados com os derivados da mandioca e a farinha são partilhados igualmente para todos. Esse momento é todo especial, pois os laços de solidariedade são ainda mais reforçados com a partilha. A farinhada Tupinambá é um evento tradicional que tem despertado o espírito solidário em outras comunidades indígenas, e isso é muito importante, sobretudo depois das influências negativas da atualidade em muitas destas comunidades. Tudo isto “desembocam” nesta Feira da Partilha, um gesto concreto da construção de Bem Viver, tão sabiamente vivenciado pela comunidade da Serra do Padeiro
O deslocamento das delegações das Pataxó Hã-Hã-Hãe de Pau Brasil e Itajú do Colônia, e das Pataxó dos territórios de Barra Velha e do Território Comexatibá, no extremo sul da Bahia, foram garantidos com recursos da Embaixada da França, que vem apoiando as iniciativas do Cimi Regional Leste nos trabalhos de empoderamento e fortalecimento dos processos formativos e de luta junta as mulheres indígenas.
O Cimi entende a Farinhada das mulheres como um espaço de construção de utopias possíveis, de um gesto concreto de “rebeldia” contra um sistema que exclui, isola e violenta. A farinhada não só inclui, congrega, mas sobretudo valoriza, empodera e fortalece o processo comunitário e nos diz que um outro mundo é possível sim.
(*) Olinda Muniz Wanderley, jornalista indígena, é coordenadora do Projeto Kaapora. O projeto Kaapora realiza um conjunto de ações do povo Pataxó Hã-hã-hãe tais como a restauração e educação ambiental, valorização da cultura indígena e estabelecimento de Áreas de Proteção Ambiental Indígena, cuja primeira é a APA Kaapora.
O Retorno da Terra: as retomadas da aldeia Tupinambá da Serra do Padeiro, sul da Bahia
POR HAROLDO HELENO, DO CIMI REGIONAL LESTE
O lançamento do livro O retorno da Terra, da antropóloga Daniela Alarcon, trouxe luz à noite do dia 13. No terreiro da aldeia, montou-se o palco, que foi iluminado pela lindíssima Lua Cheia, que também veio prestigiar o evento. Este sem dúvida foi o mais importante dos lançamentos já realizado pela autora Daniela Alarcon. Ali naquele chão onde originou toda a narrativa contida naquelas páginas, os personagens, os lugares, as histórias, as lições estavam ali naquela noite presentes, ao vivo e a cores.
Parte dessa história é apresentada em O retorno da terra: as retomadas na aldeia Tupinambá da Serra do Padeiro, sul da Bahia, fruto de uma dissertação de mestrado defendida pela autora na Universidade de Brasília (UnB) e premiada pela Society for the Anthropology of Lowland South America (SALSA) na edição de 2018 do Norm and Sibby Whitten Publication Subvention Fund.
De acordo com Glicéria Jesus da Silva, uma das lideranças da Serra do Padeiro e autora do prefácio, o livro é um “romance da terra”. “Quando Daniela se detém para ouvir o clamor, as tragédias, as expulsões do território, tamanhas violações dos direitos do nosso povo, a violência contra a terra, ela também mostra como o nosso povo se organizou, através das retomadas, para reverter os impactos que a natureza vinha sofrendo, e como as florestas, as nascentes dos rios e os animais passaram a se sentir mais protegidos e seguros. Ela documenta como nós estabelecemos em uma vivência de enfrentamento, para garantir o bem viver com a natureza”, diz Glicéria.
Resultado de minuciosa pesquisa de campo e documental, o livro esmiúça o processo de recuperação territorial, demonstrando como o projeto coletivo construído pelos Tupinambá da Serra do Padeiro vem criando condições para a emergência de memórias subterrâneas, para o retorno de indígenas que se encontravam na diáspora — alguns deles trabalhando em condições análogas à escravidão — e para o fortalecimento de atividades produtivas tradicionalmente desenvolvidas pelo grupo, que contribuem decisivamente para as condições de vida dos indígenas e para a conservação da mata atlântica, bioma onde se situa a aldeia.
Ao mesmo tempo, o livro revela as profundas repercussões cosmológicas das retomadas de terras. Os Tupinambá acreditam que o território pertence aos Encantados, entidades não humanas que habitam diversos domínios do mundo físico e que, assim como os indígenas, foram impactados pelo avanço da fronteira capitalista e pela degradação de sua morada. Cem exemplares foram doados à comunidade da Serra do Padeiro, e os outros representantes dos povos presentes na farinhada também receberam exemplares.
Após a apresentação, houve depoimentos emocionados, muitos deles falavam da importância da publicação. Para Agnaldo Francisco Pataxó Hã-Hã-Hãe, que é atualmente o presidente da Associação Geral da Comunidade da Serra do Padeiro e professor no Colégio Estadual da Aldeia, O retorno da Terra é um instrumento de luta e que precisa ser usado para “se defender dos inimigos”.
Dona Maria da Glória faz uma ligação do lançamento do livro com o momento da farinhada, destaca a importância da Mãe Terra, do trabalho comunitário, da importância da mandioca na vida da comunidade, do apoio de outras comunidades. Ela afirma que não vai ler o livro, pois ela diz que não sabe ler. Mas não é preciso que Dona Maria saiba ler o livro: ela é parte dele, e os “outros” é que vão ter que lê-la.
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Imagem: A Farinhada 2019 teve como objetivos desenvolver e fortalecer a produção da farinha e dos produtos derivados da mandioca. Crédito da foto: Haroldo Heleno/Cimi Leste