Reportagem vencedora do Prêmio Gabriel García Márquez em 2019 investiga problemas que passam de geração para geração em Havana
Por Mónica Baró, Agência Pública
Galinhas não andam marchando. Ou melhor, não deveriam marchar. Se uma galinha marcha, ou caminha com as pernas esticadas e enrijecidas, é porque há algo de errado com ela.
Em Havana, capital de Cuba, existe um lugar onde as pessoas viram frangos marchando por mais de 40 anos.
A cubana Yanet Cáceres viveu neste lugar, junto com o marido Geovanny Montenegro e a filha Rachel Romiño, de 1997 até dezembro de 2013. Ela criava frangos no quintal e os observava marchar até caírem mortos.
— Você punha eles no chão e com um mês já estavam assim: marchando com as pernas rígidas. Iam ficando duros… E morriam.
Não se comia os que apareciam mortos. Quem cria animais sabe que esses não devem ser destinados ao consumo, porque podem ter morrido por causa de alguma doença.
Depois de degolados, depenados e limpos sobre a mesa da cozinha, alguns eram tão assustadores que ela desistia de comê-los. Tinham uma aparência muito desagradável: má-formação nos ossos, articulações desgastadas, os tecidos musculares roxos.
— Pareciam como quando você tem artrose nos dedos, como minhas mãos calejadas.
As galinhas ainda botavam ovos estragados. Os que saiam eram um muco; as cascas nunca chegavam a se formar.
Mas não era só com as galinhas que algo estava errado.
— Não tinha um cachorro que durasse mais de quatro anos. Ficavam loucos. Convulsionavam, espumavam. Eu não sei se é porque eles estão constantemente farejando o chão… Os que mais duravam eram os gatos.
Em seus cálculos, morreram uns cinco ou seis cães antes que ela decidisse não adotar mais nenhum.
Para Alberto Manzanero e Hilda Brito, seus sogros, não era fácil criar porcos. Para que sobrevivessem e se desenvolvessem, tinham que mantê-los num curral de cimento.
— Você lembra da porca que pariu e teve contato com a terra? –pergunta Alberto a Hilda. — Não sobrou um filhote. Começaram com diarreia, andavam de lado… Salvamos dois ou três que ainda foram roubados.
Hilda se lembra das vacas da sua infância, nos anos 1960. Teve três vacas e as três morreram com convulsões. Não duraram mais de dois meses.
Nessa época, a fundição de chumbo do seu pai ainda funcionava. Acabou em 1968. Foi fechada. Ela já suspeitava que a terra tinha ficado envenenada, e que por isso os frangos marchavam: tinham bicado o chão.
O que ela nunca suspeitou foi que também humanos podiam ser envenenados. Não soube que isso era possível até o final de 2006, quando perguntou à vizinha Milvia González pelos netos e Milvia disse que tinham sido “internados pelo chumbo”.
— E eu pensei: “Pelo chumbo? Como, pelo chumbo?”.
O sonho de Jacinto Beato
Quando Jacinto Beato mudou-se para San Miguel del Padrón, um município da área metropolitana de Havana, aos 6 anos, no final da rua Villalobo, bem em cima de uma pedreira às margens do rio Luyanó, existia ali uma fundição de chumbo cujo proprietário era um homem de sobrenome Balán. Nos arredores, havia apenas residências. Não chegavam a dez. A mãe de Beato comprou um terreno para construir uma casa para sua família.
Isso foi no ano de 1953.
A fundição de Balán ficava a cerca de 20 metros de onde Jacinto viveria e era vista como símbolo de prosperidade. Todas as semanas, entravam e saíam caminhões carregados com matéria-prima ou lingotes de chumbo. Se dizia que seus operários eram sortudos.
Arturo Brito era um desses operários. Um dia, decidiu tornar-se independente, virar seu próprio chefe, e no quintal de sua própria casa instalou uma fundição, ao pé da mesma pedreira. Um negócio modesto, mas suficientemente atrativo e promissor para convencer vários familiares seus e de sua mulher, Onelia Serpa, a deixar para trás suas vidas em outras regiões do país, vir para a capital, comprar lotes na desolada Villalobo e se pôr a trabalhar na produção de chumbo a partir da reciclagem de baterias.
Elio Serpa, sobrinho de Onelia, foi dos primeiros a chegar. Veio da província de Las Villas, ao norte de Cuba, em 1958, sozinho. Tinha quatorze anos. Trabalhou por três meses colocando, com uma pá, as barras de chumbo para fundir, e voltou a Las Villas para buscar seu pai, sua mãe e cinco irmãos.
Em 1962, chegaram Sergio e Narcisa, recém-casados, e com um filho a caminho que em poucos meses nasceria morto. Arturo, que era irmão de Sergio, tinha ido buscá-los em Matanzas, a 100 quilômetros de Havana, para se juntarem ao negócio que florescia.
O forno era aceso à meia-noite. Antes do amanhecer, se apagava.
— Por causa da fumaça, do calor e do cheiro — explica Elio.
Isso acontecia três vezes por semana. Era necessário um dia para que esfriasse e outro para que fosse restaurado com barro antes de voltar a funcionar.
A fundição começou a crescer. Matéria-prima nunca faltava: toda segunda-feira chegava um carregamento de cerca de dez toneladas. Produzia-se lingotes de vinte quilos. Tampouco faltavam clientes. As funerárias sempre tinham demanda de chumbo para fazer crucifixos e alças dos ataúdes. Em janeiro de 1967, firmou-se um contrato com a Empresa Distribuidora de Aparelhos Domésticos do Ministério de Comércio Interior, que se comprometeu a comprar por seis meses toda a produção.
Nessa época, a fábrica de Balán já estava fechada e Arturo tinha realocado a sua do quintal de casa para um extremo da vila, a uns 10 metros de distância, onde a fumaça incomodava menos os residentes, já que a chaminé dava para uma floresta. Também ficou mais próxima das águas do rio que às vezes servia de vertedouro para as impurezas do chumbo fervente retiradas com uma espumadeira.
Isso durou até 1968.
Em 13 de março daquele ano, na escadaria da Universidade de Havana, o comandante Fidel Castro anunciou que havia chegado o momento de “empreender a fundo uma poderosa ofensiva revolucionária”. Não explicou em que consistiria a dita ofensiva, só usou a expressão uma vez, quase no final do discurso. Mas já advertira antes: “Não terão futuro neste país nem o comércio nem o trabalho por conta própria, nem a indústria privada, nem nada”.
No dia seguinte, o jornal Granma, órgão oficial do Comitê Central do Partido Comunista de Cuba, transformou a menção em manchete de primeira página e ao longo do mês se encarregou de explicar o que significava aquilo. Não houve uma só edição que não tivesse notícias, reportagens, ilustrações ou comentários a respeito.
A cobertura foi tão intensa como parcial. Em abril, era improvável que algum leitor do Granma tivesse dúvidas de que a ofensiva revolucionária não era um simples slogan em meio à propaganda oficial, mas o anúncio de uma das medidas mais radicais e ousadas do governo revolucionário: a expropriação, em muitos casos à força, de todos os negócios privados de Cuba: edifícios, receita, mercadorias e tudo o que tivesse algum valor.
Em 29 de março, já haviam sido expropriadas no país 55.636 empresas, entre elas 682 metalúrgicas, 98 das quais se encontravam em Havana.
Hilda não esquece a noite em que chegaram, sem avisar, para derrubar impetuosamente a fundição do seu pai.
— Foi uma destruição. O que prestava, levaram, e o que não, atiraram pelo barranco, para o riozinho. A matéria-prima ficou ali, atirada sobre o chão.
Segundo os cálculos de Elio, 3 ou 4 toneladas de placas de baterias, contando o peso da terra que existe entre uma e outra, ficaram espalhadas pela área. E ficaram também as fundações do local onde se derretia e moldava o chumbo, o forno frio, instrumentos de trabalho, carvão, resíduos.
Hilda, que nasceu e cresceu ali, já naquela época perdera todos os dentes e mastigava com uma dentadura postiça. Não tinha completado quinze anos.
Ninguém na sua família nem no seu bairro sabia que esse era o tipo de coisa que podia ser causada pelo chumbo. Porque ninguém sabia, em primeiro lugar, que o maior perigo em uma fundição de chumbo não era se queimar com o forno.
Jacinto Beato: ano 1971
“O bebê estava bem, muito bem, sem nenhum problema de saúde. E, mesmo estando bem no começo, adoeceu. Aparentemente por um resfriado. Isso foi em uma quinta-feira. E no domingo morreu. No domingo, começou a convulsionar no La Balear (hospital pediátrico de San Miguel). No momento em que o transferiam para o hospital William Soler por causa de uma febre muito alta, já tinha afundamento nas laterais do crânio e no osso frontal, e às cinco e quinze da manhã faleceu. Tinha sete meses e dois dias. A minha esposa já tinha abortado duas vezes. Um com quatro meses de gravidez, que tivemos que correr com ela ao hospital, e outro, uma menina, com quase sete meses. Depois disso foi que nasceu o primeiro, esse que faleceu, e depois nasceu outro, que com um mês de nascido tivemos que ir com ele muitas vezes para hospitais, porque eram diarreias e febre. O pequenino teve dengue, mas conseguimos salvá-lo”.
De Saturno à pintura de parede
Junto com o ouro, a prata, o cobre, o ferro, o estanho e o mercúrio, o chumbo compõe os sete metais da antiguidade.
Na Alquimia, o chumbo correspondia ao planeta Saturno. Por isso, se denomina saturnismo o envenenamento causado quando é absorvido em grandes doses. De acordo com os cientistas americanos Herbert Needleman e David Bellinger, especialistas no tema, “o chumbo é o veneno mais conhecido e o mais bem estudado”.
Em 1892, os médicos John Lockhart Gibson e Jefferis Turner relataram ao Congresso Médico Australiano dez casos de envenenamento por chumbo em crianças atendidas na cidade de Brisbane, na costa leste da Austrália. Inicialmente, teve quem não levasse a sério. Até aquele momento, se acreditava que o chumbo afetava apenas os adultos que trabalhavam em minas ou fundições. Para piorar a situação, Gibson e Turner não conseguiram explicar como as crianças se envenenaram.
Mais de uma década depois, em 1904, Gibson descobriu a fonte tóxica: carbonato de chumbo na pintura doméstica. Crianças que roíam as unhas e chupavam o dedo acabavam sendo as principais afetadas. E também, aquelas que, atraídas pelo sabor doce do chumbo, comiam lascas de tinta seca.
Entre 1891 e 1908, Gibson e Turner detectaram, apenas em Brisbane, 262 casos de envenenamento infantil por tinta com chumbo na composição.
As descobertas dos australianos fizeram avançar as pesquisas e contribuíram para a implementação de regras para o uso de chumbo na fabricação de tintas.
Até 1964, existiam em Cuba ao menos oito pesquisas que relatavam casos pediátricos de saturnismo, segundo um artigo intitulado “Hiperaminoacidúria na intoxicação por chumbo”, publicado em outubro daquele ano na Revista Cubana de Pediatria.
Desde 1967, se utilizavam como referência as normas soviéticas de controle da exposição laboral – que afeta os trabalhadores –mas, em geral, acontecia em Cuba o mesmo que no resto do mundo: a exposição ambiental ao chumbo não constituía uma prioridade do governo.
As políticas, normas e regulamentações para proteger a população demoraram décadas para aparecer. Em 2015, respondendo a um relatório do PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente), Cuba estabeleceu o limite de componentes de chumbo na pintura em 20 mil partes por milhão (ppm), um dos mais altos entre os países do mundo que são regulados. O limite recomendado pelo PNUMA é de 90 ppm.
Dois irmãos insuportáveis
Os netos de Milvia não eram apenas dois irmãos que se davam mal. Os irmãos podem se dar mal, mas há limites. Os netos de Milvia viviam do outro lado dos limites. Atormentaram tanto seus pais que acabaram sendo levados ao psiquiatra.
Uma tia, Sunia Baró, diz que os seus sobrinhos, de 7 e 5 anos na época, eram “insuportáveis”, que “se alteravam muito”. Os vizinhos, por sua vez, se lembram deles como meninos agressivos, intranquilos, embora reconheçam que naquela região não eram os únicos com essas características.
Quando começaram a ser atendidos no Hospital Pediátrico de Centro Habana e receberam tratamento, os meninos progrediram. Pelo menos iam melhor na escola e estavam mais calmos, embora ninguém conseguisse entender por que tinham ficado tão irascíveis em primeiro lugar.
A primeira luz sobre o problema surgiu quando os pais viram um programa de televisão estadunidense sobre um caso de exposição ao chumbo e seus efeitos prejudiciais. Então, mais que uma resposta, surgiram perguntas. Será que os filhos estavam envenenados? Podia ser o chumbo a causa de seus problemas de comportamento? Como descobrir?
Assim que contaram ao psiquiatra suas preocupações, o hospital solicitou alguns exames para averiguar se, mais do que transtornos psiquiátricos, aquilo era envenenamento.
Depois de vários meses de espera, os resultados confirmaram as suspeitas. Ambos apresentavam níveis de concentração de chumbo no sangue superiores a 30 mcg/dl (microgramas por decilitro), três vezes mais do que a dosagem a partir da qual a Norma Oficial Mexicana (usada como referência em Cuba) recomenda intervenção médica para menores de quinze anos.
Adriano e Bryan, filhos de Ariel Baró e Yanmaris Rondón, foram as duas primeiras crianças da Villalobo internadas por exposição ao chumbo, no Hospital Pediátrico de Centro Habana, no final de 2006.
Naquele momento, poucos vizinhos se inteiraram do diagnóstico. Passariam mais de três anos antes que a maioria das crianças do bairro fosse internada pela mesma causa.
Sunia Baró: “Quando crianças fazíamos bonequinhos de chumbo”
Nós fomos viver ali quando eu tinha dois anos. Éramos cinco irmãos. Sou a mais nova. Minhas duas irmãs foram para os Estados Unidos. Ariel foi há dois anos. Ali nasceram as minhas sobrinhas, os filhos do meu irmão, o bebê do meu tio René, que vivia em uma casinha nos fundos — seu filho nasceu aparentemente normal, mas não me lembro com quantos meses começaram umas convulsões e ficou mortinho, como um vegetal. Era um bebê sadio até que sofreu essas convulsões.
O chumbo afetava as crianças de diferentes formas. Por exemplo, os filhos do meu irmão eram insuportáveis. Já o meu tinha muita perda de memória. Nessa época, tinha 8, 9, 10 anos. Esquecia tudo. Ele não se lembrava nem do que tinha comido no mesmo dia ou no dia anterior. Esquecia onde tinha deixado os brinquedos. Às vezes estava com o brinquedo pendurado no pescoço, ficava procurando e não encontrava. E sentia muita dor nas articulações. Queixava-se muito de dor nos ossos.
Eu, desde pequena, sempre perdi muito cabelo. Hoje em dia os cabelos caem aos cachos, mas quando criança eu não entendia por que caíam tanto.
Sempre soubemos que ali tinha chumbo, mas não sabíamos que era tão grave.
Quando crianças nós brincávamos com as placas de chumbo: derretíamos em uma jarrinha, cavávamos um buraquinho na terra com algum formato, jogávamos o chumbo quente e, quando esfriava, tirávamos um bonequinho.
Você escavava um pouco a terra e saíam as placas de chumbo aos montões. Havia muitas que estavam à flor do solo.
Não existe nível seguro de chumbo
A posição da Organização Mundial da Saúde (OMS) é clara: “Não existe um nível de exposição ao chumbo que possa ser considerado seguro”. Para ninguém.
Uma vez inalado ou ingerido, o chumbo passa ao sangue e se aloja nos tecidos moles (rins, fígado, cérebro, coração, pulmões) e nos ossos. Ataca os sistemas nervoso central e periférico, o renal, o reprodutivo, o hematopoiético, o gastrointestinal, o cardiovascular, o imunológico.
No sangue, o chumbo pode permanecer de 20 a 40 dias, enquanto nos ossos ele permanece de 50 a 60 anos. É neles que se acumula a maior quantidade de chumbo. No caso de adultos, mais de 90% e, no de crianças, mais de 70%.
O chumbo se assemelha a várias substâncias necessárias aos ossos, como o cálcio e o flúor. Por isso, o corpo faz confusão e o redistribui como se fosse necessário, sobretudo se existe um déficit nutricional. O chumbo acumulado nos tecidos ósseos não fica metabolicamente inativo, e tende a ser deslocado outra vez para o sangue e os órgãos. Isso significa que o esqueleto pode funcionar como uma fonte endógena de exposição ao chumbo, em especial perante determinados eventos fisiológicos e patológicos: gravidez, lactação, osteoporose e envelhecimento.
O feto em formação precisa, entre tantas coisas, de cálcio. Então, se o organismo da gestante acumulou chumbo nos ossos, enviará chumbo ao feto houver demanda de cálcio. Os riscos dessa exposição intrauterina incluem más-formações, partos prematuros e abortos.
A eliminação natural do chumbo é um processo lento. Quando ocorre exposição aguda, ele deve ser feito com um tratamento quelante — com substâncias que removam o metal dos tecidos e permitam a sua excreção urinária. No entanto, nenhum tratamento evitará sequelas.
Em 2016, a exposição ao chumbo, tanto ambiental como laboral, provocou mais de 540 mil mortes no mundo, segundo os cálculos do Instituto para a Métrica e Avaliação Sanitária.
Crianças, principalmente as menores de seis anos, são a população mais vulnerável aos efeitos tóxicos do chumbo. Elas não apenas comem mais alimentos, mas bebem mais água e respiram mais ar por unidade de massa corporal do que os adultos. Da mesma forma, absorvem veneno em maior proporção (50% do chumbo que ingerem, enquanto os adultos só absorvem entre 10% e 15%).
O hábito de levar brinquedos e outros objetos à boca é outro dos fatores que aumentam os riscos de exposição. Estima-se que, em um dia, uma criança ingere 100 miligramas de terra e poeira.
Mas é o cérebro frágil infantil — em desenvolvimento, crescimento e diferenciação — o órgão que mais pode sofrer com o impacto do chumbo. A interferência do metal nos processos neurológicos danifica funções cognitivas e pode provocar desde dificuldades na fala e agressividade até diminuição do coeficiente intelectual e mesmo retardo mental.
Em 2012, os Centros para o Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos determinaram que não era prudente continuar utilizando 10 mcg/dl como valor limite para crianças. A bibliografia especializada já reiterava que qualquer nível de chumbo detectado no sangue era preocupante.
A solução encontrada foi utilizar um valor de referência – 5 mcg/dl – que fosse representativo da população 1 a 5 anos; os casos que chegassem a resultados superiores a esse valor precisariam de assistência médica.
Certamente, 5 mcg/dl pode parecer irrisório. Um decilitro é apenas a décima parte de um litro: uma xícara de café. Um grama é uma aspirina de mil miligramas. Um micrograma é a milionésima parte de um grama. Mas, quando se trata do chumbo, essas partículas são suficientemente tóxicas para prejudicar o funcionamento do organismo humano.
Chega a comissão médica
O caso de Adriano e Bryan levou uma “comissão médica” ao número 11211 da rua Villalobo, entre as ruas Iris e Final. Era a casa onde eles moravam com os avós, os pais, os tios e um primo. Os níveis de chumbo, superiores a 30 mcg/dl, soaram um alerta: eles podiam não ser os únicos.
Hilda viu o grupo chegar. Lembra-se de que foi entre o final de 2006 e o começo de 2007.
A comissão seguia um protocolo. Nos casos de pacientes pediátricos que apresentassem níveis elevados de chumbo no sangue, a intervenção não era meramente médica, mas também ambiental.
Uma das primeiras medidas que devem ser tomadas, segundo os Centros para o Controle e a Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, consiste em detectar a fonte de exposição, que, no geral, se encontra na casa, na escola, na creche, ou na comunidade, nos principais espaços onde as crianças convivem. O objetivo é eliminá-la.
Hilda sabia que algo grave relacionado ao chumbo estava acontecendo e tinha uma preocupação: no seu quintal funcionara a fundição do seu pai por vários anos, e ela achava que devia relatar isso à comissão.
— Os especialistas vinham com umas varinhas para medir o tóxico – conta Hilda – e, quando passaram na minha casa e caminharam por onde existia o forno… A partir daí começaram a fazer as análises de sangue.
Segundo depoimentos, em várias ocasiões pessoas de instituições estatais chegaram à rua Villalobo com instrumentos para detectar chumbo. Elas caminhavam por pontos distintos medindo e recolhendo amostras de terra, poeira doméstica, água, plantas. Os moradores se lembram que lhes pediam que não varressem a casa por alguns dias para que a poeira acumulada fosse recolhida para análise.
Os resultados desses estudos ambientais nunca foram comunicados aos habitantes daquele lugar. Nem desses nem de outros que foram feitos ao longo dos anos. O que se observou foram medidas tomadas progressivamente.
Primeira: ninguém podia, legalmente, trocar ou vender sua casa, construir, ampliar ou reparar, nem dividir sua propriedade.
Segunda: informar a comunidade sobre efeitos do chumbo, saúde e precauções para diminuir riscos. Vários médicos, em reuniões públicas, recomendaram não ingerir alimentos cultivados nas redondezas; que as crianças lavassem bem as mãos antes de comer; que as mulheres não engravidassem. Entre outras coisas.
Terceira: despoluição ambiental. Desmatou-se grande parte da área onde se encontravam as fundições – sobreviveram dois manguezais –; os resíduos dos quintais foram extraídos e jogados num aterro distante e em uma fossa coberta com concreto; o último trecho da rua Villalobo foi pavimentado.
Quarta: exames para medir os níveis de chumbo no sangue passaram a ser feitos sistematicamente, principalmente na população infantil. A maioria das crianças com níveis elevados foi internada no Hospital Pediátrico Juan Manuel Márquez.
Quinta: os residentes da Villalobo entre as ruas Iris e Final foram removidos. Iniciou-se um processo gradual de entrega e demolição de casas, com prioridade para as famílias onde havia menores de idade com níveis elevados de chumbo no sangue.
Em agosto de 2007, as primeiras famílias foram removidas e entregaram as seis primeiras casas; as duas últimas, foram entregues em março de 2016.
Em maio de 2018, ao final da Villalobo, ainda restavam cinco famílias expostas ao chumbo. E uma sexta em uma ocupação ilegal que, desde o começo dos anos 1990, se estendeu pelas pedreiras, às margens do rio e de outros canteiros silvestres que conformam a não-rua chamada Final.
Yanet só ficou sabendo da alta concentração de chumbo no solo porque sua casa funcionava como base de operações para médicos, toxicólogos, pesquisadores e funcionários do governo que apareciam, e ela sempre estava atenta ao que conversavam – ou seja, estava atenta à sua vida e à da sua família.
A concentração a que se refere, sem pensar duas vezes, é a mesma relatada por outros vizinhos: 24 mil miligramas de chumbo por quilograma de terra (mg/kg). Uma cifra 45 vezes superior ao valor a partir do qual se considera que há riscos potenciais para seres humanos, animais e plantas, e se orienta a intervenção ambiental — segundo os padrões holandeses seguidos pelo governo cubano.
Entretanto, nenhum dos entrevistados para esta reportagem que foram afetados pela exposição ao chumbo em San Miguel del Padrón tem documentos que confirmem esse dado alarmante.
Os documentos conservados desses anos são, sobretudo, resultados de exames médicos, principalmente de dosagem de chumbo, e cartas de resposta a queixas apresentadas a diversas instituições do Estado por atrasos no processo de outorga de habitações. Há aqueles que não guardaram nada porque os papéis traziam más lembranças ou porque não se queixaram com frequência.
Yanet e Yamilet González são das pessoas que mais se queixaram e menos papéis descartaram. Enviaram várias cartas entre 2008 e 2012, individuais ou coletivas, ao Comitê Central do Partido Comunista de Cuba, ao Conselho de Estado, à Procuradoria-Geral da República e até ao gabinete do então presidente Raúl Castro.
Depois, as queixas foram enviadas a instituições estaduais e municipais, que quase sempre respondiam que, embora o caso da Villalobo fosse uma prioridade ao país, a demanda de habitação na capital superava a disponibilidade do fundo habitacional e, portanto, deviam esperar.
Embora em quase todas as cartas se reconheça a “contaminação por chumbo”, nenhuma oferece dados que sustentem cientificamente esse critério. A rigor, para poder afirmar que um local se encontra contaminado, seria indispensável contar com os resultados dos estudos ambientais. Para isso, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente (CITMA), teria que tornar a informação pública.
Sem informação oficial
Aymara Linares, residente do número 11224, apresentou, com seu marido Freddy Ayala, uma queixa ao gabinete do então ministro do CITMA, José Miguel Miyar, em outubro de 2011, pedindo que levassem em conta o seu filho Quiomar Alejandro, que tinha dez anos. Quiomar não foi internado porque sua mãe não tinha o título de propriedade da casa, mas o menino havia nascido e crescido naquela área.
Em março de 2014, quase três anos depois, quando a atual ministra do CITMA, Elba Rosa Pérez, assumiu, Aymara recebeu uma resposta do Escritório de Atenção aos Cidadãos. Um resumo do expediente do seu caso. Esse é o único documento emitido pelo CITMA que foi encontrado pela reportagem. E, mesmo assim, não traz dados científicos relevantes.
Em junho de 2017, o site cubano Periodismo de Barrio apresentou por escrito uma solicitação de entrevista para Adela Haber Vega, representante provincial do CITMA de Havana, com o propósito de “perguntar sobre os resultados dos estudos ambientais realizados na área, antes e depois do processo de despoluição”.
Semanas depois, Desiré Urbay Morales, chefe da unidade de organização e gestão integral da delegação estadual, respondeu por telefone que eles não fornecem informações a órgãos de imprensa que não são oficiais.
Posteriormente, o site Periodismo de Barrio contatou por e-mail Odalys Goicochea, diretora de meio ambiente do CITMA, e um mês depois recebeu uma segunda negativa: “Não é possível enviar a informação porque a revista digital para a qual trabalha não pertence a nenhum dos nossos meios de imprensa nacional”.
De acordo com Yanet, uma vez concluída a despoluição ambiental, em meados de 2009, o nível de concentração de chumbo no solo caiu para 4 mil mg/kg. Mas não há evidências concretas que permitam corroborar essa cifra. Só contamos com a sua palavra, sua memória.
O que se sabe, e se pode provar, é que o saneamento ambiental não conseguiu descontaminar a área o suficiente para eliminar todos os riscos. A maioria das remoções de moradores aconteceu entre 2011 e 2016, ao menos dois anos depois desse procedimento.
Há, além disso, uma inspeção sanitária assinada por Ana Tacoronte, então vice-diretora do Centro Estadual de Higiene e Epidemiologia de Havana, que, após uma visita à casa de Yanet, escreveu: “Em análise efetuada em nível estadual, se propôs novamente a saída de todos os moradores que ficaram, isso deve acontecer antes que termine o ano”. E a data é 10 de novembro de 2012.
Apesar do ultimato dado pela doutora Tacoronte, Yanet e sua família não foram removidas até dezembro de 2013.
Helena Rodríguez: “Meu filho vivia dentro do chumbo”
Eu sei que é o chumbo porque fizeram análise no meu filho e os resultados deram elevados. Alejandro foi o caso mais crítico. Eu levantei quatro fundações para fazer a minha casinha no terreno onde ficava uma das antigas fundições. Quis ser esperta e o que eu fiz foi me ferrar, porque o meu filho vivia dentro do chumbo. Chumbo fora e chumbo dentro, porque nós levantamos os blocos na placa do piso da fundição. E onde estava o chumbo? Estava enterrado lá dentro.
Alejandro só caminhou com 16 meses. Nasceu com problemas psicomotores. Nasceu, além disso, com o tubo digestivo desviado. Tinha umas cólicas que o bairro inteiro caminhava com o pequenino até que parassem. Eu o tratei na igreja, o tratei com bruxo, o tratei com acupuntura, o tratei com todo mundo para que passassem essas dores. Eu não comia nada. Por pouco não desapareço. Eu tive esse problema desde o ventre, tive contrações desde que fiquei grávida até parir. Os vômitos, eu me mijava, eu passei de tudo pelo meu filho. Alejandro era um vegetal. Eu trabalhava em uma escola de auxiliar de cozinha e pedi demissão pelo meu filho. Eu ia entregar meu filho nessas condições para alguém cuidar dele?
A Associação Internacional de Chumbo informa que a cada ano se produzem cerca de 10 milhões e meio de toneladas. Pouco menos de 5 milhões provêm da exploração mineral e o resto, mais da metade, de reciclagem.
A indústria das baterias ácidas de chumbo, que permitem que funcionem automóveis, ônibus, caminhões e motocicletas, demanda 85% dessa produção. Hoje se consegue reciclar mais de 95% do chumbo usado nessas baterias. O resto se destina à fabricação de compostos de chumbo, lâminas, munições, ligas e capas para cabos.
O chumbo, apesar de ser tóxico, é vital para as sociedades modernas. Ao menos até o presente. Os problemas surgem quando não são tomadas as precauções necessárias para manejá-lo nem se implementam regulamentações que evitem usos inapropriados.
Nenhum país está completamente a salvo. Mas, sem dúvida, são as nações de baixo e médio rendimento as mais vulneráveis nesse sentido. De acordo com a OMS, 99% das crianças mais afetadas pela elevada exposição ao chumbo residem nesses países.
Como, meu sangue é vermelho?
Alejandro Banderas foi o menino da Villalobo que registrou os níveis mais elevados de chumbo. Foi internado cinco vezes em menos de dois anos no Hospital Pediátrico Juan Manuel Márquez, localizado no município de Marianao. A primeira internação foi em 2 de agosto de 2007.
Sua mãe, Helena Rodríguez, guarda um resumo do histórico clínico – algumas folhas deterioradas com dados escritos à mão, embora formalmente assinadas e carimbadas pelos médicos que o atenderam –, no qual consta que Alejandro foi internado “com diagnóstico de intoxicação por chumbo.
Não tinha sintomas físicos severos, apenas dores esporádicas nos ossos e no abdômen. Nada de náuseas, vômitos, debilidade, encefalopatia – uma disfunção cerebral –, ataxia – perda de coordenação motora – ou convulsões. No entanto, a concentração de chumbo no sangue chegava a mais de 76 mcg/dl, o que, segundo a norma mexicana, era “caso de emergência para atenção médica imediata”.
A bibliografia, há décadas, alerta que não é raro encontrar casos crônicos nos quais os pacientes, tanto crianças quanto adultos, se mostram assintomáticos. Mas para determinar se uma pessoa esteve ou não exposta ao chumbo é imprescindível realizar uma medição no sangue e, para complementar, raios-X.
A primeira internação de Alejandro durou oito dias. Foi tratado por 72 horas com penicilamina, um agente quelante, e no dia 10 de agosto já tinha saído do hospital.
Não se supunha que ele iria voltar para casa. Para Alejandro, regressar à fonte de exposição podia implicar um aumento ainda maior do chumbo no sangue. Mas Helena não tinha outro lugar para ir.
Voltaram ao mesmo bairro, à mesma fonte de exposição, outras quatro crianças da sua numerosa família que também haviam sido internadas com níveis de chumbo que oscilavam entre 30 mcg/dl e 50 mcg/dl: sua irmã Mari Karla Reyes, de 8 anos; suas primas Lisbianis Cuevas e Yusimí Domínguez, de 8 e 4, respectivamente; e o seu primo Julio César Domínguez, de 3.
Em 13 de dezembro os cinco já estavam de volta ao hospital Juan Manuel Márquez.
Nessa ocasião, Alejandro entrou com 68 mcg/dl e sem sintomas. Uma vez mais, indicaram tratamento quelante e, no quinto dia, lhe deram alta “sem complicações”, ante uma “evolução favorável”, e orientaram “seguimento por consulta e tratamento ambulatório”.
Com os seus parentes aconteceu o mesmo.
A terceira internação não ocorreu sem sobressaltos. Quando Alejandro chegou ao hospital, em 20 de fevereiro de 2008, o nível de chumbo no sangue era de quase 84 mcg/dl. Tinha dores no abdômen, na cabeça e nas costas.
A partir de 100 mcg/dl, pacientes infantis correm risco iminente de entrar em coma e morrer.
Alejandro foi internado em uma UTI e submetido de novo a tratamento quelante, dessa vez por via intravenosa e intramuscular. Mas teve várias complicações. Adoeceu de pneumonia e sofreu uma convulsão que provocou lesões no tórax.
Permaneceu internado por mais de 40 dias. As cinco crianças não sairiam do hospital até o dia 3 de abril de 2008, direto para as casas que o Estado cubano havia entregado aos seus pais, bem longe do chumbo.
A família numerosa, que vivia em uma casa de três cômodos independentes, sem contar o de Helena – que era como um anexo –, recebeu no total cinco casas em bairros distintos em Havana, todas no mesmo dia. A que deixaram para trás foi posta abaixo. E a Direção Municipal de Planejamento Físico de San Miguel del Padrón nunca mais autorizou a construção de novas habitações ali.
Alejandro agora tem 15 anos. Fala do que aconteceu como se não fosse com ele. Era muito pequeno. Uma das coisas que não esquece é que não entendia por que o seu sangue, se tinha chumbo, era vermelho e não de outra cor. Sempre o impressionou que seu sangue ainda assim fosse vermelho.
Mari Karla Reyes: “Tem dias que sou como um fósforo”
Eu penso que nós podíamos seguir vivendo lá. As pessoas só se deram conta disso tudo porque os exames começaram a dar alterações, se não, não nos teríamos dado conta.
Todo mundo vivia normalmente. Eu não sentia nada. O que eu tinha era cansaço na vista, no corpo, mas, como era uma menina e sempre estava brincando, achava que era de tanto correr e saltar. Hoje ainda tenho dores. Tem dias que as pernas me doem, os braços, que não posso caminhar porque me doem muito os pés. Agora com a barriga me dói ainda mais, mas antes de estar grávida também tinha cansaço no corpo. Agora, meu problema é o mau humor.
Tem dias que sou como um fósforo. Me jogam um pouquinho de gasolina e acendo. Minha mãe diz que eu não pareço em nada a menina de antes. Que eu era uma menina alegre, doce, boa, mas depois que terminei o fundamental me tornei um ácido de bateria, chatíssima, amargurada, problemática. No fundamental eu era um amor de Deus, cantava o hino nacional nos corais matutinos, dançava, tinha amiguinhas. Depois que entrei no ensino médio, era outra coisa. Eu não sou inteligente, mas também não sou burra. Burro é meu irmão, eu sou ligeira.
18 crianças contaminadas
Em 2008, o consultório médico 27 da Policlínica Docente Universitária Bernardo Posse de San Miguel del Padrón atendia 657 pessoas. Entre elas, pelo menos 122 residiam na Villalobo, entre as ruas Iris e Final, ou nas redondezas.
Sándor Díaz, um estudante de medicina, quis estudar os casos de contaminação, em particular, os da população pediátrica, que chegava a 25. O saturnismo não é tão comum quanto uma gripe, não é uma doença que se trate em apenas uma consulta, menos ainda em pacientes infantis, e essa raridade foi o que o motivou.
Ele estava no primeiro ano do curso na Faculdade Miguel Enríquez, da Universidade de Ciências Médicas de Havana, e fazia residência no consultório 27; assim, não teve dificuldades para acessar os resultados das análises de dosimetria do chumbo que estavam sendo feitas nas crianças desde o ano anterior.
A doutora Leticia Cruz, metodologista da clínica Bernardo Posse, concordou em ser sua tutora.
— Ninguém havia feito o que ele fez: ir até as casas, entrevistar as mães, as crianças. Ele foi olhar os pátios, fez fotos – conta Cruz, dez anos depois.
O estudo, além de mostrar em uma série de gráficos as relações entre os níveis de chumbo no sangue e a idade, o sexo e as condições estruturais das casas, revela que das 25 crianças havia dez com níveis de chumbo no sangue entre 10 mcg/dl e 19,9 mcg/dl, e oito com níveis que superavam os 20 mcg/dl. E a maioria, 16, era menor de dez anos.
Havia, portanto, dezoito crianças que requeriam uma avaliação médica integral. Mas nenhuma seria hospitalizada até que terminasse, um ano mais tarde, o saneamento ambiental.
Segundo testemunhos de pessoas afetadas, a ala de internação do Hospital Pediátrico Juan Manuel Márquez, admitiu 12 menores apenas no primeiro semestre de 2010.
Leslie Figuerola: “Logo que conheci Cristo declarei meu filho saudável”
Diagnosticaram Bryan aos 3 anos com neuropatia periférica e uma perda auditiva do ouvido direito. Os médicos disseram então que a neuropatia seria para toda a vida, as dores nas pernas, o cansaço, e mandaram vitaminas para ele.
Para a perda auditiva mandaram colocar aparelho. Mas eu logo conheci Cristo e o declarei saudável. Não coloquei nunca aparelho de audição, não pus nada. O que acontece é que ele fala um pouco mais alto, como se estivesse gritando, para poder se ouvir.
Um dia, uma ortopedista se deu conta de que a criança tem um quadril mais alto que o outro e o manda tirar um raio-x. Quando viu o resultado, se assustou, e o mandou fazer uma tomografia computadorizada, porque achava que o menino tinha um tumor em uma perna. Imagina como eu fiquei. Isso foi em 2015. Com esse exame fui então à oncologista e a médica me disse, não, que ficasse tranquila, que isso podia ser da mesma doença, porque nos exames as imagens saem distorcidas pela contaminação por chumbo.
Foi quando me desesperei e disse: “Não posso fazer mais nada; se há que fazer algo eu não vou fazer, porque não tenho poder para fazer nada, que Deus o faça”. Porque você se desespera e tem que buscar algo, entende? Tenho aqui o disquete, tenho aqui todos os papéis, tenho aqui o aparelho que mandaram para a perda auditiva, tenho tudo. Mas eu vejo que ele está bem. Eu, como mãe, vejo que ele está bem.
Descontaminação ambiental
A Empresa de Movimento de Terra Número 1 Contingente Raúl Roa García foi encarregada de executar o saneamento ambiental. Especificamente, suas três brigadas: Redes Soterradas, Movimento de Terra e Trabalhos Especiais.
Quem dirigia a Trabalhos Especiais entre 2008 e 2009 era Lázaro Rivero, agora aposentado, e com uma excelente memória.
— Ali nós trabalhamos como uns cavalos, de segunda a sábado, umas dez horas por dia, porque era considerado prioridade. Teve dias com dez homens trabalhando.
— Já tinham feito algum trabalho similar antes?
— Não, eu nunca tinha feito, que eu me lembre esse foi o primeiro trabalho que se fez desse tipo.
Rivero, que é técnico em mecanização, estava há três anos à frente da brigada. Ele conta que, quando chegavam ao lugar, as instruções eram recebidas diretamente da Área de Serviços Comunais, da administração de San Miguel del Padrón ou de “companheiros do meio ambiente”, provavelmente do CITMA.
— Os companheiros do meio ambiente não saíam dali, ficavam mais tempo na obra do que eu, olhando nosso trabalho e fazendo medições, e eram eles que nos avaliavam, mas nunca reclamaram. Tudo correu bem até o fim.
Quando a Brigada de Movimento de Terra terminou a sua parte, a de Trabalhos Especiais se concentrou nos quintais das casas: cavavam “onde havia necessidade de cavar”, até onde a terra não estivesse mais contaminada com “materiais estranhos”, e revestiam com concreto.
O quintal da casa onde vivia Yanet foi um dos pontos onde mais tiveram que cavar. Alberto, o pai da sua sogra, havia enterrado resíduos e ferramentas em uma espécie de poço cuja existência ninguém tinha conhecimento, porque o mato crescia em cima, e, até o dia em que a equipe começou a usar sua enxada, não se inteiraram que debaixo dos seus pés havia todo tipo de “suvenires” da primeira fundição.
— Até as caldeiras onde se fundia o chumbo estavam ali embaixo, enterradas – diz Yanet. — E nós não sabíamos. As caldeiras, os baldes. Tiraram tudo isso.
Como durante as escavações continuavam aparecendo resíduos perigosos, o antigo chefe da brigada conta que foi aberta uma fossa no final do quarteirão, do tamanho de uma quadra de tênis, e de uns 4,5 metros de profundidade. Essa fossa, e nada mais, foi o que fez a Brigada de Redes Soterradas, que dispunha de uma retroescavadeira. Depois os homens de Trabalhos Especiais se ocuparam do resto.
— Tudo o que ia saindo, como peças de baterias, coisas que não se podiam deixar para trás, a gente ia atirando ali; para não ter que trazer caminhões e equipamentos – explica Rivero.
Quando terminaram de cavar os quintais, utilizaram a mesma terra que haviam tirado – que, segundo Rivero, não estava contaminada – para tapar o fosso, puseram em cima uma tampa de concreto de vinte centímetros, e, nas laterais, cerâmicas hexagonais.
Entre as ruas Iris e Final não sobrou um quintal sem cimentar. Somente as casas da ocupação ilegal, que margeia a área onde havia as fundições, ficaram com o solo intacto.
As famílias mais temerosas ou precavidas do assentamento ilegal fizeram uma versão pessoal de higienização: colocaram pedaços de mantas impermeabilizantes ou semearam flores nos pedaços de terra que estavam expostos, para evitar o contato.
Mas, com o passar dos anos, o tal saneamento ambiental foi deteriorando.
Em 2018, o panorama era drasticamente distinto. Vários metros de cerâmica haviam sido perdidos e o asfalto do assentamento ilegal e do final da rua se desgastou.
O local onde ficava a casa de Helena Rodríguez é um lixão ao qual, quando as autoridades comunais demoram muito a aparecer, os moradores ateiam fogo.
Hoje, na Villalobo, entre ervas daninhas exuberantes, mal se distingue a fossa onde se enterraram os resíduos. E, em cima dela, crianças jogam futebol e baralho, crianças brincam de qualquer coisa.
A área do desastre, composta por ruínas de casas, escombros, dois manguezais e um lixão, quase sempre transbordando, se converteu no principal local de recreação infantil da comunidade.
Ilegais e ignorados
Yudelkis Ayala passou mais de uma semana sem varrer a casa porque disseram a ela que colheriam amostras de poeira. Mas os dias passavam e passavam sem que aparecesse alguém. Ao final, teve que varrer. Nunca apareceu ninguém.
Ela soube que o filho Raimi Morales estava exposto ao chumbo porque, a partir de 2008, começaram a fazer exames, e os resultados superaram os 15 mcg/dl.
— O menino urinava muito na roupa – recorda a mãe. Tanto acordado como dormindo, como parado, como sentado. Onde estivesse começava a se urinar. E também se cagava, saía, era involuntário.
Raimi também foi hospitalizado por duas semanas no Juan Manuel Márquez quando tinha 6 anos. Yudelkis calcula que foi no final de 2009.
— Encontraram problemas nos ossos metacarpianos das mãos e nos ossos longos das pernas. Também me disseram que chegaria um momento em que ele poderia ter convulsões, por deformações que apresentava no cérebro, mas, mesmo se não aparecessem as convulsões, começaria a ter dificuldades na escola, mudança de comportamento, essas coisas. E isso é o que mais estou vendo agora, porque ele não rende na escola. Desde que chegou ao ensino médio não aprende nada.
Diferentemente das outras crianças que foram internadas, Raimi continua morando no mesmo lugar, onde nunca colheram amostras nem derramaram uma gota de cimento. Sua família foi uma das que tiveram que improvisar com pedaços de mantas impermeabilizantes e plantas ornamentais em cada lugar onde havia terra, até onde alcançaram os recursos.
São parte dessa outra realidade que é a ocupação ilegal.
A mãe de Raimi veio de Ciego de Ávila, na região central de Cuba, para Havana, em 1998, com apenas 17 anos, em companhia do seu primeiro marido e da mãe dele.
A história de Yudelkis é a história de milhares de cubanos que emigraram para a capital em busca de melhores oportunidades de vida: ocupou um terreno – na periferia –, construiu uma casa com os materiais mais insólitos e formou uma família.
Mas Yudelkis teve o infortúnio de se estabelecer em um lugar onde o chumbo, sorrateiramente, estava envenenando o ar, os solos, os cultivos, os animais, as pessoas. Instalou-se justamente onde esteve a primeira de todas as fundições, a do senhor Balán.
São duas casinhas rústicas, uma ao lado da outra, situadas a uns dez metros de distância da fossa onde se enterraram os resíduos extraídos dos quintais saneados. As paredes de ambas são feitas com tábuas aparafusadas e o teto, de zinco, é reforçado com madeiras compridas no interior.
Nenhuma das casas têm cerâmica fixada sobre o solo com cimento, mas apenas ladrilhos acomodados um ao lado do outro, como um quebra-cabeça que se pode desarmar a qualquer instante. O cimento é inacessível.
A casa de Yudelkis só tem piso de cerâmica no quarto de dormir. Na sala de jantar e na cozinha, o que há são mais pedaços de mantas impermeabilizantes, já puídas e esburacadas.
Em uma, Daysi com o seu neto Raimi. Na outra, Yudelkis com o seu atual marido, Maykel García, e Nataly, filha que tiveram em 2013, quando já não se faziam dosimetria do chumbo no sangue das crianças da região – motivo pelo qual ninguém sabe se Nataly acumula ou não chumbo em seu organismo.
A mãe acha que é possível. Teme que seja possível. Yudelkis já perdeu um filho. O primeiro que pariu aqui. Tinha dado o nome de Roger. Nasceu em abril de 2002 e, aos 2 meses e meio, morreu.
— Ele estava bem, estava normal, sem febre nem nada, então eu fui banhá-lo e, quando o envolvi em uma toalha, que fui dar o peito, ele teve uma convulsão forte. Então o levamos ao hospital, mas quando chegamos ele já tinha morte cerebral.
Um ano depois, nasceu Raimi, e aos 6 meses também convulsionou. Yudelkis diz que os médicos explicaram o episódio como uma reação adversa a um medicamento que lhe haviam receitado para que defecasse, porque às vezes passava até sete dias sem evacuar, e quando suspenderam a medicação as convulsões pararam.
Nataly nunca convulsionou. Agora tem 5 anos. Mas sua mãe vê que lhe falta apetite, não engorda, se irrita muito, adoece com frequência — e não pode deixar de se perguntar se é por causa do chumbo.
Outras mães da ocupação ilegal compartilham a mesma preocupação, embora em nenhum hospital tenham solicitado e nem pretendam solicitar para seus filhos dosimetria de chumbo no sangue.
Elas não sentem que têm esse direito. Sabem que são emigrantes ilegais e que, em primeiro lugar, não se reconhece que têm direito de viver onde vivem.
Além do mais, nem todas vivem ali desde os anos 1990.
A descoberta de casos de exposição ao chumbo naquela zona nunca deteve o fluxo de pessoas. Não impediu que algumas se fossem e outras novas chegassem. Nos últimos anos, pelo menos duas famílias venderam suas casas e se foram para longe por medo do chumbo. As que compraram dizem que não foram avisadas sobre os riscos.
E há também quatro famílias às quais o Estado entregou habitações, apesar de ilegais, porque tinham filhos com níveis elevados de chumbo no sangue ou sintomas associados.
As quatro moravam na parte alta da pedreira sobre a qual se estende a favela, muito próximo de onde estiveram as fundições.
Em dois dos quatro casos, a propriedade que receberam foi o resultado de vários anos de batalha em distintas instituições do país, de cartas e audiências com autoridades.
Virgen Salazar, mãe de jimaguas – filhos gêmeos – foi mais de vinte vezes defender o seu caso no Conselho de Estado. Ao final, os esforços deram resultado.
Yudelkis não acredita que vá ter sorte igual. Acha que tudo que se tinha para fazer já foi feito. Que o chumbo é história.
A última vez que tentou alguma coisa foi em 2013. Nataly tinha acabado de nascer e ela quis saber o que ia acontecer com a sua família, se iam ser removidos ou se iam receber material de construção para reformar a casa. Solicitou uma audiência com a então prefeita de San Miguel del Padrón, Ana María de la Torre.
Chegou à reunião com seu bebê no colo. E quando a prefeita a recebeu no seu gabinete, disse que não se lembrava de tê-la visto antes, que a sua cara era nova e que a única coisa que podia fazer por ela era mandá-la de volta para o seu lugar origem. Nesse dia, Yudelkis Ayala perdeu qualquer esperança e se deu por vencida.
398 eleitores
A informação sobre a população do assentamento ilegal é bastante inexata. Alfredo Rodríguez, representante da Assembleia Municipal do Poder Popular de San Miguel del Padrón, estima que deve haver entre 400 e 500 pessoas.
O que se sabe com bastante precisão, graças a outro censo que se efetuou em 2015 para as eleições municipais, é que ali viviam 398 eleitores. Sua condição de ilegais não os impedia de exercer seu direito ao voto. Tampouco de organizar-se. Podem situar-se à margem da lei, não da política.
O assentamento é formado por cinco CDRs – Comitês de Defesa da Revolução.
O Estado tolera o assentamento ilegal, assim como tolera outros similares que brotaram em Havana. Ali nenhum domicílio foi legalizado nem desalojado, nem os moradores deportados de volta ao local de origem.
Em maio de 2016, durante o processo de prestação de contas aos eleitores, Rodriguez realizou uma assembleia para, entre outras coisas, informar as conclusões dos últimos estudos ambientais dos especialistas do CITMA. A então prefeita, Natalia Vivanco, havia dito a ele: “Pode comunicar aos seus eleitores que o estudo do CITMA deu negativo, que ali não tem chumbo”. E foi isso que Rodríguez comunicou.
Mas aqueles que ainda residiam – ou residem – na Villalobo receberam a notícia com ceticismo. Primeiro, não especificava-se quais haviam sido os resultados dos estudos, somente as conclusões. Segundo, continuavam sem resposta para perguntas muito elementares. Por que depois do saneamento ambiental, se os riscos foram eliminados, continuaram as remoções? Por que, se na atualidade não há mais chumbo, a área permanece parcialmente interditada para novas construções? Por que não repetem as dosimetrias de chumbo no sangue dos moradores?
Entretanto, alguns residentes ilegais entenderam a notícia como uma luz verde para ocupar os terrenos.
Rodríguez teve que buscar apoio da Polícia Nacional Revolucionária e da Direção Municipal de Planejamento Físico para frear aquilo. Era difícil para as pessoas compreender como era possível que, em uma parte do quarteirão, onde permaneciam seis casas habitadas, não houvesse riscos de exposição ao chumbo e na outra, onde se encontravam as que foram derrubadas, sim.
A distância entre elas é mínima. A mais distante, da família Veloz, se encontra a uns vinte metros das derrubadas. A de Jacinto Beato, a menos de um metro. Ao que parece, as autoridades foram suficientemente persuasivas e os moradores acabaram compreendendo a diferença, porque desde então ninguém tentou ocupar os terrenos vazios.
Então, se hoje as crianças do bairro usam esse espaço imenso para brincar, é simplesmente porque não há nada que as proíba.
Seis casas, quatorze pessoas, quatro crianças
O processo de mudança da população exposta ao chumbo levou quase dez anos. Pelo menos da maior parte da população: aproximadamente noventa pessoas. A região não ficou completamente desabitada.
Das pessoas que se mudaram, algumas residem hoje fora de Cuba e outras, de Havana. Outras morreram. Mas a maioria continua residindo nas casas e apartamentos que lhes entregaram, quase todas no mesmo município.
A reportagem conseguiu identificar a entrega de 27 habitações – não isentas de pagamento – entre agosto de 2007 e março de 2016.
O site Periodismo de Barrio solicitou uma entrevista com a Direção Municipal de San Miguel del Padrón, com o objetivo de comparar os dados compilados, mas foi em vão. Dali nos encaminharam para a Direção Estadual de Havana, que, por sua vez, nos encaminhou para a Assembleia Estadual do Poder Popular de Havana. Nessa última instância, em janeiro de 2018, Zehimy Hartman Mulén, da comunicação, respondeu que não podia autorizar a entrevista porque Periodismo de Barrio não tem credenciamento oficial no país.
A história parece ter terminado depois das remoções da família de Aymara Linares, em março de 2016.
As frases “lá já não tem ninguém”, “dali se mudou todo mundo” ou “esse bairro ficou vazio” surgiram não poucas vezes nas comunicações estabelecidas para pedir entrevistas com autoridades municipais e estaduais.
Entretanto, no final da Villalobo ainda sobraram seis casas – sem incluir as do assentamento ilegal –, que abrigam 14 pessoas, quatro das quais são menores de idade.
No número 11224 reside Levis Alex Jiménez, um dos meninos que em 2008 tinha níveis elevados de chumbo no sangue. Hoje tem 11 anos. E, no 21716, outros três: Yaimaris Agramonte, Kevin Agramonte e Diamelis Veloz, de 8, 6 e 4 anos, respectivamente; embora em nenhum desses irmãos tenham feito uma dosimetria de chumbo no sangue. Yaimaris e Kevin nasceram na ocupação irregular. Começaram a viver nessa casa em 2014, quando a sua mãe, Yaimaris Rodríguez, se mudou com Yudel Veloz e os trouxe com ela. Diamelis nasceu aqui nesse mesmo ano.
Quase todas as famílias que ficaram, em algum momento, disseram não a uma oferta de moradia.
A razão principal foi que as casas ofertadas, em termos do espaço ou qualidade da construção, eram inferiores às suas propriedades, e preferiram ficar no mesmo lugar a aceitar algo que não consideraram justo.
Ninguém entra, ninguém sai
Supõe-se que no terreno onde se encontravam as fundições de chumbo, e nas suas proximidades, já se poderia construir novamente. Natalia Vivanco deu a entender que é seguro viver no lugar onde cada família vive atualmente. Não removerão mais ninguém. Não farão análise que detecta chumbo nos que ali permanecem. Não repetirão as medições ambientais. Não voltarão a abrir o caso. Tampouco revelarão os resultados de nenhum dos estudos realizados na região. Às pessoas só resta acreditar na palavra dos seus representantes.
O único problema é que, algumas vezes, as instituições estatais assumem posições contraditórias.
Isis de la Paz, chefe do departamento de projetos urbanos da Direção Municipal de Planejamento Físico de San Miguel del Padrón, explica que a última informação que ela recebeu do CITMA sobre o caso, no começo de 2016, foi que ainda estavam analisando a região. Recomendaram que ela não autorizasse construções que aumentassem a quantidade de casas, para o caso de terem que voltar a removê-las.
Assim, para a Direção de Planejamento Físico, o bairro continua sendo uma zona de “vulnerabilidade e risco”.
Pedras por toda parte
Hoje, ninguém vê frangos marchando no final da rua Villalobo.
Jorge Nilo cria alguns em seu quintal, pavimentado durante o saneamento ambiental. Ali a sua mãe, quando ele era uma criança, amontoava as placas das quais extraía chumbo para vender a Arturo Brito e ganhar alguns centavos.
Mas por onde se olha aparecem pedras negras, brilhantes, com as cores de um arco-íris, que as pessoas identificam como resíduos das fundições. Há quem diga que é escória, um resíduo da fundição de minério.
Algumas são muito polidas, com extremos quase cortantes. Outras, ásperas, porosas. Quase todas têm marcas de bolhas. E podem ser tanto do tamanho de uma unha quanto de um punho. São inconfundíveis.
Raimi sabe onde encontrar as maiores. Bastam dez minutos para ir desenterrar uma e voltar para mostrá-la à reportagem com orgulho, como se se tratasse de algo muito especial.
Expostas ao sol, muitas das pedras são fascinantes. Suas cores, seus azuis.
Raúl Guerra, um morador da ocupação ilegal, conta que quando escavou no seu terreno para erguer sua casa de blocos, tirou do solo mais de trinta carrinhos de mão cheios dessas pedras, que ia jogando no riacho. Raúl reside com a esposa a escassos metros de onde moravam as famílias que se mudaram dali.
Ninguém sabe com certeza o que são essas pedras, mas ninguém sabe com certeza quase nada a respeito do chumbo nessa região. As pessoas suspeitam, especulam, sentem medo.
Quando alguém, sobretudo uma criança, aparece doente, os pais tendem a pensar no chumbo. Se alguém que morou aqui morre, seja por insuficiência renal, câncer ou qualquer outra causa, também.
Durante muito tempo o chumbo envenenou a população de maneira lenta e sutil, sem que ninguém percebesse, e isso – que pudesse ser tão imperceptível – é uma das coisas que mais assusta.
Esta investigação foi desenvolvida entre agosto de 2016 e maio de 2018.
Edição: Tomás Ernesto Pérez e Gilberto Padilla Cárdenas
Fact-checking: Elaine Díaz Rodríguez, Geisy Guia Delis e Julio Batista Rodríguez
Tradução para português: Natalia Viana
Edição em português: Fernanda Diamant
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Imagem: Rua Villalobo, em San Miguel del Padrón – Ismario Rodríguez